
A composição atual de juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) completou um ano de trabalho, em 7 de fevereiro deste ano, com deliberações que consolidaram, alteraram e acrescentaram novos entendimentos à jurisprudência construída pelo tribunal interamericano.
A posse do colegiado, em 7 de fevereiro de 2022, foi por si só algo histórico: foi a primeira vez na história da Corte que três mulheres compuseram o corpo de juízes ao mesmo tempo – Nancy Hernández (Costa Rica), Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).
Além disso, também foi empossado o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, o segundo mais jovem (então com 36 anos) a assumir uma cadeira na Corte IDH após ser o mais votado para o cargo, com 19 dos 24 votos possíveis.
De acordo com o presidente da Corte, o uruguaio Ricardo Perez Manrique, o ano judicial de 2022 contou com a realização de 42 audiências públicas e três diligências sobre casos contenciosos. Também foram emitidas 25 sentenças e nove interpretações, assim como uma opinião consultiva.
Na abertura do ano judicial de 2023, ele elencou vários avanços jurisprudenciais no ano que se passou. “Em 2022, a Corte pôde se posicionar sobre temas como a independência judicial, a liberdade de expressão e suas responsabilidades, os direitos políticos e de liberdade de expressão de partidos de oposição e a responsabilidade do Estado por repressão e extermínio motivados por ideologia política; o direito das mulheres a uma vida livre de violência, a violência obstétrica, os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, os limites da pena de morte, os requisitos para legitimar uma prisão preventiva, entre outros importantes temas”, elencou Manrique.
Para ilustrar os avanços citados pelo presidente, o JOTA listou nove fatos marcantes do último ano de trabalho que tiveram impacto na jurisprudência da Corte IDH:
1) Caso Alberto Fujimori – suspensão de indulto
A primeira deliberação da nova composição da Corte IDH, empossada no começo de 2022, foi uma sentença para que o Peru suspendesse a soltura do ex-presidente Alberto Fujimori, condenado a 25 anos de prisão por participação em dois massacres que resultaram em 25 assassinatos, entre 2001 e 2007.
Fujimori, de 84 anos, teve habeas corpus concedido pelo Tribunal Constitucional do Peru, que restituiu os efeitos de um perdão presidencial concedido em 2017 pelo então presidente peruano Pedro Pablo Kuczynski, conhecido como PPK.
Na ocasião, PPK justificou que o indulto era por “razões humanitárias”. O objetivo, no entanto, era agradar alas políticas na tentativa de evitar um impeachment após uma série de escândalos no governo. PPK renunciou em 2018 e o indulto caiu 10 meses depois de ser anunciado. A Corte IDH se manifestou contra o indulto nos anos seguintes.
Depois de ouvir representantes das vítimas, a Corte IDH entendeu que o Peru não cumpriu as condições necessárias para a soltura, porque a Suprema Corte deixou de considerar que Fujimori não pagou a reparação civil a vítimas, conforme imposto na condenação, além de não ter levado em conta alternativas para o cumprimento da pena.
Também não haveria detalhes que embasassem a necessidade de atenção especial de saúde para o ex-presidente, além de a decisão local “não ter feito nem a mínima referência às graves violações de direitos humanos pelas quais Alberto Fujimori fora condenado”.
O cumprimento da sentença da Corte IDH para suspensão da soltura foi confirmado pelo procurador-geral do Peru, Carlos Reaño, durante audiência realizada em 1º de abril de 2022. Fujimori segue preso, sem previsão de libertação.
2) Caso Moya Chacon – liberdade de imprensa
Os juízes da Corte IDH condenaram a Costa Rica pela violação dos direitos à liberdade de pensamento e de expressão dos jornalistas Ronald Moya Chacón e Freddy Parrales Chaves, responsabilizados civilmente, de forma desproporcional, pela publicação de uma reportagem com informações equivocadas.
