Estado de Direito

Lava Jato no RJ: CNMP avalia demissão inédita de procuradores devido a press release

Caso é tratado nos bastidores como inconsistente e recado para sabatina de recondução de corregedor

Sessão do CNMP / Crédito: Flickr/@conselhodomp
A reportagem foi alterada às 9h37 de 24 de agosto de 2021 para retificar a fala do corregedor-geral do CNMP. Ele afirmou que como a conduta prevê a pena de demissão, ele deve propô-la mesmo que posteriormente ela possa ser convertida em suspensão

Powerpoint do Lula? Conversas roubadas por hacker? Nenhuma dessas polêmicas motivou punições graves contra procuradores da Operação Lava Jato, mas nesta terça-feira (24/08) um singelo press release (comunicado institucional para a imprensa) pode fazer com que 11 membros da Lava Jato no Rio de Janeiro sejam punidos com uma pena de demissão do Ministério Público Federal (MPF).

O processo administrativo foi proposto pelos ex-senadores Romero Jucá (MDB-RR) e Edison Lobão (MDB-MA), representados no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) pelo advogado Fabio Medina Osório, ex-ministro-chefe da Advocacia Geral da União (AGU) no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), outro réu famoso da Lava Jato.

A possibilidade de demissão dos ex-membros da Lava Jato fluminense começará a ser analisada nesta terça-feira (24/08) pelo plenário do CNMP, que julga se abre ou não um processo administrativo disciplinar (PAD) contra os procuradores, com proposta de demissão. Jucá e Lobão alegam que o release, publicado no site do MPF, foi um exemplo de quebra indevida do sigilo judicial.

No release da discórdia, o MPF informava que os dois ex-senadores e o filho de Lobão, Márcio, tinham sido denunciados em ação penal “por crimes envolvendo construção de Angra 3”. O texto institucional também informava que o grupo de Jucá e Lobão estava sendo acusado de receber “valores indevidos em razão da retomada das obras civis da Usina Nuclear de Angra 3”. “Em propinas, o grupo de Jucá teria recebido ao menos R$ 1.332.750,00, enquanto o de Edison Lobão chegou a receber R$ 9.296.390,00”, acrescentava o release.

O motivo das denuncias não era novidade. Já tinha sido citado em reportagens e no pedido de inquérito contra os ex-senadores, que originalmente foi aberto pelo então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, quando tanto Lobão quanto Jucá tinham direito a serem julgados no Supremo Tribunal Federal. Com a perda do foro privilegiado, o caso desceu para a Justiça Federal do Rio de Janeiro, onde tramitavam os inquéritos envolvendo suspeitas de corrupção nas obras de Angra 3 desde 2015.


Embora a publicidade ou o vazamento de delações premiadas tenham sido os principais motivos de reclamações judiciais de políticos investigados na Lava Jato, Jucá e Lobão atacaram a divulgação do release do MPF porque, na época da publicação no site da instituição, a ação penal pública tinha sido classificada automaticamente pelo sistema digital do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) como um processo de sigilo nível 3. Logo, argumentaram os ex-senadores, quando a publicação no site ocorreu, tudo ainda estava em sigilo. Seis dias depois, com o recebimento da denúncia pela Justiça, uma decisão da magistrada do caso retirou qualquer direito a sigilo. Os procuradores alegam que o sigilo foi imposto automaticamente pelo sistema digital do TRF2, sem que eles percebessem, porque no momento do protocolo ainda estava em andamento uma medida cautelar de congelamento de bens dos suspeitos, que aguardava respostas de instituições financeiras.

É corriqueiro que réus em operações do MPF tenham suas acusações divulgadas em coletivas de imprensa ou releases, mas Jucá e Lobão foram os primeiros políticos a conseguirem que o CNMP avalie demitir procuradores por causa disso. É um caso inédito na história da instituição, de acordo com conselheiros do órgão entrevistados pelo JOTA.

O ineditismo do caso vem ainda acompanhado de outras coincidências também excepcionais. A principal delas é a tentativa de recondução ao cargo do corregedor-geral do CNMP, Rinaldo Lima, que será sabatinado pelo Senado na quarta-feira (25/08), um dia depois do julgamento dos procuradores.

Por isso, causou estranheza que ele tenha proposto a demissão dos 11 procuradores da Lava Jato no RJ, pela divulgação do release. Inicialmente, Lima tinha afirmado em parecer que a pena dos procuradores, de demissão, poderia ser convertida em suspensão por 30 dias. No entanto, pouco depois disso, Lima aprovou um novo parecer pontuando que a pena teria de ser demissão, sem mencionar a possibilidade de conversão. Em entrevista ao JOTA, ele disse que essa proposta de demissão convertida em suspensão foi um equívoco que cometeu, pois, ainda que possível, essa conversão só poderia ser feita depois de aplicada oficialmente a demissão.

