Corte IDH

Invasão noturna de domicílio por polícia fere Convenção Americana, dizem juízes

Corte IDH condenou a Bolívia por violar direitos de 26 pessoas presas de forma ilegal e torturadas na cadeia

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La Paz, capital administrativa da Bolívia / Crédito: Mowaaaaan/Wikimedia Commons

A Bolívia foi condenada internacionalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), na terça-feira (25/1), por violar direitos fundamentais de 26 vítimas de violência policial durante invasões domiciliares ilegais e detenções realizadas em La Paz, em 2001.

As ordens foram expedidas depois que um grupo organizado assaltou um carro-forte, em setembro do mesmo ano. A partir do crime, foram ordenadas buscas em seis imóveis.

Segundo a denúncia feita à Corte IDH, os policiais invadiram as casas durante a madrugada, inclusive entrando em moradias que não constavam nas ordens judiciais. Eles utilizaram força excessiva e torturaram várias vítimas, conforme depoimentos de vítimas.

Posteriormente, as pessoas encontradas nas casas, entre as quais duas crianças e um adolescente, foram levadas para celas com condições precárias nas instalações da Polícia Técnica Judiciária, a PTJ. No local, o relato é de que os detidos foram agredidos, física e verbalmente, e as mulheres foram estupradas por agentes.

No dia posterior às prisões, o governo da Bolívia convocou uma coletiva de imprensa e exibiu as vítimas como troféus, apresentando-as como autoras dos roubos. Até então, elas não haviam sido apresentadas a um juiz.

Os detidos ficaram nas dependências da Polícia Técnica Judiciária por seis dias, até serem levados para presídios, onde continuaram a sofrer agressões. Como resultado da violência, uma vítima sofreu um aborto e não teve assistência médica. Outro detido sofreu um derrame e só foi transferido quatro horas depois para um hospital, onde morreu em seguida.

De acordo com as vítimas, as torturas e a ilegalidade das invasões residenciais foram expostas de diversas maneiras durante o processo penal instaurado contra os réus, mas em nenhum momento as alegações foram levadas em consideração.

Em maio de 2003, os réus foram condenados. Eles interpuseram vários recursos, mas todos foram declarados nulos.

Só em junho de 2010 é que uma investigação criminal foi aberta para apurar a violência cometida por agentes estatais. O processo sofreu vários atrasos e foi reaberto em 2019. De lá para cá, houve acusação de três pessoas pelos crimes de assédio e tortura. No entanto, ainda não há qualquer condenação.

Em consequência dos fatos, a Corte Interamericana concluiu que o Estado boliviano é responsável pela violação dos direitos à liberdade pessoal, vida privada, domicílio, proteção da família, direito à propriedade, integridade pessoal, direito da mulher a viver livre de violência, direito das crianças, o direito à vida, à saúde, às garantias judiciais, à proteção judicial, à honra e à dignidade, bem como o dever de investigar atos de tortura e violência contra a mulher.

Como medidas de reparação, os magistrados ordenaram que a Bolívia adote as medidas necessárias para que os atos de violência sejam investigados e os culpados sejam condenados, que ofereça assistência médica e psicológica gratuita às vítimas, que revise protocolos existentes para crianças e adolescentes envolvidas em processos judiciais e que adote, implemente e fiscalize protocolos com critérios claros em casos de violência contra a mulher.

Invasões domiciliares noturnas

Os juízes Rodrigo Mudrovitsch, do Brasil, e Nancy Hernández, da Costa Rica, fizeram um voto conjunto para aprofundar considerações específicas sobre as invasões domiciliares noturnas, realizadas no caso concreto.

De acordo com os magistrados, a utilização do recurso fere a Convenção Americana, salvo em casos de situações “absolutamente excepcionais”. Por isso, eles defendem que as invasões domiciliares noturnas sejam vedadas por lei, com o intuito de proteger os direitos à vida privada, ao domicílio e à proteção da família — com destaque ao dever de proteção reforçado por parte do Estado em relação aos grupos especialmente vulneráveis.

“As invasões policiais noturnas se afiguram incompatíveis com a Convenção e com os standards desta Corte, sendo admissíveis tão somente em situações absolutamente excepcionais e, acima de tudo, previstas de forma clara e taxativa na Constituição ou na Lei, e requerendo motivação reforçada que justifique as razões pelas quais não se pode realizar a diligência no horário diurno.  Em outras palavras, não podem ser encaradas pelos Estados como procedimentos corriqueiros da atividade de persecução penal, à livre disposição dos operadores da justiça, e sim como instrumentos que configuram uma das mais graves intervenções na esfera de direitos dos indivíduos. Por essa razão, as invasões noturnas só são justificáveis mediante a mais rigorosa observância cumulativa dos ditames da legalidade e da proporcionalidade em todas as suas dimensões”.

