Direitos Humanos

Sentença da Corte IDH solidifica justiciabilidade de direitos econômicos e sociais

Tribunal considerou que Costa Rica violou o artigo 26 da Convenção ao discriminar cidadão com deficiência intelectual

Sessão da Corte IDH / Crédito: Edgar Marra

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) decidiu, em sentença contra a Costa Rica, emitida na terça-feira (13/9), que direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, os chamados “Desca”, são equivalentes, indivisíveis e interdependentes dos direitos civis e políticos contidos na Convenção Americana.

Por quatro votos a dois, os juízes reconheceram a justiciabilidade direta dos Desca – ou seja, consideraram que o Estado deve ser responsabilizado por violar um desses direitos (o direito ao trabalho, no caso específico julgado), com base no artigo 26 do tratado internacional.

A sentença responsabiliza a Costa Rica pela discriminação cometida contra Luis Fernando Guevara Díaz, um cidadão que passou em um concurso estatal em primeiro lugar e foi preterido em razão da sua condição intelectual.

O homem exercia havia dois anos o cargo de “trabalhador misceláneo”, algo assemelhado a um auxiliar de serviços gerais, no Ministério da Fazenda da Costa Rica. Conforme relatório do próprio ministério, ele era um funcionário exemplar, embora tivesse dificuldade de aprendizado.

Em 2003, ele se inscreveu no concurso para ser efetivado e foi aprovado na mais alta colocação de uma lista tríplice, depois de prova escrita e entrevista. No dia seguinte à divulgação do resultado, a vaga foi fechada e Guevara Díaz foi informado que não seria contratado. Ele foi demitido quatro dias depois.

Segundo o irmão dele, a demissão sem justificativa provocou efeitos psicológicos terríveis ao homem: antes considerado alegre, ele passou a vivenciar episódios depressivos e um quadro de desmotivação e desinteresse que comprometeu sua vontade de realizar atividades das mais básicas, como comer, beber e sair de sua casa.

Diante disso, a Corte Interamericana considerou que houve diferença de tratamento ao senhor Guevara em razão da sua condição intelectual, sem quaisquer justificativas ou razoabilidade. Para os juízes, a demissão foi injustificada e caracterizou discriminação direta em ambiente de trabalho.

Por essas razões, o tribunal sentenciou de forma unânime que a Costa Rica violou os direitos à igualdade perante a lei (artigo 24 da Convenção Americana), às garantias judiciais (artigo 8) e à proteção judicial (artigo 25). O Estado também foi condenado por violar o direito ao trabalho (artigo 26), mas com dois votos contrários – do juiz Humberto Sierra Porto (Colômbia) e da juíza Patrícia Pérez Goldberg (Chile).

Artigo 26 e os Desca

A principal controvérsia do caso está na interpretação do artigo 26 para considerar se há ou não justiciabilidade dos Desca e, portanto, se é possível reconhecer a violação do direito ao trabalho por meio desse trecho da Convenção Americana.

A divergência em relação ao tema, tanto jurisprudencial quanto academicamente, não é nova. O artigo 26 está inserido no Capítulo III, sobre os direitos econômicos, sociais e culturais. Depois das palavras “desenvolvimento progressivo”, está assim escrito:

“Os Estados Partes comprometem-se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados”.

Nas primeiras décadas de Corte, prevalecia o entendimento de que o tribunal não tem competência jurídica para declarar violações autônomas dos Desca, apenas de direitos civis e políticos estabelecido no tratado. Conforme esta linha, os Estados devem ser responsabilizados por não cumprir as obrigações de desenvolvimento progressivo e não regressivo, mas não pelos direitos em si. Esta é a posição em que se mantêm os juízes Sierra Porto e Patrícia Goldberg, vencidos.

Essa interpretação do artigo 26 começou a mudar em 2009, no caso Acevedo Buendia e outros x Peru, em que os representantes das vítimas sustentaram que a falha do Estado em dispor sobre o pagamento de benefícios a centenas de empregados demitidos violaria seu direito à seguridade social, e que este direito estaria contemplado no artigo 26 da Convenção. Naquele momento, a Corte reconheceu, pela primeira vez, sua competência para julgar violações ao artigo.

Em 2013, as bases argumentativas dessa linha se consolidaram com o voto do juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (mexicano, ainda presente na composição da Corte) no caso Suarez Peralta x Equador. Naquele momento, se solidificou, a partir da interpretação do artigo 26 em casos prévios, a ideia de interdependência e indivisibilidade dos direitos civis e políticos dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Embora vencido na ocasião, o voto de Mac-Gregor serviu de base para casos posteriores e, a partir de 2017, passou a ser a posição vencedora entre os juízes da Corte, como ocorreu nos casos Poblete Vilches x Chile (2018), em Muelle Flores x Peru (2019), Extrabajadores del Organismo Judicial vs. Guatemala (2021) e caso Veras Rojas vs. Chile (2021).

