Luiz Orlando Carneiro

A recém-lançada “História do Direito Brasileiro” (Forense Universitária) é uma volumosa obra de pesquisa, informação e erudição assinada por três juristas: Rui Manuel de Figueiredo Marcos, doutor em Direito e catedrático da Faculdade de Coimbra; Carlos Fernando Mathias de Souza, professor titular da Universidade de Brasília (UnB), magistrado aposentado desde 2009 como desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, depois de exercer a função de ministro convocado do Superior Tribunal de Justiça; Ibsen Noronha, graduado pela UnB e mestre em Ciências Histórico-Jurídicas pela Universidade de Coimbra, onde é doutorando e professor-assistente.
Na nota prévia do livro de 12 capítulos - que vai de “A Integração do Direito Português no Brasil colonial” a “O Pensamento Jurídico no Período Republicano” - os autores anotam: “Dir-se-ia que a nossa História do Direito Brasileiro pode ser considerada uma obra de ciência e um texto escolar. Alicerçada nas confidências seguras das fontes e muito refletida do ponto de vista doutrinal, repousa no modo histórico de pensar o direito, e percorre os diferentes modos como a história o foi pensando”.
Carlos Fernando Mathias de Souza assim respondeu a algumas perguntas sobre o livro formuladas pelo JOTA:
Como surgiu a ideia deste livro de 676 páginas, do qual o senhor é coautor com Rui Figueiredo Marcos e Ibsen Noronha?
Em 1983, assumi o ensino da disciplina História do Direito Brasileiro do curso de Direito da Universidade de Brasília (UnB). A deficiência de bibliografia a respeito era flagrante, mesmo considerando as clássicas e, sem qualquer contradição, valiosas obras como a de J. Isidoro Martins Junior, “História do Direito Nacional” (1ª edição, tipografia da Empresa Democrática Editora, Rio de Janeiro, 1895); a de Cesar Tripoli, “História do Direito Brasileiro”, em dois volumes (o primeiro, abordando a época colonial, que veio a lume em 1936; o segundo, editado em 1947, cuidando seu tomo I somente da época imperial, de 1808 a 1840, isto é, da transmigração da família real para o Brasil até a antecipação da maioridade de Pedro II); e, por último, a não menos extraordinária obra “Subsídios para a História do Direito Pátrio” em três tomos (o de nº1, contendo os livros I e II, ultimado em 1945, mas só divulgado em 1954, abrangendo, respectivamente, o período que vai de 1500 a 1769; o tomo II, abrangendo o período de 1769 a 1808, ou seja, a última fase colonial e o período que, repita-se, vai de 1808 a 1822, da vinda da família real para o Brasil até a independência; e, por último, o tomo III, cuidando das fases posteriores à emancipação política do Brasil).Acrescente-se que não se pode esquecer a produção de estudos históricos sobre o Direito em Portugal, passando pelo Brasil, incompletos, quase sempre, e nem sequer de fácil acesso.
Como professor na UnB o senhor servia-se apenas destas fontes?
Eu, particularmente, em minhas atividades docentes, sempre tive em consideração, ou como advertência, que as “palavras voam e os escritos permanecem”, como na lição dos romanos, verba volant, scripta manent. Sempre produzi textos de minhas aulas para os alunos, mesmo para disciplinas que contassem com bom aporte bibliográfico. No caso da História de Direito Brasileiro, era – a toda evidência – imprescindível produzi-los, sem qualquer menoscabo às valiosas obras referidas. Ademais, como desde 1992, assino a coluna “Ponto Final”, do Suplemento “Direito e Justiça”, do “Correio Braziliense”, não raro me vali de tais textos, com as necessárias adaptações para atingir um público pelo menos diferente e, de minha parte, sem preocupações didáticas. Assim, pude escrever textos sobre história do direito no Brasil, desde a descoberta até os tempos contemporâneos. Boa parte desses textos aproveitei na elaboração da “Breve História de Direito Brasileiro, passando pelos tributos”, que mereceu publicação pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, e que se constitui no volume 8 da série Monografias do CEJ, que veio a público em 1999. Do mesmo modo, aproveitei muitos textos de minha autoria na elaboração do livro “Notas para uma História do Judiciário no Brasil”, que foi editado pela Fundação Alexandre de Gusmão, do Itamaraty, em acordo com o Supremo Tribunal Federal, com a primeira edição em 2009.
Mas voltando ao alentado livro agora lançado ...