Ao fundamentar o posicionamento, Mudrovitsch e Hernández classificam a residência como local significante de proteção da vida privada, da intimidade e da sociabilidade, que não devem ser violados, exceto em raríssimas exceções.

“O lugar em que reside uma família ou um indivíduo não representa espaço físico insignificante. Ao contrário, consubstancia-se em locus essencial para que os indivíduos exerçam sua intimidade e sua sociabilidade, com a intensa expectativa de privacidade inerente a um lar. Por conseguinte, a proteção do domicílio não consiste em mera defesa de direitos relativos à propriedade contra interferências externas. Diversamente, seu resguardo é uma condição fundamental para o usufruto dos direitos à vida privada e à vida familiar – bens jurídicos de especial natureza e singular relevância, justificando a existência de um direito específico à proteção do domicílio”, explicam os juízes.

Eles destacam o agravamento de invasões no período noturno. “O período noturno é historicamente percebido, em diversas culturas, como ‘o primeiro mal necessário do homem, o nosso mais antigo e assombroso terror’.  Com efeito, riscos à integridade humana são ampliados entre o pôr e o nascer do sol – percepção que, comumente, é acertada, mesmo com todos os avanços tecnológicos ocorridos através dos tempos que facilitaram a vida humana no período noturno”, escrevem no voto conjunto.

E completam: “em geral, no período noturno, são desenvolvidas as atividades familiares de caráter mais íntimo, de forma que a violação do domicílio por autoridades policiais nesse horário produz maior ansiedade sobre os moradores e se revela ainda mais ameaçadora, tal qual reconhecido pela Suprema Corte do Estado de Minnesota no caso State v. Jackson . Ademais, os moradores se encontram em uma situação de vulnerabilidade ainda maior caso estejam dormindo, visto que, ao desfrutar do sono, os indivíduos têm suas capacidades de alerta e de defesa substancialmente reduzidas”.

Mudrovitsch e Hernández sugerem que as leis tenham critérios claros para as situações excepcionais, que assegurem que não haja violações domiciliares de acordo com o critério contido no artigo 11.2 da Convenção Americana, que prevê a do domicílio contra “ingerências arbitrárias ou abusivas”.

“A partir disso, conclui-se que um critério a ser obrigatoriamente observado no caso da exceção decorrente de flagrância é a factual existência de uma justificativa prévia e conforme ao direito, que permita a invasão domiciliar. Isso significa que a constatação de flagrante delito deve ser anterior ao ingresso ao domicílio, não podendo-se tratar de justificativa posterior. Caso contrário, encontrar-se-ia no caso de uma medida arbitrária, vedada pela Convenção”, explicam os magistrados.

Adriano Teixeira, advogado e professor de Direito Penal da FGV-SP, destaca que o voto de Mudrovitsch e de Hernández cria um precedente importante para que os países signatários da Convenção Americana, incluindo o Brasil, adequem suas leis.

“É um precedente importante para nós, no Brasil, porque nosso Código de Processo Penal ainda permite exceções subjetivas. Há tramitação um projeto de reforma do Código do Processo Penal [PL 8045/2010], e acredito que essa reforma deveria levar em conta essa decisão para ser mais claro em relação às invasões noturnas”, diz o advogado.

Teixeira explica que a lei brasileira permite que agentes estatais entrem nas residências à noite contanto que haja consentimento do morador, mas há critérios claros sobre o que é esse consentimento.

“A questão do consentimento é muito importante. Tem que definir o que é, porque, muitas vezes, o cidadão comum não sabe sobre a lei. Pode ser que a autoridade policial pergunte educadamente e o morador se veja na obrigação de dar o consentimento. Isso deveria ser regulado expressamente, talvez como o princípio do direito ao silêncio: você tem que informar, esclarecer ao cidadão, que a princípio as buscas são proibidas no período noturno e que ele não é obrigado a aceitar”, sugere.