O posicionamento do juiz brasileiro no caso atual

A construção histórica da interpretação do artigo 26 pela Corte foi longamente explorada pelo juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, em voto convergente no caso agora sentenciado pela Corte, relacionado à Costa Rica. Ele apresentou argumentos robustos que corroboram a posição da justiciabilização dos Desca.

“Defendo, a par disso, que o arcabouço interpretativo desenvolvido em torno da aplicação dos DESCA já foi incorporado à linguagem da Corte e dos Estados, bem como de outros atores que formam uma verdadeira sociedade aberta de intérpretes da Convenção. O caminho a ser percorrido, pois, não é o de desconstrução do bloco de precedentes que reconhece a justiciabilidade dos DESCA, mas, sim, o de evolução na elaboração de parâmetros remediais sólidos para a interpretação e aplicação do art. 26 da Convenção. O problema central, na minha avaliação, não está propriamente em reconhecer a existência da violação a tal preceito convencional, mas em definir o modo adequado para a sua reparação, o que implica considerações sobre a técnica de decisão e a escolha adequada de remédios a serem aplicados”, observou Mudrovitsch.

O juiz defende que, em que pese as divergências, há uma jurisprudência consolidada em relação ao tema.

“Nada obstante a robustez dos argumentos divergentes levantados no extenso e qualificado debate travado neste Tribunal, a consulta aos capítulos anteriores da obra jurisprudencial da Corte revela, sem qualquer dúvida razoável, que há fundação sólida a partir da qual se reconhece a plena e direta justiciabilidade dos DESCA pela via do art. 26 do tratado. A Corte leva, em linguagem dworkiniana, os DESCA a sério; não os vê apenas como compromissos programáticos, ou como meros objetivos de política que cedem diante de cenários contingentes”.

Mudrovitsch escreve que o entendimento firmado não pode retroagir visto que há “uniforme linguagem, compartilhada por uma sociedade aberta interamericana de intérpretes da Convenção, cujos aportes hermenêuticos não podem ser ignorados”.

“Com efeito, a justiciabilidade imediata dos DESCA foi integralmente absorvida pela linguagem do SIDH [Sistema Interamericano de Direitos Humanos], transformando-se em categoria fundamental para o enfrentamento das questões prementes dos povos do continente, marcados por uma vivência profunda de desigualdades materiais. Tal categoria é, pois, parte integrante do horizonte a ser descortinado em futuras disputas judicializadas. Essas conclusões certamente não são o ponto final dessa construção jurisprudencial. Pelo contrário, as premissas firmadas no presente caso e em tantos outros que o precederam são um ponto de continuidade e de desenvolvimento de reflexões mais profundas quanto à delicada atuação da Corte em casos de violação dos DESCA”.

Mudrovitsch também ressalta em seu voto que “os Tribunais Constitucionais implementam, em suas decisões, os precedentes da Corte em matéria de DESCA. À guisa de exemplo, no seio do Supremo Tribunal Federal Brasileiro, no âmbito da recente tramitação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental referente a direitos ambientais (ADPF n. 708), um dos ilustres magistrados da Corte constitucional brasileira invocou, em diálogo aberto com a hermenêutica praticada nesta Corte, a Opinião Consultiva 23/2017 e o Caso Lhaka Honhat vs Argentina (2020), ao apresentar seu voto vogal”. O voto mencionado foi o do ministro Edson Fachin.

Repercussão e efeitos

Juristas ouvidos pelo JOTA seguiram unanimemente o entendimento de que há justiciabilidade direta dos Desca. Dessa forma, eles avaliam que a sentença da Corte no caso Guevara Díaz solidifica e robustece a jurisprudência sobre indivisibilidade em relação a outros direitos.

Melina Fachin, professora da Faculdade Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos (NESIDH) e do Centro de Estudos da Constituição (CCONS), reforça a importância de a Corte evoluir em sua interpretação da Convenção com o passar dos anos.

“Este é um entendimento muito acertado. A Corte, através de uma interpretação dinâmica e evolutiva, consolida a ideia da justiciabilidade como um estândar. Isso mostra que a Convenção é um instrumento vivo e deve evoluir. Não considerar essa interpretação seria tornar letra morta o artigo 26”, avalia.

Melina Fachin destaca que a interpretação valoriza o caráter de proteção da Convenção Americana. “Com todo respeito ao voto divergente, o reconhecimento da interpretação progressiva tem como pressuposto o reconhecimento da proteção. Tratar do artigo só pelo viés da progressividade de ações seria convertê-lo em não proteção. Seria justamente o revés”.

Sidharta Legale, professor da Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos, exalta o reconhecimento da interdependência entre direitos. “Como você vai defender o direito à educação de uma criança desconectado de um direito à vida, por exemplo?”.

