Se as constituições ocidentais tivessem uma avó, ou mesmo uma bisavó, talvez fosse esta a chamada Magna Carta ou, no original em latim, Magna Charta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (Grande Carta das liberdades, ou concórdia entre o rei John e os barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês).
Embora sua relevância esteja, em primeiro plano, circunscrita à tradição anglo-americana do common law, a Magna Carta é reputada como o mais significativo documento legal que serviu de pedra angular para a ascensão das democracias modernas, bem como para o desenvolvimento dos direitos humanos. Seu aniversário de oito séculos – comemorado em 2015, mas que começou a ser celebrado em agosto deste ano no hemisfério norte – repercutiu numa rara e inesperada aparição do presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, o “juiz-chefe” John Roberts Jr., durante um evento, na cidade de Boston, em agosto, promovido pela American Bar Association (ABA), equivalente ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados nos EUA.
Falando para centenas de advogados e para o público em geral, o presidente do tribunal constitucional mais influente do mundo disse que o documento histórico representa a “fundação dos princípios de liberdade e igualdade presentes nos sistemas jurídicos contemporâneos”. Roberts disse ainda que a redação do documento, ocorrida há quase mil anos, teve o peso de um “empreendimento na história humana”.
Apesar de ser mais conhecida no Reino Unido e nos EUA, a verdade é que nem os britânicos e tampouco os americanos sabem muito sobre a Magna Carta, além do que aprendem de forma vaga no período escolar. A Ordem dos Advogados americana deu a partida, assim, para a programação que se estenderá ao longo de um ano de comemorações, com a finalidade de celebrar o aniversário do estatuto escrito em 1215.
O que a Magna Carta representa é o fato histórico de, pela primeira vez, o absolutismo, de forma geral, e os monarcas ingleses, em particular, encontrarem alguma barreira para o seu poder quase que irrestrito e justificado por argumentos como a ideia de que reis eram reis pelo destino ou por causas que transcendem a história, como desígnios divinos, por exemplo.
Em junho de 1215, senhores feudais do Reino da Inglaterra exigiram que seu monarca, o rei John (1166 –1216), reconhecesse um conjunto de normas que tinham o propósito de limitar o poder da Coroa e assim assegurar uma série de garantias à nobreza e ao clero.
O documento foi inspirado na chamada “Carta das Liberdades”, formulada em 1100, durante o reinado de Henrique I (1068-1135), que já trazia algumas restrições ao poder do rei. Contudo, a Magna Carta incluiu disposições que expressavam de forma direta valores que seriam consagrados na modernidade, como a ideia de que ninguém poderia ser condenado de forma arbitrária ao sabor da vontade do rei, sem o julgamento pelos seus pares e sob a “lei da terra”.
Os barões que articularam a redação do documento o fizeram em causa própria e com fim de blindar a Igreja Católica dos desmandos do monarca, mas a Magna Carta acabou pavimentando o caminho que levou à consolidação da monarquia constitucional britânica. Ao longo dos séculos, o texto passou por diversas reformulações, sempre com o objetivo de estender os direitos a outras camadas da sociedade.
Na verdade, a Magna Carta foi imposta, sob coação, pelos barões ao rei e sob a ameaça de o deporem, com a condição de que, se o monarca honrasse seus dispositivos, eles renovariam assim seus votos de fidelidade à Coroa. O estatuto foi reconhecido pelo rei em Runnymede, a oeste de Londres, em 1215. Assim que os nobres deixaram o local, o rei, no entanto, rejeitou o documento, o que repercutiu em uma guerra civil. A influência da Magna Carta, porém, sobreviveria. A maior parte do seu conteúdo é datado e limitado ao contexto histórico, mas alguns dos valores ali postos representam, de fato, o embrião do constitucionalismo.
Alguns artigos e parte da introdução de sua versão de 1297 ainda integram o sistema jurídico do Reino Unido e seus princípios serviram de base à ideologia que fomentou a Revolução Americana no século 18 e a subsequente independência dos Estados Unidos. Embora não exista relação direta, no Brasil, a expressão Carta Magna é usada para referir-se à nossa Constituição.
Na extensa programação feita pela Bar Association em homenagem aos 800 anos do estatuto legal, serão realizadas exposições com cópias antigas e fragmentos raros de diferentes versões do documento e seminários sobre o tema.
O presidente da Suprema Corte dos EUA disse que o Judiciário irá “acompanhar de perto os eventos”. Roberts afirmou ainda que o ocidente deve à Magna Carta três princípios vigentes nas democracias contemporâneas: o conceito de democracia constitucional, a noção de que a lei é o que mantém a sociedade íntegra em tempos de crise e a ideia de que o povo tem o direito de resistir a regimes tirânicos.
De fato, o texto passou a ser frequentemente citado em votos dos juízes da altíssima corte norte-americana. Apesar de não ser um documento formalmente integrado ao sistema legal dos EUA, a Magna Carta é reconhecida, cada vez mais – numa espécie de revival – como referência para a jurisprudência do Direito Constitucional daquele país.

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