Os jornalistas haviam publicado uma reportagem no jornal costa-riquenho La Nación em que diziam que um delegado de polícia estava sendo investigado por facilitar o tráfico de bebidas. A informação, que depois se provou equivocada, havia sido fornecida pelo então ministro da Segurança Pública, Rogelio Ramos. Na verdade, o delegado estava sendo investigado por extorsão. Pelo erro, os jornalistas foram processados criminalmente — e absolvidos nesta esfera — e condenados civilmente a pagar ¢5 milhões, o equivalente a R$ 36 mil.
Ao julgar o caso, a Corte IDH anulou a condenação e determinou a reparação por dano imaterial aos jornalistas no valor de US$ 20 mil, o equivalente a R$ 103,2 mil, além do pagamento dos custos que eles tiveram com os processos. Além disso, a sentença e os votos trazem diversas ponderações a respeito do trabalho da imprensa, que devem balizar o Judiciário dos países signatários do Pacto de San José da Costa Rica.
A decisão é relevante por apontar como o Judiciário deve tratar a liberdade de imprensa com maior deferência, de forma que não haja um efeito dissuasório na investigação e divulgação de informações de interesse público. Espera-se que estes apontamentos se espraiem para os países-membros da Corte, inclusive para o Brasil.
O juiz Rodrigo Mudrovitsch, representante brasileiro na Corte IDH, apresentou um voto focado em confrontar o uso de medidas penais para limitar o direito à liberdade de expressão.
O magistrado percorreu a jurisprudência da Corte, desde a Opinião Consultiva n. 05 (1985), que tratou da convencionalidade do registro profissional obrigatório de jornalistas na Costa Rica, para demonstrar preocupação com a vigência da Lei de Imprensa invocada contra os jornalistas.
Segundo o magistrado, embora a absolvição tenha minorado as consequências do processo penal instaurado, apenas o fato de a lei contra jornalistas existir já pode causar um “efeito amedrontador” na sociedade.
O julgado gerou um precedente importante para os países signatários da Convenção Americana, no sentido de oferecer maior proteção a jornalistas. No Brasil, a tendência é que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça lidem com este precedente em casos semelhantes, mesmo que seja para afastá-lo.
Além disso, o presidente da Costa Rica, Rodrigo Chaves, citou expressamente o voto de Rodrigo Mudrovitsch ao requerer ao Congresso uma mudança na Lei de Imprensa.
3) Caso Guevara Diaz – justiciabilidade dos Desca
Por quatro votos a dois, os juízes consideraram que os Desca são equivalentes, indivisíveis e interdependentes dos direitos civis e políticos contidos na Convenção Americana – ou seja, julgaram que o Estado deve ser responsabilizado por violar um desses direitos (o direito ao trabalho, no caso específico), com base no artigo 26 do tratado internacional.
A sentença responsabilizou a Costa Rica pela discriminação cometida contra Luis Fernando Guevara Díaz, um cidadão que passou em um concurso estatal em primeiro lugar e foi preterido em razão da sua condição intelectual.
A principal controvérsia do caso está na interpretação do artigo 26 para considerar se há ou não justiciabilidade dos Desca e, portanto, se é possível reconhecer a violação do direito ao trabalho por meio desse trecho da Convenção Americana.
Nas primeiras décadas de Corte, prevalecia o entendimento de que o tribunal não teria competência jurídica para declarar violações autônomas dos Desca, apenas de direitos civis e políticos estabelecido no tratado. Conforme esta linha, os Estados deveriam ser responsabilizados por não cumprir as obrigações de desenvolvimento progressivo e não regressivo, mas não pelos direitos em si. Esta é a posição em que se mantêm os juízes Sierra Porto e Patrícia Goldberg, vencidos.
A interpretação do artigo 26 começou a mudar em 2009, no caso Acevedo Buendia e outros x Peru, em que os representantes das vítimas sustentaram que a falha do Estado em dispor sobre o pagamento de benefícios a centenas de empregados demitidos violaria seu direito à seguridade social, e que este direito estaria contemplado no artigo 26 da Convenção. Naquele momento, a Corte reconheceu, pela primeira vez, sua competência para julgar violações ao artigo.
