Felipe Recondo

Prestes a completar dez anos de vigência, a Lei de Drogas precisa passar por um balanço. Por que o objetivo inicial do Legislador de diminuir o encarceramento por crimes relacionados às drogas não foi alcançado? Quais os avanços da lei e em que pontos ela ainda patina?
Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Rogério Schietti ajuda a compreender os efeitos da legislação nesta entrevista ao JOTA. Integrante da Sexta Turma do STJ, o ministro Schietti se depara, regularmente, com problemas que estudiosos apontam como uma das origens do recorte social da lei.
“Uma dificuldade que notamos, no dia-a-dia do Tribunal, é a ausência de critérios mais objetivos para se qualificar alguém como grande ou pequeno traficante, ou mesmo para diferenciar aquele que comercializa droga para alimentar o próprio vício e o que se ocupa de aumentar sua riqueza à custa da drogadição”, afirma.
“Essa tarefa seria do legislador, cuja omissão faz com que o destino de quem é flagrado na posse de uma certa quantidade de maconha, cocaína ou crack seja definido pelo subjetivismo do policial, do membro do Ministério Público e dos magistrados que irão examinar o caso”, acrescenta.
O ministro Rogério Schietti será um dos palestrantes no Seminário "10 Anos da Lei de Drogas". O debate é organizado pelo JOTA em parceria com Instituto Brasileiro de Ciências Criminalísticas (IBCCRIM) e Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD). 
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* Serviço: 
Seminário 10 Anos da Lei de Drogas
Data: dias 22 e 23 de setembro
Local: Sede da Associação Advogados de São Paulo (AASP)
Para se inscrever gratuitamente, <a href="http://www.ibccrim.org.br/noticia/14169-Seminario-10-anos-da-Lei-de-Drogas">clique aqui</a>.
Organizadores: JOTA, IBCCRIM, PBPD e AASP. 
Apoiadores: AASP, ITTC, Aborda, Igarape, Conectas, Escola da Defensoria Publica de São Paulo e Iniciativa Negra por uma Nova Politica de Drogas.
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Leia abaixo a entrevista concedida por Schietti ao JOTA.
JOTA - A Lei de Drogas completa 10 anos de vigência agora em outubro. Que balanço o senhor faz, no campo penal, da legislação? O que deu certo? O que deu errado? E o que é preciso ainda fazer, do ponto de vista penal, para que ela atinja seus objetivos?
Rogério Schietti - A nova legislação de drogas, de 2006, implicou um recrudescimento na resposta punitiva ao tráfico de entorpecentes, criando novos tipos, alterando penas e estabelecendo critérios para a diferenciação entre o pequeno ou eventual traficante e aquele que comercializa drogas em caráter habitual e em grandes quantidades. Por sua vez, avançou ao não punir com sanção privativa de liberdade os usuários e dependentes, para os quais otimizou o tratamento médico e a busca da sua reinserção social. Talvez se possa avançar no melhor disciplinamento das penas, para diferenciar com maior acuidade e proporcionalidade as punições devidas a cada um dos tipos de tráfico. Mas o maior avanço que se pode fazer, acredito, é no sistema de execução penal, que não tem sido capaz – como em geral – de promover o objetivo principal de reinserção do apenado no convívio social, livre das amarras que o prendem a um passado criminógeno. E, quanto ao usuário, seria muito importante que se criassem incentivos para a oferta de tratamento e acompanhamento a essa multidão de drogaditos que só tem aumentado, principalmente nos grandes centros urbanos.
A lei buscou distinguir o tratamento dispensado ao traficante e ao usuário de drogas. Entretanto, casos de usuários presos como traficantes são corriqueiros. A que fator (fatores) o sr atribui a responsabilidade por isso?
Há um preconceito muito forte em alguns setores das agências estatais que compõem o sistema de justiça criminal acerca do tema. Quem é preso portando droga, de qualquer espécie, quase sempre já é rotulado como traficante, não sendo raros os casos em que, mesmo detido com pequena quantidade de droga, o indivíduo é autuado no art. 33 da Lei e mantido preso, com argumentação judicial que reproduz um discurso punitivo ainda não adequado ao momento processual em que se analisa a necessidade de manter a pessoa sob custódia. A impressão que se tem é que muitos julgadores ainda resistem em fazer essa importante distinção quanto ao destinatário da norma penal, talvez porque a formação jurídica deles se deu, em boa parte, sob a vigência da legislação anterior, que dispensava tratamento jurídico também rigoroso ao usuário de drogas.