“Eu não posso já propor a pena de suspensão. A adequação legal do fato, que é a revelação de sigilo, reclama pena de demissão”, afirmou Lima, que disse ser obrigado a pedir o que está na lei. “Eles não observaram, no meu entender, o dever de manter sob sigilo informações de processos que estavam sob sigilo naquele tempo”, afirmou ao JOTA.

Por essa suposta leniência com a Lava Jato, um conselheiro do CNMP avalia que o caso deve ser encarado como uma tentativa de Lima de prestar contas a senadores, como se quisesse passar o recado de que é capaz de punir ex-integrantes da Lava Jato. Nos bastidores, esse conselheiro trata o caso como inconsistente.

“É uma coisa muito pequena para aplicar pena de demissão. Ficou uma punição muito forçada. Para nós, do CNMP, vai ser difícil não abrir processo administrativo disciplinar. Mas, depois que for aberto, não vai ter como aplicar a pena de demissão. Nunca na história teve punição por causa de release”, afirmou o conselheiro ao JOTA.

Procurado pelo JOTA, Jucá não quis falar quais informações estavam sob sigilo. Tampouco quis comentar qual a punição apropriada aos procuradores. “Não tenho a mínima ideia da punição. É questão interna”, afirmou o senador.

Medina Osório, que defende tanto Lobão e seu filho quanto Jucá, exige a punição máxima aos procuradores. Apesar de ter sido sócio (no caso do ex-governador Wilson Witzel) e subordinado (no caso do ex-presidente Michel Temer) de outros políticos que foram presos ou investigados pela Lava Jato do Rio de Janeiro, Osório diz que não guarda conflito de interesse com a causa.

“O fato ilícito é extremamente grave, porque é tipificado como possível abuso de autoridade e improbidade administrativa. O Ministério Público não pode por vontade unilateral divulgar denúncia que não foi sequer recebida ainda”, afirmou ao JOTA. “Não tenho a menor relação com o Witzel. Nem o telefone dele. Eu e Michel Temer nunca falamos sobre esse assunto. O PAD tem que apurar a responsabilidade de cada um, de forma individualizada”, acrescentou.

Os ex-membros da Lava Jato no Rio de Janeiro são defendidos no CNMP pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e tiveram ainda um parecer, feito pro bono, pelo jurista Daniel Sarmento, professor titular de Direito Constitucional da UERJ.

“Sigilo só pode ser imposto por decisão humana. Não é válido sigilo imposto automaticamente por uma máquina. Passou a ser supostamente sigilo pelo sistema. Tem uma tradição consolidada de fazer release. Isso nunca foi configurado violação de sigilo”, afirmou Sarmento. “Eles tiveram o comportamento normal do Ministério Público. Eu compreendo o sistema dizer que deve dar um basta de abusos no Ministério Público. Eu compreendo. Mas essa turma e esse caso não têm nada a ver com isso'”.

O professor Carlos Ari Sundfeld, da Fundação Getúlio Vargas, avalia que a pena de demissão, por suposta quebra de sigilo na publicação de um release, também é desproporcional. Ele destaca que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) já prevê em seu artigo 22 que devem ser consideradas natureza da atividade, gravidade, circunstâncias e antecedentes para que sejam impostas sanções a agentes públicos.

“Ainda que um ato funcional possa produzir esse efeito, a questão é saber se os procuradores fizeram isso para beneficiar a si mesmos. Não parece ser o caso. Parece que estavam apenas dando caso do exercício da sua função”, diz Sundfeld. “Demissão parece uma proposta exagerada em função das circunstâncias”, acrescentou.

Sundfeld destaca ainda que a ficha limpa dos procuradores serve de atenuante e que funcionários públicos possuem proteção legal para que só sejam punidos em caso de dolo ou erro grosseiro.

“Chamar essa situação dos procuradores, nessas circunstâncias, de erro grosseiro é um pouco demais. Se a demissão for aplicada para gerar exemplo, gera um efeito sistêmico muito ruim. O sujeito passa a não querer divulgar informação”, argumentou.

A ameaça de demissão dos procuradores também foi criticada por Denise Dora, diretora-executiva da ONG Artigo 19 no Brasil. Ela avalia que a divulgação de informações, por meio de releases, é parte legitima da atividade dos procuradores da República e que a sociedade não pode esperar o trânsito em julgado de ações penais para saber quais são as acusações contra agentes públicos como senadores.

“É função do Ministério Publico dar a saber à população de investigações sérias que possam ameaçar o orçamento publico. Ataque à independência de agentes de Justiça é uma estratégia de erosão do ambiente democrático. Eles não fizeram absolutamente nada ilegal. Eles cumpriram seu papel. Eu realmente espero que o CNMP tenha esse mesmo entendimento”, afirmou ao JOTA.

Caso o CNMP concorde com a tese dos ex-senadores, caberá ao procurador-geral da República ajuizar uma ação judicial para que a demissão seja de fato efetuada, já que, segundo a Lei Complementar nº 75/1993, a imposição deste tipo de pena depende, também, de decisão judicial com trânsito em julgado.