Bárbara Pombo

Prestes a iniciar os trabalhos na presidência da comissão de juristas que proporá medidas para reduzir a burocracia no Brasil, o ministro Mauro Campbell Marques, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), afirma que, mais do que elaborar novas regras para descomplicar a vida das empresas e dos cidadãos, o grupo focará em meios de racionalização, eficiência e qualidade na prestação de serviços pelas repartições públicas, além de provocar a aplicação de normas já em vigor.
“Precisamos colocar o Estado no vagão do trem e o cidadão na locomotiva. Não o inverso. A máquina burocrática tem muito da cultura cartorária, que precisa ser enfrentada”, afirma o ministro, em entrevista ao JOTA.
Instalada no dia 02/09 no Senado, a comissão terá seis meses para propor novas regras ou sugerir ajustes a projetos de lei em trâmite no Congresso, com a adição ou supressão de artigos. Depois desse período, funcionará como órgão consultivo permanente do Senado, em que os juristas formularão pareceres ou notas técnicas sobre projetos de lei dos senadores. “A ideia é apontar as consequências ou as demandas que poderão ser criadas ou solucionadas com determinada medida proposta”, explica o ministro.
As áreas tributária, de infraestrutura, relações de trabalho, segurança pública e segurança jurídica terão a atenção da comissão, que terá como relator o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. O procedimento de desembaraço aduaneiro, de registro de boletins de ocorrência para abertura e fechamento de empresas serão alguns dos focos do grupo. Os juristas também deverão fazer estudos sobre gasto público e eficiência do Estado.
Para Campbell, desburocratizar significa exigir o formalismo na medida do indispensável para o interesse público e fechar os espaços que dão ensejo à venda de facilidades.  “A burocracia é um dos grandes fatores ocultos que fomentam a corrupção”, disse, acrescentando que o trabalho da comissão, no fim das contas, poderá reduzir o número de processos no seu próprio gabinete no STJ, onde são julgados litígios tributários, previdenciários e contra a administração pública.
A primeira providência adotada pelos juristas para evitar a cultura do carimbo foi desburocratizar o processo de trabalho da comissão. “Faremos muitas discussões por grupos de e-mail e reuniões por videoconferência”, diz Campbell.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
O que a comissão precisará entregar e da onde surgiu a iniciativa de propor medidas para reduzir a burocracia? É um problema muito antigo, que muitos já tentaram resolver, mas ainda sem pleno sucesso.
O senador Blairo Maggi [PR-MT] me relatou a dificuldade não só no setor em que ele atua empresarialmente [agronegócio], mas em vários setores, de que até mesmo as leis e decretos que já existem para desburocratizar o Brasil são feitas tábula rasa, quer dizer, ninguém dá valor e ninguém cumpre. A intensão é arrecadar todos os projetos e anteprojetos que já estejam em tramitação para observarmos se há alguma previsão desatualizada e sugerir ao relator alguma emenda ou destaque para seguir a votação. Não vamos redigir um código de desburocratização. Até porque a burocracia se atualiza às avessas. Vamos observar os gargalos da administração e, sempre que possível, vamos bem contaminar o Congresso, e ele o cidadão, sobre a necessidade de quebra de paradigmas. Há uma lei, por exemplo, que diz que não há necessidade de reconhecer firma de documento reproduzido. Mas se você chega ao balcão e te exigem o reconhecimento. A pessoa não reclama, quer dizer, não procura o Ministério Público ou alguma autoridade para pedir que ela cumpra a lei.
Mais do que de legislação, não teríamos um problema de conhecimento e aplicação das regras já postas?
Isso será feito pari passu. Observamos, na prática, que programas são elaborados de cima para baixo. Em alguns casos, por pessoas que não têm afeição ao serviço público, o que também gera burocracia. A burocracia é um dos grandes fatores ocultos que fomentam a corrupção em qualquer parte do mundo, opor obstáculos ou criar dificuldades para vender facilidades. Gestos pequenos podem corrigir a burocracia. O Estado é muito competente e eficiente quando se interliga para punir ou cobrar, mas ineficiente para facilitar a vida do cidadão.
Essa é uma questão cultural...
Ao mesmo tempo em que a gente possa normatizar algo é necessário fazer o trabalho de conscientização da população para que ela tenha mesmo ímpeto de cobrar as mudanças tão almejadas, de fazer valer nossos direitos para coisas muito simples e que o cidadão não se quede ao primeiro “não” do primeiro balcão. Uma das primeiras regras que estabeleci no meu gabinete foi de que se algum advogado ou parte vier no meu guichê e a informação que ela procura não estiver aqui o meu gabinete providencia a audiência no gabinete correto e o meu servidor leva a pessoa até o local. O temor reverencial da autoridade é muito grande no Brasil, então a pessoa precisa se sentir à vontade e saber que aqui ela manda. Colocar o Estado no vagão do trem e o cidadão na locomotiva. Não o inverso. A máquina burocrática tem muito da cultura cartorária, que precisa ser enfrentada.
Os cartórios vêm logo à cabeça quando falamos de burocracia. O trabalho da comissão terá foco neles?
