Fernanda Valente

Clubes de futebol e instituições de ensino foram fortemente afetados pela pandemia do coronavírus, seja porque os torcedores deixaram de ir aos estádios, pela redução da matrícula de alunos ou até porque matriculados viraram inadimplentes. É justamente neste momento que tribunais têm sido cada vez mais acionados para responder sobre pedidos de processamento de recuperações judiciais de associações civis sem fins lucrativos. Embora decisões recentes tenham aceitado os requerimentos, a discussão gera polêmicas por flexibilizar o conceito do que é empresa.
O artigo 1º da Lei 11.101/2005, que trata da recuperação judicial e falências, limita a aplicação da lei ao “empresário” e à “sociedade empresária”. Uma linha positivista no Direito entende que as associações sem fins lucrativos não estão englobadas pela lei por não terem caráter econômico para caracterizar a atividade como empresarial.
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A segunda linha de entendimento flexibiliza a análise da lei para considerar não só a questão formal da associação, mas também os benefícios que ela traz para a sociedade. Luiz Roberto Ayoub, sócio do escritório Galdino &amp; Coelho Advogados, atua de perto com o tema e defende essa corrente. Ele é consultor da Universidade Cândido Mendes e advogado do grupo Metodista e do clube de futebol Figueirense — associações que tiveram seus pedidos de recuperação aceitos.
“Não existe nação sem agente econômico. Precisa haver geração de riquezas, de empregos e tributos. Não estou aqui para tentar encontrar uma literalidade que impeça o desenvolvimento do país. Respeitando opiniões diversas, entendo que o Direito tem que se movimentar para o dinamismo social, e deve haver uma evolução nesse entendimento”, diz o advogado.
<h3>Implicações</h3>
Os questionamentos levados à Justiça também perpassam pelo Código Civil, que, em alguns artigos, define como empresário aquele que exerce de forma profissional uma atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou de serviços. Neste caso, o empresário é obrigado a ter inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.
No Brasil, as associações preenchem os requisitos exigidos com facilidade, diz o advogado Octavio Fragata, sócio do escritório Rennó Penteado Sampaio Advogados. “Mesmo que as associações sem fins lucrativos não busquem obter o lucro e distribuí-lo, não se pode negar que elas buscam aumentar o patrimônio, que é justamente o retorno financeiro determinado pelo Código Civil. Ao invés da associação pegar o superávit e distribuir, ela reinveste em atividades”, afirma.
Conforme explica o advogado Brenno Mussolin Nogueira, do Rayes &amp; Fagundes Advogados Associados, a principal dificuldade atualmente é a ausência de previsão legal e a interpretação extensiva do termo sociedade empresária. “Há quem critique que a nova lei de recuperações, <a href="https://jota.us8.list-manage.com/track/click?u=4911ce1e520f5bf26dd891c79&amp;id=520f191cff&amp;e=f85d7f410f" target="_blank" rel="noopener noreferrer" data-saferedirecturl="https://www.google.com/url?q=https://jota.us8.list-manage.com/track/click?u%3D4911ce1e520f5bf26dd891c79%26id%3D520f191cff%26e%3Df85d7f410f&amp;source=gmail&amp;ust=1620736645630000&amp;usg=AFQjCNHh0lNiuGbkHCv9i61fiYaG5UkIJw">aprovada no Senado em 2020</a>, também não fez menção às associações sem fins lucrativos. Ou seja, é necessário que o legislador traga a previsão sobre a possibilidade ou não dos pedidos de recuperação. É a melhor arena para esse debate para evitar insegurança jurídica”, afirma o especialista em Direito Empresarial.
Outro problema que pode surgir, segundo Fragata, é a desconsideração da pessoa jurídica ao reconhecer que as associações civis podem desenvolver atividade econômica. Como consequência imediata, ele diz que o Fisco poderia tentar tributar esse superávit financeiro alegando que se trata de lucro. “É que a partir do momento que reconhece a atividade econômica, a fiscalização poderia, em tese, tentar aplicar a elas alguns dispositivos legais disponíveis aos credores das sociedades empresárias”, afirma.
