Luciano Padua

Trinta anos após a promulgação da Constituição, praticamente todos os temas de relevância para o país são decididos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Cada vez mais expostas também ficam as divisões internas da Corte, assim como a sua dificuldade em lidar com a demanda processual e a politização do processo jurídico. Uma revisão sobre a atuação do Supremo é essencial para garantir previsibilidade à Justiça.
O diagnóstico foi feito nesta segunda-feira (26/3) por advogados, professores e magistrados que participaram do debate "O Judiciário, entre os perigos da impunidade e os riscos do punitivismo", na Fundação FHC, em São Paulo, realizado em parceria com o JOTA.
A moderação do evento foi do sócio-fundador do JOTA, Felipe Recondo, e do ex-secretário nacional de Justiça Beto Ferreira Martins Vasconcelos. Assista à <a href="https://www.facebook.com/fundacaoFHC/videos/1653889284648161/">íntegra do debate</a>.
Entre diversos temas de impacto no funcionamento do Judiciário, o destaque foi uma avaliação do Supremo Tribunal Federal, a execução de pena para condenados em 2ª instância e o ativismo judicial.
Para Oscar Vilhena, professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas, o protagonismo do Supremo na agenda nacional é também uma consequência da Constituição. "No Brasil, e em países como Colômbia e Índia, adotou-se um modelo em que as Constituições são "compromissos maximizadores", afirmou.
"Ou seja, não se resumem ao papel de coordenação da política nacional, mas em si resolvem diversos objetivos a serem atingidos pela sociedade. É um modelo contraposto ao norte-americano, no qual a Constituição é um processo que transfere para os poderes políticos a capacidade de coordenar a política nacional", afirmou Vilhena. "O Judiciário não usurpou o poder político. O poder político foi trazido a ele por intermédio da Constituição."
Para ele, a Justiça deixou de ser “auto-contida” como em outros tempos, quando reagia a uma norma que perguntava se tal questão era legal ou ilegal, para uma norma que a endereça a um projeto.
O professor disse que esse novo modelo normativo acabou levando a um excesso de ações na principal Corte do país. Com isso, a gestão desses processos é complexa e favorece o aumento de decisões monocráticas.
Uma pesquisa da FGV mostrou que, em 2017, 95 mil ações foram decididas monocraticamente e 10 mil em colegiados no STF. "Cada um dos ministros exerceu mais a função de STF do que o colegiado. Houve uma usurpação do STF por parte de seus membros", observou.
A pauta em pauta
Uma das questões que traz maior incerteza ao funcionamento do Supremo é a montagem da pauta das sessões, que cabe à presidência do Tribunal.
Para Marivaldo de Castro Pereira, ex-secretário-executivo do Ministério da Justiça, decidir quando um processo deve ou não ir a julgamento é escolher se o crime ali tratado poderá prescrever ou não. "E  não tem sentido um Tribunal decidir se uma ação prescreve ou não", disse.
Ele defende a retomada da discussão sobre uma nova reforma do Judiciário e citou o caso dos auxílios-moradia pagos a magistrados em todo o país como uma discussão que precisa de transparência.
O desembargador Nino Toldo, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), disse que, na Justiça Federal, assim que um processo é liberado para pauta, ele é julgado. Ele citou o caso do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ilustrar a confusão.
"É esse controle ou descontrole que levou à situação na qual um habeas corpus [do ex-presidente Lula] foi colocado na frente de tantos outros, mesmo havendo duas ações que poderiam ser julgadas sem politizar e fulazinar essa questão", observou. "Esse tema é de interesse para todos os processados do Brasil que têm a pena confirmada em 2º grau. Não era para ter esse grau de politização."
A desembargadora Kenarik Boujikian Felippe, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), opinou que não há data para "julgamento de nada" no STF. Para ela, isso acontece porque é preciso que o ministro-relator do caso resolva colocar a ação em pauta, o que pode ser uma "interrogação de meses, anos, décadas".
Depois disso, cabe à presidência da Corte dizer quando colocará o processo na pauta. "É um descompasso, uma situação absolutamente irracional", disse.