O professor diz que não considerar a justiciabilização dos Desca seria confrontar a própria Convenção Americana, que prevê, no artigo 29, que a interpretação dos casos deve sempre ser a mais protetiva à vítima.

“Um tratado de direitos humanos não é um tratado de importação e exportação de bananas. A lógica é distinta. A própria Convenção Americana dispõe sobre regras específicas de interpretar a convenção. Isso está no artigo 29. Você não pode interpretar restritivamente direitos humanos da Convenção, você tem que interpretar escolhendo a medida mais protetiva e mais favorável ao indivíduo”.

Legale afirma que a posição da Corte no caso Guevara Díaz é emblemática, porque reforça o impacto transformador do tribunal e corporifica um direito interamericano antidiscriminatório. “A sentença é emblemática porque a Corte reforça seu impacto transformador diante de uma realidade latino-americana que é profundamente violenta, desigual e discriminatória. É uma abordagem estrutural. Esse caso não situa apenas uma violação ao senhor Guevara, mas a todas as pessoas com deficiência que enfrentam esses obstáculos na convivência com a sociedade”.

O professor Ingo Sarlet, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), destaca o diálogo da decisão com cortes constitucionais nacionais. Para ele, isso deve ser reforçado na jurisprudência interna dos países signatários da região, como o Brasil.

“Como nós estamos, felizmente, nos últimos anos, mais receptivos ao direito internacional de direitos humanos, isso reforça nossa jurisprudência interna. O Supremo tende, por exemplo, a reforçar essa linha de entendimento que ele já começou a adotar em algumas decisões, como na ADPF 708 [que trata dos recursos do Fundo Clima]. Fica claro que essa visão de interdependência dos direitos será cada vez mais consolidada também no Brasil”, diz Salet.

Flávia Piovesan, professora da PUCSP e ex-membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ressalta a importância da solidificação de uma jurisprudência que protege as vítimas. “Um dos pontos mais preciosos dessa sentença é que exalta a centralidade da vítima. É um caso muito importante porque aponta como essa nova composição da Corte tratará o tema, e para meu alívio, será no sentido de proteção”.

A jurista lamenta que ainda exista divergência entre os juízes da Corte, mas vê um bom horizonte para a aplicação da jurisprudência em casos do mesmo tema que surgirão.

“O ideal, em nome do princípio da colegialidade, é que houvesse unanimidade. Teríamos uma voz mais potente da Corte. Os votos dissidentes dão munição, alimento, para vozes resistentes, mas a luta por direitos é justamente essa: avançar, reforçar, solidificar a melhor argumentação. O primoroso voto do Rodrigo Mudrovitsch contribui e muito para isso”.

O posicionamento divergente e vencido

No voto dissidente do caso Guevara Díaz, Sierra Porto diz que analisar a questão à luz do artigo 26 é um erro. Para ele, seria mais adequado enquadrar a violação no artigo 23.1, que estabelece o direito de acesso à função pública em condições de igualdade.

“O que precede não é uma distinção meramente nominal, pois como já disse em outros pareceres separados, usar o artigo 26 da Convenção para declarar a responsabilidade do Estado é juridicamente inadequado e afeta a legitimidade da decisão. Assim, determinar a responsabilidade da Costa Rica com base no artigo 23.1 c) em relação ao artigo 1.1 da CADH [Convenção Americana de Direitos Humanos], não só respondeu mais precisamente à situação fática do senhor Guevara Díaz, como permitiu à Corte avançar em sua jurisprudência sobre o alcance deste direito contido na Convenção Americana; ao contrário, teria evitado afetar a eficácia da decisão com as dúvidas geradas pela justiciabilidade direta do artigo 26 da CADH”, pontuou o juiz colombiano.

A juíza Patrícia Goldberg compartilha da mesma visão e defende que a norma em discussão prevê apenas a avaliação de progressividade, e não de violação aos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.

“Da leitura desta norma, nota-se que, diferentemente do que acontece em relação aos direitos civis e políticos especificados e desenvolvidos no Capítulo II da CADH, aqui se estabelece uma obrigação para os Estados Partes no sentido de adotar as “providências ” ou seja, as ações, medidas ou políticas públicas necessárias para alcançar “progressivamente” a plena efetividade dos direitos derivados das disposições da Carta da OEA, à “medição dos recursos disponíveis” (o que é compatível com a natureza progressiva da obrigação) e por “meios legislativos ou outros apropriados”. Em outras palavras, cada Estado Parte tem a obrigação de formular definições e fazer progressos decisivos nessas questões, de acordo com seus procedimentos deliberativos internos”, afirmou a juíza no voto contrário.

Para ela, a interpretação sobre a justiciabilidade dos Desca cabe apenas aos tribunais constitucionais nacionais, e não à corte internacional.