Os dados de encarceramento revelam que aproximadamente um quarto dos presos do País são acusados ou foram condenados por tráfico de drogas. Para as mulheres, o número passa de 60%. Com esses dados, podemos dizer que a lei deu errado?
A Lei de Drogas faz parte de uma concepção de maior intervenção penal na questão das drogas. Vale registrar que o problema das drogas é mundial e é fato que o número de dependentes em todo o planeta só vem aumentando (recente relatório – junho de 2016 – do UNODC – indica que o número de pessoas descritas como “dependente de drogas” em todo o mundo aumentou de 27 milhões (2013) para 29 milhões (2014). De todo modo, o que, a meu sentir, deu errado em nosso país foi a ausência, ou insuficiência, de investimentos sociais e de políticas públicas mais efetivas de prevenção, que diminuam os riscos e as oportunidades para o ingresso de pessoas nesse mercado negro do qual é difícil sair ileso. Por outro lado, vejo homens e, sobretudo, mulheres que até tinham emprego com carteira assinada e família estruturada ingressando no sistema penitenciário por uma opção infeliz, momentânea, quase sempre movida à tentação do ganho rápido e elevado. É triste ver o crescimento astronômico de mulheres encarceradas, a maior parte delas porque cedeu aos pedidos do marido ou companheiro para ingressarem no presídio, em dia de visita, com drogas para serem ali comercializadas. São mulheres que deixam ao abandono uma vida digna. E, o que é pior, amiúde condenam ao abandono moral e material os filhos do casal, que nutrem a imagem e todo o simbolismo nefasto dos pais presos por tráfico de drogas.
Quais pontos relativos à Lei de Drogas precisam ser esclarecidos pelos tribunais, especialmente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça para que a legislação atinja seus objetivos iniciais?
Uma dificuldade que notamos, no dia-a-dia do Tribunal, é a ausência de critérios mais objetivos para se qualificar alguém como grande ou pequeno traficante, ou mesmo para diferenciar aquele que comercializa droga para alimentar o próprio vício e o que se ocupa de aumentar sua riqueza à custa da drogadição. Essa tarefa seria do legislador, cuja omissão faz com que o destino de quem é flagrado na posse de uma certa quantidade de maconha, cocaína ou crack seja definido pelo subjetivismo do policial, do membro do Ministério Público e dos magistrados que irão examinar o caso.
A Lei mudou. O legislador pensou noutro tratamento para o combate às drogas. A Justiça estava preparada (inclusive culturalmente) para aplicá-la?
Como eu adiantei, a lei de 2006, no tocante ao “combate às drogas”, criou novos tipos e aumentou as penas para os grandes traficantes, reduzindo, por sua vez, a punição para quem ainda não se encontra envolvido na traficância habitual e não tenha ainda vivência criminosa. Isso implicou um aumento significativo do número de processos que tramitam na justiça criminal, que, efetivamente, não está preparada para julgar esses casos com os prazos previstos em lei e muito menos está a execução penal adequada para receber essa vultosa massa de novos condenados por crimes referentes à mercancia ilícita de drogas. Para que se tenha uma ideia do exponencial incremento do número de pessoas presas nos 10 anos que se seguiram à aprovação da Lei 11.343/06, basta dizer que, em 2006, dos 383.480 detentos do sistema penitenciário, 12,4% eram de condenados por crimes previstos na antiga legislação. Em 2012, menos de 10 anos depois, portanto, esse percentual mais do que dobrou, passando a ser de 25,21% (138.198) dos 548.003 presos (dados do Infopen/Ministério da Justiça - 2014).
A súmula 528 do STJ (Compete ao juiz federal do local da apreensão da droga remetida do exterior pela via postal processar e julgar o crime de tráfico internacional) configura inversão do ônus da prova?