Roberto Ayoub rebate quem afirma que essas instituições não podem ter lucro. “Elas devem ter lucro para sobreviver, o que não pode é distribuir o lucro”, diz. Já sobre a exigência de registro na junta comercial como um impeditivo, o advogado afirma que o registro das pessoas jurídicas que integram a associação é o suficiente. “Afinal, alguém duvida que a Candido Mendes existe há 118 anos? Ou que a rede Metodista tem 150 anos?”, questiona.
<h3 dir="ltr">Veja abaixo alguns precedentes sobre o tema</h3>
Hospital Casa de Portugal - STJ  
Processo: REsp 1.004.910 
Relator: Fernando Gonçalves
Em 2006, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou decisão que possibilitou a recuperação judicial uma de associação sem fim lucrativo. O principal argumento acolhido pelos ministros foi o da relevância e do papel social desempenhado pela Casa de Portugal, no Rio de Janeiro, que mantinha um hospital, uma escola e um asilo.
“A finalidade maior da recuperação judicial é a preservação da atividade econômica e dos postos de trabalho, creio deva ser aplicada a teoria do fato consumado à espécie, sob pena de extinção da recorrente, entidade fundada há quase oitenta anos”, afirmou o relator.
Universidade Candido Mendes - TJ-RJ 
Processo: 0031515-53.2020.8.19.0000 
Relator: Nagib Slaibi Filho
Sob o argumento da relevância social da universidade, a  6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deferiu o processamento da recuperação judicial da associação. Para o desembargador relator, mesmo que formalmente a “mantenedora da Universidade Cândido Mendes se apresente como associação civil, formato que assumiu desde a sua formação, há mais de 100 anos, desempenha atividade empresária, ao teor do disposto no art. 966 do Código Civil”.
“O caso da Candido Mendes revela diversas facetas do regime de insolvência. É inegável que a aplicação da Lei 11.101/2005 ainda enfrenta a necessidade de profundas interpretações pelo Poder Judiciário a fim de se amoldar a realidade à previsão legal. Isso porque o dado normativo deve ser levado às últimas consequências interpretativas possíveis, tendo por base valores e princípios constitucionais. Ressalvando-se, sempre, que a norma, por si só, não é suficiente. Em outros termos, o dado normativo não dá conta de tudo, ou seja, é inviável ao legislador prever tudo. Todavia, o nosso ordenamento é uno e complexo a fim de possibilitar ao intérprete, muitas vezes, o alcance de uma solução satisfatória e razoável”, destacou a pesquisadora Jeniffer Gomes da Silva em <a href="https://jota.us8.list-manage.com/track/click?u=4911ce1e520f5bf26dd891c79&amp;id=c1f3f5d771&amp;e=f85d7f410f" target="_blank" rel="noopener noreferrer" data-saferedirecturl="https://www.google.com/url?q=https://jota.us8.list-manage.com/track/click?u%3D4911ce1e520f5bf26dd891c79%26id%3Dc1f3f5d771%26e%3Df85d7f410f&amp;source=gmail&amp;ust=1620736645631000&amp;usg=AFQjCNGZUdQs7HSgdMXH0HKv9kbIIIRykQ">artigo publicado no Jota</a>.
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Grupo Metodista - Justiça do RS 
Processo: 5035686-71.2021.8.21.0001 
Relator: Gilberto Schäfer
Em abril deste ano, a Justiça do Rio Grande do Sul aceitou o pedido do Grupo de Ensino Metodista para começar o processo de recuperação judicial. A instituição alegou que havia necessidade de recuperação devido ao impacto econômico causado pela Covid-19, “o que fez com que as pessoas deixassem de buscar qualificação educacional frente a falta de perspectiva do mercado de trabalho”.