Em 2013, as bases argumentativas dessa linha se consolidaram com o voto do juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (mexicano, ainda presente na composição da Corte) no caso Suarez Peralta x Equador. Naquele momento, se solidificou, a partir da interpretação do artigo 26 em casos prévios, a ideia de interdependência e indivisibilidade dos direitos civis e políticos dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Embora vencido na ocasião, o voto de Mac-Gregor serviu de base para casos posteriores e, a partir de 2017, passou a ser a posição vencedora entre os juízes da Corte, como ocorreu nos casos Poblete Vilches x Chile (2018), em Muelle Flores x Peru (2019), Extrabajadores del Organismo Judicial vs. Guatemala (2021) e caso Veras Rojas vs. Chile (2021).
Em voto convergente no caso Guevara Diaz, o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch corroborou os argumentos em favor da justiciabilidade dos Desca. Ele defendeu que, em que pese as divergências, há uma jurisprudência consolidada em relação ao tema.
‘Defendo, a par disso, que o arcabouço interpretativo desenvolvido em torno da aplicação dos DESCA já foi incorporado à linguagem da Corte e dos Estados, bem como de outros atores que formam uma verdadeira sociedade aberta de intérpretes da Convenção. O caminho a ser percorrido, pois, não é o de desconstrução do bloco de precedentes que reconhece a justiciabilidade dos DESCA, mas, sim, o de evolução na elaboração de parâmetros remediais sólidos para a interpretação e aplicação do art. 26 da Convenção”, escreveu Mudrovitsch no voto.
4) As sessões da Corte IDH no Brasil
Não se trata exatamente de um caso, mas as sessões da Corte IDH no Brasil foram importantes para fortalecer o diálogo do país com o tribunal. A convite do governo brasileiro, a Corte IDH realizou em Brasília, entre os dias 22 e 27 de agosto de 2022, o seu 150º Período de Sessões.
O intercâmbio foi inaugurado com o seminário “Controle de Convencionalidade e Grupos em Situação de Vulnerabilidade”, que contou com homenagem ao jurista Antônio Augusto Cançado Trindade, ex-presidente da Corte IDH, morto aos 74 anos em 29 de maio de 2022.
Participaram da celebração os atuais juízes da Corte, colegas do Direito Internacional, diplomacia e os três filhos do jurista – Otávio, Vinícius e Adriano.
Durante o período, foram realizadas quatro audiências públicas de casos contenciosos e uma sentença foi deliberada. Estiveram na pauta os casos Povos Indígenas Tegaeri e Taromenane Vs. Equador, Oliveira Fuentes Vs. Peru, Álvarez Vs. Argentina e García Rodríguez e Reyes Alzipar Vs. México.
Ao fim das atividades no Brasil, o presidente da Corte Interamericana, o juiz uruguaio Ricardo Pérez Manrique, afirmou que jamais sentiu o Brasil tão próximo do tribunal.
“Acreditamos que este é o momento em que, ao longo da história, o Brasil se abriu com maior amplitude a um diálogo com o Sistema Interamericano [formado pela Corte e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos]. O país nunca esteve tão próximo, e a Corte valoriza isso enormemente”, disse, em entrevista exclusiva concedida ao JOTA.
Entre os ganhos efetivos com a presença da Corte em Brasília, Manrique destacou a celebração de convênios com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Fundação Getúlio Vargas (FGV), para a troca de conhecimento relacionado a direitos humanos, além de um acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
5) Caso Benites Cabrera – afirmação de uma hermenêutica integral da Convenção Americana
O caso refere-se à rescisão arbitrária do contrato de 184 servidores públicos no âmbito do chamado “programa de racionalização de pessoal”, implementado no Peru depois que o ex-presidente Alberto Fujimori dissolveu o Congresso, em 1992.
Os funcionários foram avaliados e demitidos após duas resoluções administrativas do governo. Eles foram proibidos de ingressar com ações judiciais para contestar as rescisões.