Entendo que não configura inversão do ônus da prova, porque a partir da apreensão da droga importada o Ministério Público deverá comprovar a vinculação subjetiva do destinatário da droga e a sua participação no processo de importação, bem como o uso que pretende fazer da droga. O simples fato de chegar uma correspondência com substância ilícita na casa de qualquer pessoa, por exemplo, não é suficiente, por si só, para condenar o destinatário dessa droga, devendo haver outros elementos de prova que permitam levar à responsabilidade penal do acusado.
O número de presos por tráfico internacional de drogas também cresceu sensivelmente. Por isso, surge a questão: quem importa pequena quantidade de drogas do exterior não deve ser enquadrado como usuário?
A questão é a mesma que deve ser enfrentada em qualquer situação de apreensão de drogas: qual a quantidade pode significar já um porte (ou posse) para traficância? A lei fornece alguns subsídios para essa tarefa, dizendo que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.” Mas verifico, no cotidiano forense, que nem sempre esses fatores são observados e a tendência é a de tipificação da conduta como tráfico, mesmo quando não é expressiva a quantidade de drogas apreendidas, muito embora seja possível que o destino da droga importada seja a mercancia ilícita, ainda que em quantidade reduzida.
As audiências de custódia deveriam servir para que o magistrado possa tratar diferentemente usuários de traficantes. Pode ser uma saída?
Há muitas críticas sobre as audiências de custódia, mas eu, pessoalmente, sou um enfático defensor de sua implementação, desde quando, em 2005, na qualidade de Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, propus à Presidência do Tribunal de Justiça concretizar, no próprio plantão judiciário, a previsão da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de assegurar ao preso ser conduzido sem demora à presença da autoridade judiciária competente, tanto para avaliar a necessidade de manutenção da prisão quanto para identificar possíveis sinais de tortura na apreensão e custódia do preso. O contato do juiz com a pessoa detida, aliado ao exame criterioso das informações colhidas no momento da prisão, não só humanizou uma relação até então protocolar e fria do magistrado com o processo, como passou a permitir melhor aferir o envolvimento da pessoa com o crime do qual está sendo acusada. Não é por outro motivo, creio, que o número de pessoas que obtiveram liberdade provisória após a implementação dessas audiências pelo Brasil afora aumentou enormemente.
O Supremo discute a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. O senhor, como julgador, tem opinião sobre o tema?
Sinceramente, não. Ouço argumentos fortes nos dois sentidos, mas é importante sempre destacar que eventual “descriminalização” do porte ou posse de drogas para consumo pessoal não significa “legalização” de tal prática, embora essa também seja uma possibilidade discutida e já implementada em alguns povos.
O senhor teria estatísticas do seu gabinete sobre crimes de drogas (habeas corpus concedidos, etc)?
Assumi o atual Gabinete quando tomei posse no Superior Tribunal de Justiça. Nesses três anos, me foram distribuídos pouco mais de 30 mil processos, dos quais 7 mil relativos a crimes previstos na Lei de Drogas. Desse total de processos sobre drogas distribuídos, as principais classes processuais somam 4.940 Habeas Corpus e Recursos em Habeas Corpus, 765 Recursos Especiais e 1.191 Agravos em Recursos Especiais. Não disponho do número exato de liminares em crimes dessa natureza, mas estimo que cerca de 10% dos habeas e RHC tiveram algum tipo de provimento liminar favorável ao paciente/recorrente.
O senhor acha que o Estado possui legitimidade pra dizer o que o indivíduo deve ou não usar, sendo que toleramos salto de paraquedas, boxe, gordura trans, tabaco, álcool e fármacos?
Acho que sim, porque o uso (e, mais ainda, o comércio que o precede) implica não somente possível dano à saúde de terceiros, mas, sobretudo, o estímulo à prática de diversos outros crimes relacionados, direta ou indiretamente, ao consumo de entorpecentes. Usar ou não drogas não é um problema puramente individual; é um problema de saúde pública e, portanto, sua solução, em que pese a necessidade de respeito à individualidade de cada um, há de levar em conta também os interesses da coletividade.
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Um balanço dos 10 anos da Lei de Drogas

Entrevista com Rogério Schietti