Luiz Orlando Carneiro

É inconstitucional impedir a publicação de biografia que não tenha sido previamente autorizada pelo biografado ou por sua família. Por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em sessão que durou quatro horas, julgou que a exigência de autorização, prevista no artigo 20 do Código Civil, viola a liberdade de expressão e de informação.
Com base no voto condutor da ministra-relatora Cármen Lúcia, o STF classificou como censura – e, portanto inconstitucional – a proibição antecipada da publicação de livros, assim como o recolhimento a posteriori de materiais já publicados. O tribunal ressaltou que o Judiciário pode, depois da publicação, adotar medidas para compensar eventuais violações aos direitos dos biografados, como o direito de resposta, retratação ou, eventualmente, correção numa segunda edição.
Alguns ministros – entre os quais Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli – entenderam que o Judiciário poderia até, em casos extremos, determinar o recolhimento de biografias quando comprovada a violação da intimidade, da vida privada e da honra dos biografados. O próprio ministro Roberto Barroso – que aderiu integralmente ao voto da relatora - admitiu, ao final, a possibilidade de apreensão de livros (prática que qualificou de “aterradora”) em situações “extremas e teratológicas”.
O argumento dos ministros, no entanto, não deve prevalecer sobre o voto da ministra. Cármen Lúcia foi expressa no voto: "Qualquer censura prévia é vedada no sistema. A autorização prévia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras após a sua divulgação é censura judicial, que apenas substitui a administrativa”.
+JOTA: <a href="https://www.jota.info/ao-vivo-acompanhe-decisao-do-stf-sobre-biografias-nao-autorizadas">Como foi a sessão do STF que permitiu a publicação de biografias não-autorizadas</a>
<a href="https://www.jota.info/biografias-leia-o-voto-da-ministra-camen-lucia">+JOTA: Leia o voto da ministra-relatora Carmen Lúcia</a>
Poder sobre ideias
O ministro Celso de Mello foi igualmente enfático ao dizer que “o Estado não pode dispor de poder algum sobre as palavras, sobre as ideias e sobre os modos de divulgação”. Mas ponderou que “o direito à livre expressão do pensamento não é absoluto”, legitimando-se o controle jurisdicional “em casos de abuso da expressão do pensamento”, mas sempre a posteriori.
“Não devemos retroceder nesse processo de conquista das liberdades democráticas. O peso da censura, ninguém o suporta”, afirmou o ministro.
Ele citou como exemplo de abusos a incitação ao ódio público, sobretudo quando há agressão a comunidades étnicas, raciais ou confessionais. No entanto, frisou que intervenção judicial que proíba alguém de publicar livro ou obra biográfica é clara transgressão à Constituição. O Supremo, ao julgar o caso Ellwanger (HC 82.424), determinou o recolhimento de livros que, no entendimento da maioria, incitava o ódio contra os judeus.
Votos
A ministra Cármen Lúcia disse ter preparado um voto de 300 páginas, reduzido a 120 páginas (distribuídas aos ministros) que, por sua vez, foram sintetizadas na sessão  plenária.
A relatora logo realçou a necessidade de “que seja afastada do mundo jurídico a obrigação de autorização prévia do biografado”, acrescentando que o julgamento referia-se, basicamente, ao “direito à palavra e à liberdade de expressá-la”.
“O que a Constituição não admite é que, sob o argumento de se ter trancada a sua porta, seja abolida a liberdade de outro de criar obras literárias, sobretudo biografias, que dizem respeito a toda a coletividade. Não é proibindo e recolhendo obras, amordaçando-se a história que se cumprirá a Constituição.”
A ministra admitiu o risco de abusos, mas comentou: "Afirmou-se, no curso desta ação, que a biografia não estaria cerceada, apenas dependeria de autorização, porque as versões apresentadas poderiam comprometer a intimidade e a privacidade do biografado. O argumento não convence: primeiro porque a expressão é livre. Qualquer censura prévia é vedada no sistema. A autorização prévia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras após a sua divulgação é censura judicial, que apenas substitui a administrativa.”
O ministro Roberto Barroso, o segundo a se manifestar, proferiu também um longo voto, a partir do pressuposto de que as sociedades são “abertas, complexas e plurais, ocorrendo frequentemente choques de valores”. Segundo ele, a técnica que o direito adota para resolver tais conflitos é a “ponderação”. Acrescentou não haver hierarquia entre normas constitucionais, já que nenhuma pode ser superior à outra.
<a href="https://www.jota.info/biografias-o-voto-do-ministro-luis-roberto-barroso">+JOTA: Leia o voto do ministro Luis Roberto Barroso</a>
No caso em julgamento, Barroso afirmou que o Código Civil, nos artigos 20 e 21, “produziu uma hierarquização entre normas de direito fundamental”, e, “pior que isso, legitimou todas as decisões (judiciais) que proibiram a divulgação de biografias”.
“Os artigos 20 e 21 do Código Civil produzem ilegítima ponderação em desfavor da liberdade de expressão e a favor da intimidade e da vida privada. A liberdade de expressão é uma liberdade preferencial numa sociedade como a nossa”, já que “a história da liberdade de expressão no Brasil é história extremamente acidentada”, e “a liberdade de expressão é essencial para o conhecimento da história e para a conservação da memória nacional”.
Casos
Nos últimos 20 anos, com base nos dispositivos do Código Civil (o artigo 21 complementa o 20), foram proibidas biografias não autorizadas de pessoas famosas (vivas e mortas), como as de Garrincha (“Estrela Solitária”, 1996, de Ruy Castro) e Roberto Carlos (“Roberto Carlos em Detalhes”, 2007, de Paulo César Araújo).
Em novembro do ano passado, o plenário do STF confirmou decisão monocrática da ministra Cármen Lúcia, que arquivara, também na condição de relatora, reclamação (RCL 14448) do músico João Gilberto, que pretendia evitar o lançamento de biografia editada pela Cosac &amp; Naify. O violonista-cantor sustentava que o juiz de primeiro grau usurpara a competência do Supremo para decidir sobre a matéria.
A ministra Cármen Lúcia entendeu que, como a corte ainda não julgara a ADI 4.815 não tinha havido a alegada usurpação.
João Gilberto ajuizara ação na Justiça paulista de primeira instância para impedir o lançamento do livro que, segundo seu advogado, continha “todos os elementos factuais configuradores de devassa da vida privada”. O juiz da vara cível de São Paulo negou o pedido de liminar, mas manteve o curso da ação para o julgamento de mérito. O músico, então, ajuizou a reclamação no STF.
O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que, mesmo em casos já julgados ou alvos de acordos, é possível ajuizar ações rescisórias com base no entendimento do Supremo.

bancoImagemFotoAudiencia_AP_292477

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Autorização prévia, prevista no Código Civil, é incompatível com liberdade de expressão e de informação inscritas na Constituição

Impedir publicação de biografia é inconstitucional, decide STF

Autorização prévia, prevista no Código Civil, é incompatível com liberdade de expressão e de informação inscritas na Constituição