Mariana Muniz

Ainda não eram 10h da manhã de terça-feira e a porta da Delegacia de Atendimento à Mulher da Asa Sul, em Brasília, já estava movimentada.
Duas meninas brincavam de amarelinha, enquanto o irmão delas, sentado no meio fio, mexia no celular e se distraía com um jogo virtual. O trio aguardava a volta da mãe, a esteticista D, 36 anos.
Ela buscou a polícia para denunciar seu companheiro há sete anos, os últimos dois entremeados de idas e vindas. Ele "não chegou a bater” na mulher, mas a ameaçava constantemente. Ciumento e possessivo, ameaçava levar os filhos embora.
Histórias como essa sempre existiram, com a diferença de uma rotina bastante diferente do comportamento das vítimas, dos algozes e da força policial. Há dez anos, o quadro começou a mudar e a violência doméstica passou a existir oficialmente, deixando as sombras da sobrevivência diária de milhares e milhares de mulheres.
No dia 7 de agosto de 2006 era sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a lei 11.340, batizada de Maria da Penha a norma conseguiu ser implementada na prática, em um país onde algumas leis pegam e outras, não. A lei homenagem Maria da Penha Maia Fernandes, tornada paraplégica pelo marido na primeira de duas tentativas de assassinato durante os 23 anos de convívio.
O caso de Maria da Penha chegou à Organização dos Estados Americanos (OEA), que exortou o Brasil a agir de forma efetiva contra um crime que não conseguia ultrapassar as quatro paredes da convivência familiar para levar os autores à cadeia ou proteger as vítimas.
Violência doméstica por ação ou omissão
De acordo com a Maria da Penha, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
“A decisão de vir até aqui tomei depois de pensar muito, achava que se ele não tinha me batido, não poderia vir até aqui”, contou D – boletim de ocorrência em mãos e a expectativa de que em até 48 horas uma juíza ou um juiz concedesse medidas protetivas de urgência.
Ao completar uma década, a lei que deu nome e endereço à violência contra a mulher conseguiu contribuir, ainda que de maneira difusa, para uma queda de cerca de 10% na taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residências das vítimas.
Os dados, de 2015, são fruto da pesquisa “Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha”, realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“O respeito à palavra da mulher não existe na nossa sociedade. O não da mulher não vale tanto quanto o não do homem”, avalia Maria Berenice Dias, uma das principais autoras de obras jurídicas sobre o tema. “A Lei Maria da Penha deu visibilidade ao fato que nunca ninguém acreditou que existia a violência doméstica, mesmo diante de números assustadores e mesmo que os números oficiais ainda sejam muito aquém da realidade.”
Caráter pedagógico contra violência doméstica
Fato é que a lei Maria da Penha conseguiu dar visibilidade ao fenômeno através de seu caráter pedagógico.
“Hoje em dia, os homens sabem que não pode bater em mulher, sabem que vão ‘pegar Maria da Penha’, isso foi agregado a nossa cultura nesse sentido”, comenta Maria Berenice.
Uma constatação otimista, que ganha fôlego com o diagnóstico da pesquisa Violência e Assassinatos de Mulheres, conduzida pelo Data Popular/Instituto Patrícia Galvão, em 2013: cerca de 2% das pessoas do país nunca ouviram falar da lei. Para 86% dos entrevistados, as mulheres passaram a denunciar mais os casos de violência.
A novidade da Lei Maria da Penha foi a criar uma estrutura agregadora da legislação vigente, trazendo visibilidade à questão da violência contra a mulher.
É justamente essa inovação que está sendo celebrada – não a criação de mais penas, mais punição. A intenção é acolher mulheres em situação de violência, num marco legislativo para as brasileiras.
Inovação: violência doméstica como violação de direitos humanos
Assim, a edição da lei 11.340 inovou ao dar um novo tratamento à violência doméstica: passando a ser considerada, por força do artigo 6º, uma violação de direitos humanos e não mais um crime de menor potencial ofensivo.
Um crime não mais invisível, dentro de casa, onde não se mete a colher.
Para Ana Lúcia Sabadell, professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os efeitos da norma jurídica podem ser entendidos como qualquer repercussão social ocasionada por ela.
Repercussões que vão desde o debate em torno da lei até casos notórios, à representação nas telenovelas – passando pelo relato de mulheres famosas, como a atriz Luiza Brunet.