Na sentença, os juízes consideraram que os trabalhadores atuavam em um contexto de ineficiência das instituições judiciais, ausência de garantias de independência e imparcialidade e falta de clareza sobre como recorrer das demissões. Por isso, responsabilizaram o Estado por violações de direitos políticos, às garantias judiciais e ao trabalho.
A declaração de responsabilidade internacional pela violação ao direito ao trabalho, com base no artigo 26 da Convenção Americana, é uma novidade que contrasta com dois precedentes anteriores do tribunal interamericano, originados no mesmo contexto e fatos semelhantes, nos casos dos Demitidos do Congresso e outros (2006) e Canales Huapaya e outros (2015), ambos contra o Peru.
Outra inovação em relação aos precedentes mencionados é a declaração de violação do direito de “ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país”, previsto no artigo 23.1.c do tratado internacional.
Ao se defender, o Estado do Peru contestou a responsabilização pela violação do direito ao trabalho sob a interpretação de que o artigo 26 da Convenção não permite que os Desca sejam justiciáveis e autônomos.
Em voto concorrente, no entanto, os juízes Eduardo Mac-Gregor (México) e Rodrigo Mudrovitsch (Brasil) reforçaram a ideia de uma hermenêutica integral da Convenção Americana. Para eles, ao analisar possíveis violações, é preciso considerar que todos os direitos são parte de um sistema e devem ser analisados conjuntamente, sem que um exclua o outro.
“Os artigos substantivos da Convenção Americana, em outras palavras, não constituem uma mera lista de direitos que devem ser protegidos e garantidos pelos Estados. Eles são, de fato, peças de um verdadeiro sistema de direitos humanos que integra ‘elementos particulares em uma estrutura que faz sentido intelectualmente’. Essa hermenêutica sistêmica torna inoportuno declarar o descumprimento de um ou outro dispositivo da Convenção, considerado individualmente, sem analisar sua interação com o conjunto de dispositivos estabelecidos pelo tratado. Fazê-lo seria desrespeitar a dignidade da pessoa humana, porque subjacente à ideia de sistematicidade está o imperativo de que as pessoas, por serem dotadas de razão, sejam tratadas de forma adequada à razão, em que as normas não se excluam mutuamente, mas se relacionem”, escreveram os magistrados.
Para Mac-Gregor e Mudrovitsch, portanto, os Desca devem ser protegidos da mesma forma que outros direitos previstos no tratado internacional. Eles citam que a justiciabilidade dos Desca é algo que se consolidou na linguagem do sistema americano de proteção de direitos humanos.
“A concessão a cada direito de sua autonomia e alcance diferenciado de proteção é consistente com os avanços interpretativos desta Corte Interamericana nos últimos cinco anos. E também é coerente com os tempos atuais e com as interpretações feitas pelos tribunais nacionais —especialmente os tribunais constitucionais, tribunais ou câmaras da América Latina—, concedendo plena justiciabilidade às demandas relacionadas com a violação do direito ao trabalho; não apenas à luz das constituições nacionais e dos tratados internacionais que a consagram, mas também considerando a jurisprudência da Corte Interamericana, que permite maior intensidade no diálogo jurisprudencial e na dinâmica de controle de convencionalidade do que nos últimos anos realiza no região”, pontuaram os juízes.
6) Caso Angulo Losada – consentimento como eixo central em casos de violência sexual
A condenação da Bolívia por violar direitos fundamentais de Brisa Ângulo Losada, violentada sexualmente aos 16 anos pelo primo, gerou precedentes relevantes para todos os países do sistema interamericano, incluindo o Brasil.
Brisa Losada foi vítima de uma série de procedimentos julgados incompatíveis pelo tribunal, como a realização de oitivas feitas por médicos homens e exames ginecológicos considerados desnecessários, além de diligências judiciais que colocavam em dúvida a palavra da vítima. Ela passou por procedimentos penais em três instâncias, mas o processo terminou prescrito, em setembro de 2022, depois de mais de 20 anos de tramitação.
Para os juízes do tribunal interamericano, o processo judicial ao qual Brisa Losada foi submetida e a consequente impunidade do acusado violaram os direitos à integridade pessoal, às garantias judiciais, à vida privada e familiar, à igualdade perante a lei e à proteção judicial e dos direitos da criança.