O advogado e ex-procurador Lenio Streck concorda que as leis têm que ser taxativas ao máximo, para evitar que os critérios para as invasões sejam decididos pela subjetividade dos julgadores. Ele explica que, quando a leniência da lei gera desproteção à vítima, como no caso concreto, ocorre o que se chama no Direito de princípio da proibição da proteção insuficiente – suscitado, por exemplo, no voto condutor do ministro Gilmar Mendes no RE 418.376. Naquele caso, se discutia a extinção de punibilidade a um homem que estuprava a sobrinha desde os 9 anos de idade, a quem engravidou aos 11 anos e com quem passou a viver em concubinato. A maioria do STF acompanhou Mendes, no sentido de que  era clara a inexistência de um consentimento válido.

“No caso da Bolívia, o Estado agiu de forma insuficiente para evitar a violação. Existem duas situações: uma coisa é a lei ser muito leniente, a outra é aplicar a lei existente de forma leniente, como é comum nos casos das violações noturnas. Em termos técnicos, chamaríamos isso de o princípio da proibição de proteção insuficiente. Ou seja, o Estado tem que proteger os direitos das vítimas suficientemente. No fim, quando se trata de direitos fundamentais, é preciso ter o máximo de taxação, o mínimo de aberturas e ambiguidades, para garantir que o cidadão não fique refém da subjetividade do julgador”, diz Streck.

Alaor Leite, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, faz um paralelo entre as invasões domiciliares noturnas e a coleta ilegal de dados informacionais dos cidadãos.

“Não é uma tensão propriamente nova. Sempre houve notas de exceção com critérios frouxos, de modo que essa exceção poderia se converter em regra muito facilmente. Estranhamente, nestes casos, as exceções são interpretadas de forma ampla, e as regras, de forma restrita. Me parece que o voto dos juízes Rodrigo e Nancy traz claramente essa mensagem: é preciso que essa tensão seja levada muito a sério pelos legisladores”, afirma o professor.

Segundo Leite, a necessidade de ser o mais claro possível na letra da lei para evitar violações é, no fim, uma tentativa de reeducar Estados que historicamente extrapolam o direito à privacidade.

“A ideia de que tudo tem que estar previsto em lei é, infelizmente, uma tentativa de domesticar um Estado onipresente, que historicamente extrapola a sua sanha informacional e viola direitos. É claro que o Estado deve exercer sua atividade persecutória, mas, no caso das buscas noturnas, é preciso cuidado, é preciso menos formalismo e um maior ônus de justificação. Não se trata de amarrar as mãos, mas de evitar o soco”.

Discordância sobre os Desca

A Corte IDH solidificou a justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, conhecidos como Desca, em setembro de 2022, ao julgar o caso Guevara Díaz vs. Costa Rica.

Mas o juiz colombiano Humberto Sierra Porto apresentou um voto parcialmente dissidente no caso atual, no qual discorda da condenação por violação ao direito à saúde, que é considerado um dos Desca.

Esses direitos são tratados pelo artigo 26 da Convenção Americana e, há alguns anos, há controvérsias entre os juízes da Corte sobre sua aplicação.

Sierra Porto defende que o tribunal não tem competência jurídica para declarar violações autônomas dos Desca, apenas de direitos civis e políticos estabelecido no tratado. Conforme esta linha, os Estados devem ser responsabilizados por não cumprir as obrigações de desenvolvimento progressivo e não regressivo, mas não pelos direitos em si.

Para o magistrado, há uma interpretação equivocada do artigo 26 da Convenção Americana. “A postura assumida pela maioria do Tribunal ignora as regras de interpretação da Convenção de Viena sobre os Direitos dos Tratados, altera a natureza da obrigação de progressividade consagrada textualmente no artigo 26.º, ignora a vontade dos Estados consagrada no Protocolo de San Salvador e mina a legitimidade do Tribunal ao expandir injustificadamente sua jurisdição, só para citar alguns argumentos”, escreveu.

No julgamento de setembro de 2022, o juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch havia apresentado argumentos robustos que corroboram a posição da justiciabilização dos Desca.

“Com efeito, a justiciabilidade imediata dos DESCA foi integralmente absorvida pela linguagem do SIDH [Sistema Interamericano de Direitos Humanos], transformando-se em categoria fundamental para o enfrentamento das questões prementes dos povos do continente, marcados por uma vivência profunda de desigualdades materiais. Tal categoria é, pois, parte integrante do horizonte a ser descortinado em futuras disputas judicializadas. Essas conclusões certamente não são o ponto final dessa construção jurisprudencial. Pelo contrário, as premissas firmadas no presente caso e em tantos outros que o precederam são um ponto de continuidade e de desenvolvimento de reflexões mais profundas quanto à delicada atuação da Corte em casos de violação dos DESCA”.

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