Perguntaram-me se a comissão vai enfrentar os cartórios, eu respondi que não. Mas não posso falar em nome do Parlamento. O melhor será que os cartórios tragam subsídios e alternativas que facilitem a vida do cidadão. São coisas muito simples, como banco de CEP. Como as câmaras municipais alteram o nome dos logradouros e não comunicam a central do CEP, às vezes o processo está todo formalizado e é indeferido quando chega nos Correios porque o CEP não confere. Como o CEP registrado na junta comercial, por exemplo, não confere com o dos Correios para remeter à Receita Federal, o processo era anulado para ser refeito quando bastaria que houvesse uma comunicação entre os órgãos.
Colegas de Corte me chamaram a atenção para o fato de o Código Comercial enumerar taxativamente quais os documentos necessários para a abertura e encerramento da empresa. Mas veio uma Instrução Normativa (IN), da Receita Federal, dizendo que empresa não pode ser encerrada sem as certidões de regularidade fiscal. A IN faz remissão à lei, que não autoriza nada disso. Surge o debate de que o crédito tributário está constituído e, se tiver patrimônio a Fazenda vai atrás.
Na sua avaliação, onde estão os maiores gargalos da administração pública?
Há um reclamo – e será um dos focos de estudo – das empresas de exportação com o desembaraço aduaneiro e a fiscalização de perecíveis. A carga é fiscalizada pela Receita Federal, depois para novamente para ser fiscalizada pela Vigilância Sanitária, mais adiante para a Receita do Estado, depois para por causa da mudança de turno do fiscal e a carga está lá no congelador esperando. Há perda de qualidade e competitividade. Quando a experiência de outros países, inclusive de países vizinhos, é diferente e podemos aplicar. As Assembleias Legislativas do Rio Grande do Sul e do Amazonas, por exemplo, querem trazer subsídios a essa discussão.
Como vai organizar os trabalhos da comissão?
Na primeira reunião, vamos estabelecer os temas que serão enfrentados. Na área de segurança pública, por exemplo, podem ser aprimorados os procedimentos para registro de boletins de ocorrência, que hoje só podem ser elaborados pela polícia civil e não pela polícia militar que está na cena do crime. Outra parte da comissão vai trabalhar voltada para segurança pública, outra para a área fiscal, que trabalhará no aprimoramento do procedimento administrativo fiscal para que o Estado faça o mesmo exercício de eficiência que tem para cobrar para melhorar a vida do cidadão. O doutor Rachid [secretário da Receita Federal] falava para mim que estão trabalhando muito para que as execuções tenham curso e só cheguem à Justiça com o devedor e os bens identificados, e não ficar nesse círculo vicioso em que as prateleiras das varas da Fazenda Pública se abarrotam de processos e os créditos apodrecem ou desaparecem.
Todos perdem porque os procuradores da Fazenda trabalham com o que na origem quando tem um déficit de procuradores para atuar nos tribunais superiores e na segunda instância. Fica um faz de conta que o processo existe, que existem bens e pessoas. Muitas das vezes chega-se a constatação de que aquilo é crédito pobre ou pessoa nunca existiu, que era um laranja qualquer. Isso é canal aberto para a corrupção.
Por quê?
Porque se fosse apurado celeremente desde o início talvez nem se chegaria a execução, mas sim ao mandante ou o detentor do debito fiscal. Mas o processo se prolonga no tempo sem nenhum controle. Outro problema é na fixação de controles.
A comissão também trabalhará com isso, com a fixação de rotinas?
Sim, não podemos tratar a administração pública senão de forma sistêmica. Não há como resolver situação do bom atendimento no balcão se o requerimento do contribuinte não for bem instruído. A pessoa sairá da repartição com a sensação de que foi bem atendido, mas depois de meses e anos sem resolução fica com o sentimento de que foi tudo um engodo. O STJ, por exemplo, tem uma rotina administrativa que funciona muito bem. Como passamos a vida aqui dentro [nos gabinetes], os nossos motoristas ficariam a toa o dia inteiro a toa, jogando xadrez ou dama. Mas estacionavam o carro, subiam, tiravam os paletós para fazer triagem processual dos processos físicos. Eles faziam um curso. Isso não funciona mais porque o processo é eletrônico.
Hoje eles estão jogando dama?
Não, hoje eles trabalham em apoio à secretaria para não ficarem na ociosidade. A pessoa que iria apoiar vai para a área fim. Há um mecanismo de avaliação criterioso que funciona muito bem, de controle de qualidade, que deve ser feito na rotina administrativa. No Brasil, o concurso público nasce muito bom e sob o signo da eficiência, mas foi se massificando. A burocracia o massificou. Isso é que precisamos mudar porque senão máquina pública vai inchar cada vez mais. Não defendo redução do quadro, mas muitas vezes, não precisamos aumentá-lo.

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JOTA

Ministro do STJ coordenará comissão de juristas encarregada de desburocratizar a administração pública

Reduzir burocracia passa por aplicar normas já em vigor, afirma Mauro Campbell

Ministro do STJ coordenará comissão de juristas encarregada de desburocratizar a administração pública