O juiz considerou o agravamento da situação “pois as instituições autoras já vinham enfrentando um prejuízo na arrecadação em razão da diminuição dos programas de incentivos à educação”. “Com a antecipação dos efeitos da recuperação postulado (stay period), os requerentes terão condições de se reorganizar a fim de manter a prestação do serviço, cuja importância já destaquei ao admitir a presente ação ajuizada pelos requerentes”, defendeu o magistrado.
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Clube Figueirense - TJ-SC 
Processo: 5024222-97.2021.8.24.0023 
Relator: Torres Marques
O Figueirense é o primeiro clube de futebol a ter reconhecida sua legitimidade para pedir recuperação judicial. Em março deste ano, o magistrado do TJ de Santa Catarina entendeu que a agremiação catarinense tem o direito de pedir a aplicação dos institutos previstos na Lei 11.101/2005, equiparando às sociedades empresárias textualmente pela Lei Pelé.
O desembargador também pontuou que a atividade desenvolvida no estado e nacionalmente, desde 1921, é reconhecida e “consubstancia típico elemento de empresa (atividade econômica organizada)”.
De acordo com o advogado Matheus Lima, da área de Direito de Insolvência Empresarial do escritório TPC Advogados, essas decisões afastam a visão positivista que leva a interpretação da lei ao “pé da letra”. “Esse tipo de decisão se preocupa com a preservação da empresa. A análise deixa de ser de mera formalidade e passa a ser sobre qual impacto essa associação gera na sociedade. É uma tendência positiva e segue o propósito real da lei de recuperações e falências. A jurisprudência e a doutrina estão se voltando para o princípio da lei.”
No caso do clube catarinense, o juiz da primeira instância havia negado o pedido por entender que “as associações civis sem fins lucrativos não podem utilizar-se da recuperação judicial por não constituírem sociedade empresária”.
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Hospital Evangélico da Bahia - Justiça da BA 
Processo: 8074034-88.2020.8.05.0001 
Relator: Argemiro de Azevedo Dutra
O juiz da 1ª Vara Empresarial de Salvador autorizou o processamento da recuperação judicial do hospital. O magistrado considerou que a associação desenvolve atividades econômicas e “coloca bens e serviços no mercado, buscando superávit, sustentabilidade econômica e crescimento patrimonial, onde a única diferença é que o ‘lucro’ aferido é direcionado ao incremento da própria atividade, ou seja, não há divisão de lucros”.
O juiz também viu indicativo de omissão na Lei de Recuperações de 2005, que “exige uma interpretação extensiva, sob pena de excluirmos da possibilidade de recuperação entidades que embora não se traduzam no conceito clássico de empresária, pratica atividade econômica só diferenciada pela não divisão de lucro”.
De acordo com o magistrado é “imprescindível acrescentar que, exercendo todas as atividades econômicas similares e não poder buscar um plano de equilíbrio econômico de suas atividades, somente lhe restará a quebra através da insolvência”. “Há que ser indagado: a atividade desenvolvida por um hospital tem relevância econômica e social? Gera empregos? Traz resultados positivos para a sociedade? Gera impostos e riquezas no âmbito da prestação de serviços essenciais?”
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Associação do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro - STJ 
Processo: AgInt no REsp 658.531 
Relator: Raul Araújo
Em março de 2021, a 4ª Turma do STJ negou recurso que pedia deferimento da recuperação judicial. Por unanimidade, os ministros mantiveram decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que entendeu que a associação “não preenche os requisitos para pleitear a recuperação judicial”.
O relator destacou outro processo analisado pela 3ª Turma: "O deferimento da recuperação judicial pressupõe a comprovação documental da qualidade de empresário, mediante a juntada com a petição inicial, ou em prazo concedido nos termos do CPC 284, de certidão de inscrição na Junta Comercial, realizada antes do ingresso do pedido em Juízo, comprovando o exercício das atividades por mais de dois anos, inadmissível a inscrição posterior ao ajuizamento" (REsp 1.193.115. julgado em 20/08/2013).

Futebol_EBC

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JOTA

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