Ditadura militar

MPF arquiva investigações de crimes contra a humanidade com base na Lei de Anistia

Em ao menos um dos casos, a 2ª Câmara de Coordenação e Revisão já havia reconhecido o crime como contra a humanidade imprescritível

MPF arquiva crimes contra humanidade
Um dos casos arquivados é o de Ana de Miranda | Crédito: Reprodução/Facebook

A 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (CCR) do Ministério Público Federal (MPF) arquivou três investigações sobre delitos supostamente cometidos por agentes públicos durante a ditadura militar, mencionando a Lei de Anistia ou a pendência de julgamentos no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a sua incidência. Mas, em ao menos um dos casos, o próprio órgão já havia afastado a aplicação da referida lei: é o processo 5054940-83.2022.4.02.5101, que trata de torturas e maus-tratos sofridos por Ana de Miranda Batista entre 1968 e 1974. 

A CCR é o órgão que dá a palavra final sobre manutenção ou arquivamento de uma investigação. O colegiado pode ser acionado diretamente pelo procurador da República ou quando o juiz do caso não concorda com o pedido de arquivamento feito pelo MPF. Neste último caso, o procurador da República havia feito o pedido diretamente para o colegiado em 2019. À época, a 2ª CCR não concordou e invocou precedente do próprio órgão, para afirmar que “a Lei de Anistia não deve ser aplicada a agentes de crimes praticados pelo aparelho repressivo do Estado durante o regime militar”. A CCR reconheceu o caso como sendo de crime contra a humanidade imprescritível, e assim determinou o prosseguimento das investigações. 

No ano passado, no entanto, houve um novo pedido de arquivamento, desta vez dirigido ao juiz do caso. O argumento foi de que a investigação não poderia prosseguir antes do julgamento, pelo STF, dos embargos de declaração na ADPF 153 (pendentes desde 2010), e da ADPF 320 (pendente desde 2014), que procuram restringir a aplicação da Lei de Anistia, já considerada constitucional pela Suprema Corte na própria ADPF 153, sob pena de cabimento de reclamação.

Em decisão de outubro de 2022, o juiz federal Frederico Montedonio Rego, da 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, não concordou com o pedido de arquivamento. Lembrou que a própria CCR já havia reconhecido que o caso envolvia crimes contra a humanidade imprescritíveis, e acrescentou que, mesmo que o STF tenha reconhecido a constitucionalidade da Lei de Anistia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já declarou a incompatibilidade da referida lei com a Convenção Americana de Direitos Humanos (casos Gomes Lund v. Brasil, 2010, e Herzog v. Brasil, 2018). 

O próprio STF entende que os tratados internacionais de direitos humanos estão acima das leis brasileiras, como ocorreu no julgamento sobre a prisão civil do depositário infiel. Neste caso, apesar de constitucional, a hipótese foi julgada incompatível com a convenção. Assim, embora o STF tenha considerado a Lei de Anistia constitucional, ela seria inválida por violação à Convenção Americana. Para o juiz, fica claro que não seria necessário aguardar os julgamentos pendentes no STF para o prosseguimento das investigações. Segundo ele, não caberia reclamação ao STF por violação à ADPF 153, pois o parâmetro de controle para a afirmação da nulidade da Lei de Anistia seria a Convenção, não a Constituição.

O juiz aplicou o mesmo entendimento nos outros dois pedidos de arquivamento do MPF: um sobre o desaparecimento forçado de Joaquim Pires Cerveira, em 1973 (processo 5054888-87.2022.4.02.5101), e outro relacionado a vários supostos crimes cometidos no âmbito da Operação Condor (processo 5054980-65.2022.4.02.5101). Diferentemente do caso de Ana de Miranda Batista, esses outros dois casos não haviam tramitado anteriormente pela Câmara de Coordenação e Revisão. Assim, o juiz encaminhou para a CCR os três casos – Ana de Miranda Batista, Joaquim Pires Cerveira e Operação Condor –, para a palavra final do órgão sobre os pedidos de arquivamento.

Desta vez, em fevereiro passado, a subprocuradora-geral da República Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, titular da 2ª CCR e relatora do caso de Ana de Miranda Batista, votou pelo arquivamento. Frischeisen disse compreender que o STF deveria alterar seu entendimento sobre a Lei de Anistia. E, por isso, ela considerou inviável o ajuizamento da ação penal enquanto não houver deliberação definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 320. Para isso, invocou o art. 93 do Código do Processo Penal (CPP), que prevê a suspensão do processo penal, “por prazo razoável”, quando o reconhecimento da existência do crime dependa do julgamento de outra ação sobre questão “de difícil solução”. 

Também em fevereiro, foram arquivados os outros dois casos, relatados pelo coordenador da 2ª CCR, o subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos. Em seu voto, ele cita o entendimento do STF sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia e afirma que apenas a lei interna brasileira poderia tipificar crimes contra a humanidade e prever hipóteses de imprescritibilidade.

Saiba mais sobre os casos

Ana de Miranda Batista – Segundo consta, Ana de Miranda Batista teria sido torturada entre 1968 e 1974 em diversos locais, como a sede da Polícia Federal em Curitiba e o DOI CODI, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ela narra que foi presa por atividades políticas estudantis contra a ditadura militar e que teria sofrido uma série de violências que a deixaram com diversas sequelas. O relato conta com riqueza de detalhes, como nome de agressores, alcunhas e descrições. Entre as provas, foram apontados laudos médicos e notícias da época. 

Joaquim Pires Cerveira – Ex-major do Exército e refugiado político, Joaquim Pires Cerveira teria sido sequestrado em Buenos Aires e levado à Polícia do Exército no Rio de Janeiro, em 1973. O procedimento, instaurado em 2012, conta com extenso acervo documental, consistente em documentos de órgãos oficiais brasileiros, notícias da época e informações provenientes do Ministério Público da Argentina.

Operação Condor – Procedimento instaurado em 2016, a partir de representação do Instituto Miguel Arraes e outro, para apurar “as circunstâncias dos crimes cometidos por agentes brasileiros e argentinos, envolvidos na chamada Operação Condor, de repressão a dissidentes políticos das duas ditaduras militares”.