Ao mesmo tempo, ponderou a magistrada, essa organização vem do próprio desenho institucional da Corte. Na época da Constituição, lembra, houve muita resistência do Judiciário em relação ao papel do STF porque ministros não queriam "abrir mão de seu poder".
"Em vez de fazer a limitação pelo âmbito constitucional de forma estrita, se abriu. Hoje temos essa loucura no STF tendo que julgar um número irracional de processos. Nenhum juiz consegue decidir tantos processos mensalmente", avalia.
Nesse contexto, o Supremo brasileiro acaba por não ter correspondentes no mundo, na avaliação de Vilhena, da FGV. Segundo ele, não há Corte semelhante que acumule as funções de Corte Constitucional; de rever as decisões de todos os tribunais inferiores; e de primeira instância em atos criminais para pessoas com prerrogativa de foro.
"O Supremo passou a exercer um papel político desmedido no Brasil. É por isso que temos um desgaste. Não há questão relevante que não termine lá", disse. A solução seria retirar do Tribunal as funções de revisar sentenças de graus inferiores e de atuar criminalmente em casos de foro privilegiado.
Condenação em 2ª instância
Os debatedores também consideraram que a possibilidade ou não da execução da pena após condenação em 2ª instância acaba revelando um contrassenso do texto constitucional. Para eles, a lei é clara ao dizer que é preciso haver o trânsito em julgado para que uma pessoa comece a cumprir sua pena.
Até 2009, a jurisprudência do Supremo era de que o réu condenado em dois graus poderia iniciar o cumprimento de pena. Depois, no julgamento do <a href="http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=102869">habeas corpus 84078</a>, o STF entendeu que isso não seria mais possível.  Em 2016, tornou a reverter o entendimento.
Na opinão de Kenarik Felippe, do TJSP,  não havia precedentes suficientes para a mudança na jurisprudência em 2016. "O Supremo mencionou um HC e duas liminares para justificá-la", disse.
Nino Toldo, do TRF3, avaliou que caso semelhante aconteceu com a<a href="http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1220"> Súmula Vinculante 11 do STF</a>, conhecida como súmula das algemas, que limita o uso de algemas. "Nesse caso, não existia discussão nenhuma sobre isso que levasse o STF a fazer uma súmula como se houvesse divergência. Houve, ali, legislação pelo Supremo", disse Toldo.
Vilhena, da FGV, concordou, mas apontou o que considera um erro no texto constitucional: "Me parece que quem está errada é a Constituição. Não há democracia no mundo em que a execução de pena - ainda que provisória - não se dê pelo menos na 2ª instância. Todos os tratados de Direitos Humanos trabalham com o duplo grau de jurisdição. Essa é uma distorção colocada na Constituição. Esse dispositivo é irracional e um erro de formulação constitucional", avaliou.
Para o professor, o sistema recursal brasileiro dificulta a igualdade perante a lei. "Cada um consegue uma interpretação judicial afeita a sua condição social", afirmou.
Em sua avaliação, há uma percepção no país de que não existe hierarquização judicial e, assim, as decisões de tribunais superiores não seriam vinculantes nas instâncias inferiores. Sem isso, ponderou, a igualdade desaparece porque cada juiz vai julgar casos semelhantes de formas opostas.
Para Toldo, do TRF3, o Judiciário precisa funcionar com previsibilidade. Segundo ele, o caso da possibilidade de execução da pena para condenados em 2ª instância é exemplo disso. O magistrado considerou a mudança de posicionamento do ministro Gilmar Mendes sobre a questão "incompreensível".
“Na forma como defendeu sua posição no julgamento da medida cautelar, na forma como se coloca agora, é incompreensível. Ao menos para mim, como operador do Direito. Eu preciso de uma orientação do STF para saber como decidir", disse. 
Na noite desta segunda-feira (26/3), o JOTA apurou que o ministro Gilmar Mendes deu indicações de que comparecerá à sessão do plenário de retomada do julgamento do HC preventivo do ex-presidente Lula, no dia 4 de abril. Sua participação era dúvida e pode mudar o resultado do julgamento, segundo analistas da Corte.

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JOTA

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