Segurança pública

Imagens de câmeras corporais de PMs se tornaram provas relevantes em processos criminais

Filmagens foram usadas para comprovar casos em que houve uso excessivo de violência ou irregularidades nas abordagens policiais

PM com joelho no rosto de suspeito / Crédito: Reprodução câmera corporal

Um homem já algemado e colocado na viatura policial é jogado no chão por um policial militar, seu rosto é pressionado pelo joelho de um segundo policial e seus pés são amarrados com uma corda. Essa é a cena que a desembargadora Jucimara Esther de Lima Bueno, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), viu ao analisar as imagens das câmeras corporais dos policiais envolvidos na prisão de um homem acusado dos crimes de roubo e furto na Zona Leste de São Paulo.

Diante do vídeo, a desembargadora afirmou que, apesar do suspeito ser reincidente, seria inviável manter a prisão em flagrante diante dos maus-tratos evidentes. No final de agosto, ela determinou que a prisão fosse relaxada e que o homem aguardasse o julgamento dos crimes em liberdade. “Nenhum delito, por mais grave que seja, justifica a prática de outro, em especial pelos agentes investidos pelo estado para preservarem a ordem pública”, escreveu Bueno.

O caso evidencia como as câmeras adotadas pela Polícia Militar (PM) de São Paulo têm sido ferramentas importantes para os advogados e para a Defensoria Pública – especialmente quando há divergências entre a narrativa da polícia e do acusado. “Os vídeos foram fundamentais para comprovar e ressaltar a violência dos policiais. Nada justifica um espancamento”, disse a defensora pública Cristina Emy Yokaichiya, que representou o acusado.

Em São Paulo, a PM passou a adotar as câmeras nos uniformes a partir de 2020, com o programa Olho Vivo. A ideia era dar mais transparência e legitimidade ao trabalho dos policiais. “As câmeras dão segurança ao policial, por ajudá-lo a se livrar de acusações injustas de agressão nas audiências de custódia”, diz José Vicente da Silva, coronel da reserva da PM de São Paulo, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Segundo ele, o uso dos equipamentos é positivo também por induzir as forças policiais a trabalhar de acordo com as normas e os protocolos que a polícia adota, evitando “improvisos” na rua.

É comum que os presos digam que apanharam e que foram torturados quando são detidos e a não ser que ele tenha uma lesão muito aparente, o entendimento do Poder Judiciário, é de que ele se machucou porque estava tentando fugir, conta Guilherme Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Para o advogado, em casos em que a tortura seja confirmada não basta que a Justiça solte o acusado. “É um casamento grave entre o Poder Judiciário e a política de segurança pública. O Poder Judiciário é inclinado a validar tudo que é dito pelos policiais”, critica.

Anulação de provas

Não é só para provar o uso excessivo de violência que as imagens capturadas pelas câmeras corporais dos policiais estão sendo utilizadas. Em alguns casos, a defesa usou os vídeos para anular provas obtidas ilegalmente. Foi o que aconteceu com um casal de Itaquaquecetuba, no interior de São Paulo, preso por tráfico. O homem e mulher foram soltos em março deste ano por decisão do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que considerou a abordagem policial ilícita e determinou o trancamento do processo.

A decisão foi possível porque o defensor público Bruno Shimizu solicitou acesso ao vídeo das câmeras corporais utilizadas pelos policiais e forneceu as imagens para que os julgadores vissem que, na verdade, o casal foi ameaçado e coagido a levar os policiais até sua casa, o que invalida as provas coletadas dentro da residência. “Não se pode dar crédito integral às palavras dos policiais quando há invasão de domicílio ou quando o réu está machucado. Com os vídeos conseguimos provar essas irregularidades policiais”, disse o defensor.

Em outro caso, a Defensoria Pública de São Paulo utilizou os vídeos das câmeras dos policiais para pedir a absolvição de um homem acusado de envolvimento com um sequestro relâmpago. Abordado pela polícia em uma favela da capital, o sujeito se identificou como “olheiro” do tráfico e emprestou seu celular para que os policiais falassem com alguém da organização criminosa na tentativa de solucionar o crime e liberar a vítima.