No ano de 2013, mais precisamente no mês de fevereiro, no Hotel Ritz, em Lisboa, em almoço de que participaram, além de mim, os professores Rui de Figueiredo Marcos e Ibsen Noronha, adveio a ideia de se compor um manual de História do Direito Brasileiro, acertando-se, desde logo, que Rui Marcos, catedrático e vice-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e membro da Academia das Ciências de Lisboa e da Academia Portuguesa de História, se encarregaria das considerações introdutórias da História do direito e da parte referente ao “Direito no Brasil Colonial”. Já Ibsen Noronha, meu antigo aluno na graduação em Direito na UnB e, posteriormente, meu auxiliar no ensino da disciplina HDB, na mesma universidade, e atualmente professor- assistente na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, por onde é mestre em Ciências Histórico Jurídicas e pela qual também está se doutorando em Direito, ficou encarregado da parte do “Direito Brasileiro no Período Imperial”. A mim coube a parte do “Direito Brasileiro no Brasil Republicano”. Tem-se aí, pois, sem jogo de palavras, a história do livro sobre o qual estamos falando, e que foi lançado, em abril deste ano, no Grêmio Literário de Lisboa; e, depois, em 28 de agosto, no Superior Tribunal de Justiça, e, no dia 3 de setembro último, no Instituto dos Advogados Brasileiros, no Rio de Janeiro.
Leio que o livro é baseado em “fontes primárias”, com pesquisas na Torre do Tombo, e secundárias, graças ao acesso a obras do acervo de raridades da Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra. Como foi feita a divisão das pesquisas entre os três autores?
Os que tratam da História do Direito, em geral, reconhecem que essa história se divide, pelo menos, em duas partes: a externa e a interna. Na parte da história externa, naturalmente, tem-se de ir às fontes primárias, como a documental, por exemplo, e as ditas secundárias, como as bibliográficas, entre outras. Joaquim Ribeiro, expoente da historiografia brasileira, e filho do não menos notável também historiador João Ribeiro, em “Capítulos Inéditos da História do Brasil”, com autoridade, observou que “a história não dispensa o documento, mas o documento por si só não constitui a história. Esta é sempre uma construção crítica”.
A heurística é, pois, grande ferramenta, ou meio, de trabalho do historiador. A assertiva vale, também, para a história das instituições jurídicas a exigir, não raro, profundas investigações e reflexões - registre-se o óbvio.
Nunca é demasiado recordarem-se as lições inovadoras de Wilhem Bauer, em sua “Introdução ao Estudo da História”, em particular, no referente à busca das fontes, que são inúmeras, no conhecimento. Aliás, na antiguidade clássica, Heródoto de Halicarnasso, no V século a.C., considerado o pai da História, já alertava que devia narrar tudo o que se contava, mas não acreditá-lo sem reservas. Era, de certo modo, a exaltação à crítica histórica.
A obra, de uma forma ou de outra, “reescreve” a história jurídico-política do Brasil desde a Colônia e das Ordenações até a mais recente democratização do país?
Impossível deixar-se aqui de uma recordação a Benedetto Croce, que afirmava que toda a história é contemporânea, na medida em que a cada época se está a reescrevê-la. De fato, por exemplo, quando Champollion decifrou os hieroglifos, estudando a pedra da roseta, deu-se um grande passo para a revisão, pelo novo domínio das fontes, de, praticamente, toda a história do Egito antigo.
De outra parte, quando se considera o direito positivo, em que a norma legal tem importância óbvia, e não vai aqui qualquer culto a Kelsen, se bem que ele merece todo o respeito como jurista, não se pode olvidar a observação de Kirchmann – o grande crítico da dogmática jurídica – de que “três palavras retificadoras do legislador convertem em lixo bibliotecas inteiras”.
Daí pode-se extrair a responsabilidade daqueles que trabalham com a história do Direito para que ele tenha sua real utilidade. É dizer-se para que se conheça melhor o direito em si, a partir de uma visão crítica sobre o que vem a ser o próprio Direito, sem que vá, aqui, qualquer malabarismo verbal. Impossível deixar-se de se fazer, neste ponto, respeitosa homenagem a Savigny, com sua Escola Histórica. De outra parte, Ortolan, em sua clássica obra “Les Institutions” proclamou que “todo historiador deveria ser jurisconsulto e todo jurisconsulto deveria ser historiador”. Hipérbole à parte, parece ter evidência própria a necessidade do conhecimento da história do direito, ao menos, pelos profissionais do direito, sem falar na advertência de Alfredo Colmo de que “o jurista que não sabe mais do que o Direito, nem o Direito sabe”.
Alguma revelação ou novidade a ser destacada?
As mutações na legislação, sob a ótica das fontes, impõem, a todo instante, novos registros de “atualização” da História do Direito. Valha, aqui, mais uma vez, um registro do óbvio. Assim, é fácil, pois, divisar-se que o advento próximo de novos códigos, como os esperados de Processo Civil, de Processo Penal, o Penal, o Comercial e o surgimento, a todo instante, de Emendas Constitucionais e alterações outras no ordenamento positivo, conduzem o historiador do direito a uma tarefa de correção constante dos seus textos.

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JOTA

Carlos Fernando Mathias de Souza conta como escrever 676 páginas com Rui Manuel de Figueiredo Marco e Ibsen Noronha ajudou a compreender o direito

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