Felipe Seligman

Um dos grandes desafios para a aprovação da Emenda 45, cujas primeiras medidas entraram em vigor há 10 anos, era conciliar interesses tão distintos e contraditórios. Simbolicamente, existia uma clara divisão entre dois grupos: de um lado, os magistrados não queriam a aprovação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), por entenderem que o órgão feriria a independência a autonomia dos tribunais; do outro, advogados eram contrários à súmula vinculante e repercussão geral, medidas que tinham o potencial de desafogar os tribunais superiores, mas também tirar a importância das primeiras instâncias da Justiça do país.
<a style="color: #ff6600;" href="https://www.jota.info/uma-decada-depois-da-caixa-preta">+JOTA: Uma década depois da caixa preta</a>
<a style="color: #ff6600;" href="https://www.jota.info/reforma-judiciario-e-os-acordos-para-aprova-la">+JOTA: Reforma do Judiciário e os acordos para aprová-la</a>
Esta terceira reportagem da série sobre os 10 anos da Reforma do Judiciário mostrará como tal divisão se dava e o que foi feito para solucioná-la. Incialmente, é importante frisar que essa divergência estava, inclusive, institucionalizada entre 2003 e 2004. Inicialmente, o Ministério da Justiça, conduzido por Márcio Thomaz Bastos, era contrário à aprovação da súmula vinculante e fazia questão de aprovar um Conselho Nacional de Justiça de fato externo - sem representantes do Judiciário. Ao tomar posse, chegou, inclusive, a deixar claro que pensava em recomeçar a discussão sobre pontos da PEC 96 que, aprovados na Câmara, estavam sob análise do Senado.
Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal tinha muitas reticências. O então presidente da Corte, Maurício Corrêa, era tão refratário à discussão, que evitava tratar do assunto. Quem assumiu a responsabilidade, então, foi seu vice, Nelson Jobim, que conhecia bem o tema e tinha grande habilidade política. <a href="https://www.jota.info/reforma-judiciario-e-os-acordos-para-aprova-la">Como descrito na reportagem anterior</a>, Jobim, com o apoio de Gilmar Mendes, passou a ajudar diretamente o relator do tema no Senado, José Jorge, na elaboração do texto que iria a votação. Internamente, convenceu os ministros — que gostavam da ideia de mecanismos para racionalizar os cada vez mais volumosos processos que chegavam ao tribunal. A matemática era simples: os ministros aceitavam a criação um conselho não tão externo assim (existem representantes do Supremo, STJ, entre outros juízes), e, em troca, conseguiriam a aprovação da súmula vinculante e repercussão geral.
Paralelamente, no Ministério da Justiça, a Secretária de Reforma do Judiciário havia percebido que encontraria muita resistência da magistratura para aprovar a criação de um conselho sem sua participação. O então secretário, Sérgio Renault, e seu principal assessor na época, Pierpaolo Cruz Bottini (que depois o substituiu), viajaram por todo o Brasil, e lembram que levaram “muita porrada” nesse processo. O próprio Maurício Corrêa, quando encontrava Renault, se referia a ele como “o homem da reforma”, num misto de ironia e descontentamento. Diante de tanta resistência, portanto, estavam dispostos a abrir mão desse ponto para seguir adiante. José Jorge conta que, certa vez, foi ao gabinete do ministro Márcio Thomaz Bastos e ouviu: “O importante é aprovar a criação do CNJ. Se isso acontecer, já seremos vencedores”.
Existia, no entanto, ainda o impasse sobre a súmula e repercussão geral e Jobim acabou agindo mais rápido. Certo dia, foi jantar com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Depois de um ou dois whiskys, convenceu o presidente que não seria possível aprovar a reforma sem a criação de tais mecanismos para racionalização do processo. Jogou no ar dados estatísticos que vinha coletando desde a revisão constitucional, em 1994. Na mesma época, foi até o então líder do governo no Senado, Aloízio Mercadante, economista de formação. Também a ele, mostrou os potenciais impactos positivos para a economia, como os tribunais funcionariam melhor, com redução de tempo e dinheiro.
Nessa época, Pedro Abramovay trabalhava com Mercadante no Senado. Lembra ter sido chamado, certa vez, pelo senador em seu gabinete. Quando entra na sala, Jobim estava lá. “Pedro, me convença a ser contra a súmula vinculante”. Não adiantava mais, ele já havia comprado a ideia.
O receio, como se sabe, era criar um superpoder da República. As súmulas vinculantes pegam temas já pacificados pela jurisprudência do tribunal e vinculam toda a administração pública. O Supremo teria em suas mãos um instrumento muito poderoso, que, em situação absurda, poderia engessar todos os Poderes. O Ministério da Justiça conseguiu ganhar tempo e, no texto, deixou-se claro que precisariam de leis específicas para regulamentar a aplicação e criação da súmula vinculante e repercussão geral.
Mas tudo estava lá. Em dezembro de 2004, a PEC 96 se transformou em Emenda 45, criando 0 CNJ e os dois polêmicos instrumentos. Passados os anos, as temidas preocupações iniciais não se concretizaram. O Conselho Nacional de Justiça foi, por duas vezes, questionado pelas associações de magistrados no Supremo Tribunal Federal que, em ambos os casos, reconheceu sua constitucionalidade. A súmula vinculante funciona bem, ajuda a reduzir o número de processos anualmente. O maior problema é a escolha dos temas e a redação de seus enunciados, mas nada que tenha, de fato, gerado crise institucional a ponto de colocar o tribunal como um superpoder. Já a repercussão geral é outra história. Sua criação passou um tanto quanto despercebida (o foco do debate era maior em torno da súmula), mas ela precisa de uma séria reformulação.
Muitos temas foram reconhecidos, nos últimos anos, e milhares de processos estão sobrestados em todo o país por conta disso. Há casos de <a href="https://www.jota.info/article2-repercussao-geral-por-omissao">reconhecimento da repercussão por omissão</a> — como o JOTA revelou no ano passado — ou uma previsão feita pelo repórter Felipe Recondo de que, no ritmo que está, o julgamento dos casos reconhecidos hoje <a href="https://www.jota.info/repercussao-geral-em-2014">só serão encerrados em 2040</a>. Mas, para resolver esses problemas, a reforma precisa continuar.
*A próxima reportagem mostrará o papel do professor da FGV-Rio, Joaquim Falcão, no processo da Reforma do Judiciário e o Primeiro Pacto Republicano.

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JOTA

Reportagem conta como divergências foram resolvidos para a aprovação da Emenda 45

Os impasses da Reforma do Judiciário

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