Pelas violações, o país foi condenado a adaptar sua legislação de forma que o consentimento — e não o binômio violência e resistência — seja o eixo central em casos de violência sexual.
No caso de Brisa Losada, as autoridades bolivianas adotaram visões estereotipadas e discriminatórias ao exigir evidências de violência, resistência ou gritos, conforme pontuou o juiz brasileiro na Corte IDH, Rodrigo Mudrovitsch.
Em voto apartado, o juiz destacou que a divisão de crimes sexuais em vários tipos penais e o condicionamento à “intimidação, violência física ou psicológica” é característica ainda comum aos países latino-americanos, o que acarreta violações de direitos das vítimas.
Segundo Mudrovitsch, para que a reparação seja efetiva no caso, é preciso que a Bolívia (e todos os países signatários da Convenção Americana) incorpore de forma precisa o critério do consentimento ao Código Penal e elimine o tipo “estupro”, condicionado a violência ou ameaça.
Mudrovitsch também defendeu a adoção de um “nomen juris” próprio — ou seja, um tipo com nomenclatura própria — relativo à violação sexual incestuosa no Código Penal Boliviano, com objetivo de aumentar a visibilidade e a reprovabilidade desta conduta. Ele citou como exemplo o caso do Brasil, que passou a dar maior visibilidade a casos de homicídio de mulheres por razões de gênero com a titulação da conduta qualificadora como “feminicídio”.
7) Caso Valencia Campos – invasões domiciliares noturnas
No caso concreto, o Estado foi condenado por violar direitos fundamentais de 26 vítimas de violência policial durante invasões domiciliares ilegais e detenções realizadas em La Paz, em 2001.
As ordens foram expedidas depois que um grupo organizado assaltou um carro-forte, em setembro do mesmo ano. A partir do crime, foram ordenadas buscas em seis imóveis.
Segundo a denúncia feita à Corte IDH, os policiais invadiram as casas durante a madrugada, inclusive entrando em moradias que não constavam nas ordens judiciais. Eles utilizaram força excessiva e torturaram várias vítimas, conforme depoimentos de vítimas.
Os juízes Rodrigo Mudrovitsch e Nancy Hernández, da Costa Rica, fizeram um voto conjunto para aprofundar considerações específicas sobre as invasões domiciliares noturnas, realizadas no caso concreto.
De acordo com os magistrados, a utilização do recurso fere a Convenção Americana, salvo em casos de situações “absolutamente excepcionais”. Por isso, eles defendem que as invasões domiciliares noturnas sejam vedadas por lei, com o intuito de proteger os direitos à vida privada, ao domicílio e à proteção da família — com destaque ao dever de proteção reforçado por parte do Estado em relação aos grupos especialmente vulneráveis.
Ao fundamentar o posicionamento, Mudrovitsch e Hernández classificam a residência como local significante de proteção da vida privada, da intimidade e da sociabilidade, que não devem ser violados, exceto em raríssimas exceções.
Mudrovitsch e Hernández sugerem que as leis tenham critérios claros para as situações excepcionais, que assegurem que não haja violações domiciliares de acordo com o critério contido no artigo 11.2 da Convenção Americana, que prevê a do domicílio contra “ingerências arbitrárias ou abusivas”.
“A partir disso, conclui-se que um critério a ser obrigatoriamente observado no caso da exceção decorrente de flagrância é a factual existência de uma justificativa prévia e conforme ao direito, que permita a invasão domiciliar. Isso significa que a constatação de flagrante delito deve ser anterior ao ingresso ao domicílio, não podendo-se tratar de justificativa posterior. Caso contrário, encontrar-se-ia no caso de uma medida arbitrária, vedada pela Convenção”, afirmaram os magistrados.