Decisão da juíza Fernanda Galizia Noriega, do TJSP, julgou improcedente a ação penal e absolveu o réu. “A negativa de autoria, a falta de reconhecimento pessoal por parte da vítima, a não apreensão de objetos relacionados aos delitos com o réu e, sobretudo, as gravações extraídas das câmeras acopladas no uniforme dos policiais militares, tornam duvidosa a culpabilidade do acusado”, escreveu Noriega.

A juíza ainda acrescentou que como a denúncia não era de tráfico de drogas, mas sim de outros delitos que a participação do homem não ficou comprovada, seria mais prudente optar pela absolvição, ainda que, com isso, corra-se “o risco de premiar com imerecida absolvição um possível culpado, solução sempre preferível à condenação de um possível inocente”.

Para Surrailly Fernandes Youssef, coordenadora auxiliar do núcleo de direitos humanos da Defensoria Pública de São Paulo, as câmeras corporais são um importante instrumento de transparência e governança da polícia, mas elas não podem ser o único elemento considerado pela Justiça. “A existência ou não de câmeras não pode ser empecilho para desconsiderar a narrativa de quem foi preso. A narrativa da pessoa na audiência de custódia também precisa ser ouvida”, diz Youssef.

Menos letalidade

Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com a Unicef mostra que desde que a PM de São Paulo passou a adotar as câmeras, o número de mortes causadas por policiais em serviço caiu 62,7% no estado. Nos batalhões que passaram a usar a tecnologia, a queda no número de vítimas foi de 76,2% entre 2019 e 2022; já nos batalhões em que o dispositivo não é utilizado, a redução foi de apenas 33,3%.

O uso dos equipamentos também ajudou a diminuir o número de policiais mortos em horário de trabalho. Antes do programa Olho Vivo, em 2019, 14 policiais foram vítimas de homicídios durante o serviço. Em 2022, o número caiu para seis.

Segundo Alan Fernandes, pesquisador do FBSP, um dos motivos possíveis para a queda dos números de mortes é que a presença das câmeras ajuda a diminuir a violência nos confrontos. “Seja porque o policial fica atento aos protocolos e ao uso moderado da força, seja porque a outra parte, quando se vê filmada, também diminuiu a violência”, diz o pesquisador.

Mas só a captura de imagens não basta. Para Silva, se não houver uma melhoria no treinamento, as câmeras não terão o efeito positivo esperado de induzir um melhor comportamento e o uso de menos violência. “Em caso de policiais mal treinados, as filmagens vão mostrar barbaridades. O bom treinamento e a supervisão constante são fundamentais”, diz o coronel José Vicente da Silva.

No mês passado, o governo de São Paulo começou a adotar o uso de câmeras portáteis nos uniformes dos policiais de trânsito. Segundo informações do governo, 400 das 10.125 câmeras existentes foram redirecionadas aos batalhões de trânsito.

Em nota enviada ao JOTA, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) de São Paulo disse que após “planejamento estratégico” foi possível redistribuir os equipamentos para serem usados no 1º e 2º Batalhões de Trânsito da Capital. “Com uma medida de eficiência, a atual gestão colocou mais policiais com câmeras nas ruas sem afetar qualquer Batalhão que já dispõe do sistema”, afirmou a secretaria.

O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) criticou o uso de câmeras pela policia durante a campanha eleitoral do ano passado, mas recuou ao assumir o governo e disse que vai continuar com o programa. Segundo a SSP, hoje 52% dos policiais do estado usam as câmeras portáteis e estão em andamento estudos para verificar a viabilidade de expansão do programa Olho Vivo para outras regiões do estado.

Os processos citados na reportagem são 2224124-29.2023.8.26.0000, 1500388-18.2023.8.26.0616 e 1518120-46.2022.8.26.0228