Guilherme Pimenta

Mariana Muniz

Um padre que entrou na Justiça para impedir o aborto de um feto com má-formação foi condenado a indenizar um casal em R$ 60 mil. A decisão, unânime, é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que julgou o caso na quinta-feira (20/10).
A mulher obteve em 5 de setembro de 2005 autorização judicial para interromper a gestação. O feto era detentor da síndrome de Body Stalk, uma condição rara e incurável que consiste na inexistência do cordão umbilical do bebê. Por isso, a parede abdominal do embrião não fecha, deixando os órgãos expostos.
O padre, Luiz Carlos Lodi da Cruz, é presidente do movimento Pró-Vida da cidade goiana de Anápolis. Um mês depois de a gestante obter decisão favorável ao aborto, ele impetrou habeas corpus para impedir a interrupção da gestação. O Judiciário aceitou o pedido.
Diante da situação, os pais do feto, moradores de Morrinhos, em Goiás, ajuizaram ação por danos morais contra o padre. O caso chegou ao STJ depois que o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) entendeu que a atuação de Lodi foi legítima.
Mas para a relatora do Recurso Especial 1.467.888/GO, ministra Nancy Andrighi, o padre abusou do seu direito de acionar Judiciário. Daí a necessidade de indenizar o casal.
"Sob a égide da laicidade do Estado, aquele que se arrosta contra o direito à liberdade, à intimidade e a disposição do próprio corpo por parte de gestante, que busca a interrupção da gravidez de feto sem viabilidade de vida extrauterina, brandindo a garantia constitucional ao próprio direito de ação e à defesa da vida humana, mesmo que ainda em estágio fetal e mesmo com um diagnóstico de síndrome incompatível com a vida extrauterina, exercita, abusivamente, seu direito de ação”, defendeu a ministra, no voto.
Para a relatora do caso, a atuação do padre foi uma manobra de impactos emocionais incalculáveis. “O sofrimento do casal – e não canso de repetir, principalmente o da gestante – ganhou contornos trágicos com a liminar conseguida pelo recorrido [padre], que obrigou a equipe médica a interromper o uso da medicação, quando já havia início de dilatação”.
Depois de obter a decisão favorável à antecipação terapêutica do parto, a gestante foi internada para receber medicação para provocar o procedimento. Três dias depois, o tratamento foi interrompido pela liminar obtida pelo padre. Depois de oito dias, a gestante voltou ao hospital para ter o bebê, que morreu 1 hora e 40 minutos após nascer.
“Esse exaustivo trabalho de parto, com todas as dores que lhe são inerentes, e que na espécie, provavelmente foram potencializadas pelo forte estresse sofrido e talvez pela inapropriada preparação do organismo da recorrente ao antecipado trabalho de parto (a gestação recém ultrapassara o quinto mês), dão o tom, em cores fortíssimas, do intenso dano moral suportado, tanto pela recorrente quanto pelo recorrente”, argumentou Andrighi, em referência tanto à mãe quanto ao pai da criança.
Todo o processo de trabalho de parto e, ao final, de providenciar o registro de nascimento e óbito da criança, além do enterro, ampliam, segundo a ministra, o escopo da atuação do padre.
Pelo nascituro 
O padre, na peça inicial de defesa, argumenta que agiu em defesa do nascituro. Isto porque entende que o feto, com maior ou menor expectativa de vida, é destinatário de proteção legal, e que as autorizações para abortos ferem o direito básico à vida existente desde o momento primeiro da concepção.
“Não podendo e não devendo fazer sua posição prevalecer por meio da força, deve, por óbvio, procurar defender seu ponto de vista perante o Poder Judiciário. Foi a postura adotada. A decisão não foi de Luiz Carlos Lodi da Cruz, mas do Poder Judiciário”, diz a defesa do padre.
Em seu voto, a ministra aponta que o sacerdote abusou do direito de ação, pois acionou o Judiciário para impor seus conceitos. Ela adota a hipótese da responsabilidade processual objetiva.
A 3ª Turma concluiu que, diante de um quadro de abuso de direito e responsabilidade objetiva, existe o dever do padre de reparar o dano causado à gestante.
“A busca do Poder Judiciário por uma tutela de urgência traz, para àquele que a maneja, o ônus da responsabilidade pelos danos que porventura a concessão do pleito venha a produzir, mormente quando ocorre hipótese de abuso de direito”, escreveu Andrighi, que citou ainda a jurisprudência da Corte no mesmo sentido.
Aborto legal
Recorrendo à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que permitiu o aborto de anencéfalo, a ministra reforçou a legalidade da interrupção da gestação no caso da síndrome de Body Stalk.
Apesar de o julgamento do STF na ADPF 54 ter ocorrido em 2012 - depois dos acontecimentos analisados pelo STJ - , a relatora frisou que seus efeitos são intertemporais e devem, consequentemente, orientar a atual linha de pensamento do STJ.
Na ótica da ministra, a decisão do Supremo se prolonga para todas as hipóteses de má-formação incompatível com a vida.
“Reproduzidas, salvo pela patologia em si, todos efeitos deletérios da anencefalia, também na síndrome de body-stalk, e exsurgindo dessas símeis situações, a mesma gama de direitos protegidos e flexibilizados, tem-se como corolário, dizer-se que a interrupção da gravidez, nas circunstâncias que experimentou a recorrente, era um direito próprio, do qual poderia fazer uso, sem risco de persecução penal posterior e, principalmente, sem possibilidade de interferências de terceiros, na tentativa de obstar sua decisão”, escreveu.
A proteção aos direitos do nascituro, segundo Andrighi, não pode ser absoluta:  precisa ser relativizada perante a defesa da saúde materna e também, da saúde emocional da mãe, como ocorre no caso de mãe vítima de estupro.
“É dizer: o incalculável sofrimento e angustia da mãe, autorizam, por si só, a interrupção da gravidez. Na hipótese analisada na ADPF 54 e também neste recurso especial – a inviabilidade da vida extrauterina – à intensa dor emocional, soma-se o incontornável vaticínio de óbito da criança logo após o parto, se até lá chegar a gestação”, afirma a ministra.
Responsáveis 
Para a advogada Renata Di Pierro, civilista e especialista em Direito de Família, chama atenção o fato de que apenas o padre ter sido responsabilizado, e não o Poder Judiciário. "Qualquer cidadão pode entrar com HC na Justiça, e quem decide é o Judiciário. Não está esclarecida qual a responsabilidade da Justiça", afirma a advogada.
Para ela, na época, em 2005, ainda não estava clara a questão do aborto em casos de anencefalia. O Supremo Tribunal Federal (STF) só veio a decidir sete anos depois, quando despenalizou a interrupção nesses casos por 8 x 2 votos.  "Até na Corte máxima a matéria foi controvertida", diz Renata.
Outro lado
A reportagem do JOTA não conseguiu contato com o padre nem com a advogada Marina Ribeiro da Silva, que o representou no caso.
Por telefone, a secretária de Lodi disse que "muita gente da imprensa" estava ligando, e que ele estava avaliando se daria entrevista. A advogada não foi encontrada.
A história foi documentada  no filme Habeas Corpus, de Débora Diniz e Ramon Navarro, que pode ser visto aqui: https://vimeo.com/6123069

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JOTA

Para STJ, sacerdote abusou do direito de acionar Judiciário "para impor seus conceitos"

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