8) Caso Tzompaxtle Tecpile – mudanças no ordenamento jurídico do México
A partir de detenções ilegais de três indígenas, em 2006, os juízes analisaram a convencionalidade de duas figuras jurídicas controversas presentes na legislação interna do México: o “arraigo”, uma prisão preventiva sem ordem judicial para investigar pessoas suspeitas de ligação com o crime organizado, e a prisão preventiva de ofício.
A Corte responsabilizou o Estado mexicano por violar direitos de Jorge Marcial Tzompaxtle Tecpile, Gerardo Tzompaxtle Tecpile e Gustavo Robles López, encarcerados arbitrariamente depois de pedir ajuda a policiais para consertar o carro em que estavam, em uma rodovia próxima à cidade de Veracruz, no Golfo do México.
Com o trio, a polícia encontrou livros de ideias do revolucionário russo Lênin, jornais, revistas, um documento com os dizeres “morte ao imperialismo” e uma foto do guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Encerrada a inspeção, os homens acabaram presos por suspeita de ligação com o crime organizado.
Os indígenas foram levados a uma prisão de segurança máxima na capital, Cidade do México, onde ficaram presos por dois anos e meio. Em audiência pública frente à Corte IDH, em 23 de junho de 2022, Jorge Tzompaxtle contou que ficou meses sem saber por que foi preso e que ficou restrito de comunicação com a família. Ele disse que, logo que foi detido, foi submetido a vários interrogatórios sem a presença de um defensor, além de passar por situações como a de receber uma ordem para tirar a roupa para que se buscasse marcas de bala em seu corpo.
Na mesma audiência pública, Alejandro Celorio, representante do Estado na audiência, reconheceu que o Estado do México violou, no caso concreto, uma série de direitos fundamentais previstos na Convenção Americana. Para ele, houve uma “incorreta aplicação” do arraigo e da prisão preventiva.
O representante estatal, no entanto, disse que os instrumentos jurídicos questionados “já não são mais os mesmos” da época dos fatos, já que houve reformas no México que os tornaram mais restritos e controlados. Ele sugeriu que o arraigo e a prisão preventiva de ofício sejam mantidos no México.
Mesmo com a justificativa do representante do Estado, os juízes da Corte IDH consideraram que, por se tratar de uma medida restritiva de liberdade de caráter preliminar para fins investigativos, o arraigo fere a Convenção Americana, em particular os direitos à liberdade pessoal e à presunção de inocência, e por isso deve ser extinto.
Como medidas de reparação, o tribunal ordenou que o México anule as disposições relativas ao arraigo do seu ordenamento jurídico e adapte as regras sobre prisão preventiva. Também determinou que o país preste assistência psicológica às vítimas e as indenize.
9) Caso Daniel Ortega – Nicarágua em desacato permanente
O Estado da Nicarágua foi declarado pela Corte IDH em desacato permanente por descumprir seis decisões judiciais para libertar 46 opositores do regime do presidente Daniel Ortega.
A Corte criticou a posição assumida pelo país da América Central e a “efetiva inobservância” do que foi ordenado nas resoluções de 24 de junho, 9 de setembro, 4 e 22 de novembro de 2021 e 25 de maio e 4 de outubro de 2022. De acordo com o tribunal, o comportamento contraria o princípio internacional de acatar suas obrigações de boa-fé e agrava a situação de risco na qual encontram os beneficiários das decisões.
O desacato permanente é um reconhecimento político e jurídico de que um Estado-membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) não cumpriu com as determinações do tribunal. Isso pode gerar consequências políticas, econômicas e diplomáticas, como um pedido de suspensão ou até expulsão da Nicarágua da Organização dos Estados Americanos, deixando o país uma condição de “pária internacional”.
A Corte IDH encarregou o presidente do tribunal de levar um relatório ao Conselho Permanente da OEA sobre a situação de desacato permanente, bem como a de “absoluta desproteção em que se encontram os beneficiários das medidas provisórias”.
A partir disso, a entidade pode apresentar em sua assembleia-geral anual, da qual participam observadores internacionais, inclusive da Organização das Nações Unidas (ONU) e União Europeia, o caso de descumprimento da Nicarágua com relação aos direitos humanos.