Por isso a importância de existir um mecanismo como a Lei Maria da Penha num país como o Brasil, que ocupa o 5º lugar no ranking global de homicídios de mulheres, de acordo com um levantamento realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a pedido da Organização das Nações Unidas (ONU).
A eficácia da norma, de acordo com a professora, deve ser medida pelo grau de cumprimento dentro da prática social. Por isso, de nada adianta propor penas mais duras, mais graves, se elas sequer conseguem ser aplicadas minimamente.
“A lei é considerada socialmente eficaz quando é respeitada por seus destinatários ou quando uma violação é efetivamente punida pelo Estado”, aponta Sabadell.
Violência em números 
Dados coletados ao longo das últimas décadas dão conta, para além dos depoimentos e relatos, do impacto de uma lei que traduziu textualmente séculos de uma estrutura social patriarcal.
A violência contra a mulher não nasceu em 2006, mas a partir de então passou a ser falada, observada, monitorada. Entrou para as estatísticas.
De acordo com um levantamento feito pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) a pedido do JOTA, em 2015 foram oferecidas 5.143 denúncias em feitos de violência doméstica – um aumento de 4.500% em comparação com 2006, quando foram contabilizadas apenas 113.
Ainda no Distrito Federal, nos últimos dez anos os pedidos de medidas protetivas também deram um salto gigantesco e impressionante: pularam de 34 em 2006 para 11.760 em 2015.
Os números coletados pelo Ipea para a pesquisa Avaliando a Efetividade da Lei Maria da Penha referem-se às agressões letais praticadas no Brasil e foram obtidos por meio do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde - que usa informações das declarações de óbitos fornecidas pelos Institutos Médicos Legais (IMLs).
Apesar de a Lei Maria Penha não ter como foco o assassinato de mulheres, a pesquisa partiu do pressuposto de que a violência doméstica ocorre em ciclos, “onde muitas vezes há um acirramento no grau de agressividade envolvida, que, eventualmente, redunda (muitas vezes de forma inesperada) na morte do cônjuge.”
Desafios
Embora emblemática, importante e conhecida, a Lei Maria da Penha, sozinha, não é suficiente para transformar completamnete uma realidade que ultrapassa os manuais de direito e as delegacias de atendimento especial à mulher.
Quem faz o alerta é a professora de direito penal Soraia da Rosa Mendes, do Instituto de Direito Público (IDP).
“Nenhuma lei muda uma cultura de violência que se perpetua ao longo da história, menos ainda se esta for usada somente sob a perspectiva criminal”, afirma.
Se a lei conseguiu diminuir homicídios e caiu no imaginário popular, a questão que se apresenta, uma década depois, é como encontrar novos caminhos para que os direitos humanos das mulheres sejam efetivados. Neste ponto, educação é unanimidade entre as especialistas.
Reação legislativa
Diante de crimes que chocam e despertam a opinião pública para o problema da violência contra a mulher, os clamores por mais punição aparecem.
Após o estupro coletivo de uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro, o Senado aprovou, por unanimidade, o agravamento da pena para condenados por estupro coletivo.
“A gente vê as pessoas pedindo mais castração química, punições físicas, claramente inconstitucionais, mas pouco se fala em mudar a forma como os meninos são educados”, alerta Maria Berenice Dias.
Outro desafio que se apresenta é justamente combater o viés machista presente nos operadores dos sistemas de justiça – que promove a revitimização das mulheres em situação de violência.
Para Sabadell – que dá aulas sobre gênero e direito na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) – a extensão dessa cultura jurídica é incalculável.
“O direito é um espaço, um instrumento de poder, senão o próprio instrumento do poder”, assinala. “Então, a gente falando ali de violência sexual, do crime sexual, contra mulheres, a gente fala do braço mais forte, mais duro do exercício desse poder, que é o exercício do poder punitivo.”
Entre desafios e conquistas, a Lei Maria da Penha foi capaz até agora de amparar vítimas como D, que obteve acolhida e proteção em uma manhã de terça-feira numa delegacia policial. Sua história não é mais exceção, mas regra.

Solenidades. Homenagens

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Amadurecimento da norma enfrenta desafios

Aos 10 anos, Lei Maria da Penha vira expressão popular e reduz violência

Amadurecimento da norma enfrenta desafios