Bárbara Pombo

As decisões judiciais que liberaram a fosfoetanolamina para tratamento contra o câncer são o maior exemplo da história recente de ativismo judicial na área de propriedade intelectual, afirma a ex-desembargadora Liliane Roriz, atualmente sócia do Licks Advogados.
A atuação do Judiciário foi a primeira etapa da polêmica sobre o uso da substância como medicamento, apesar de não haver, até então, estudos seguros e autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para este fim. Em abril, o governo liberou, por meio da Lei 13.269, a produção e venda da fosfoetanolamina para pacientes diagnosticados com neoplasia maligna.
"Uma política ditada por ativismo judicial ignorou uma política de Estado e, num segundo momento, uma política de governo suplantou uma política de Estado", afirmou a ex-desembargadora, em entrevista ao JOTA. 
Para a advogada, o ativismo judicial, ao lado de poucas varas especializadas e um sistema bifurcado de julgamento de questões de propriedade intelectual, afetam a previsibilidade, uniformidade e estabilidade das decisões judiciais, tríade essencial para empresas cuja sobrevivência depende da proteção de patentes, desenhos industriais e outros direitos.
Liliane Roriz participou, nesta quinta-feira (11/5), do Seminário Brazilian High-Tech Litigation, realizado pelo escritório Licks Advogados, na George Washington University Law School. O evento foi apoiado pelo JOTA.
A advogada atuou por mais de 20 anos como juíza e desembargadora do Tribunal Regional Federal da Região (RJ e ES), onde julgava litígios relacionados a desenhos industriais, marcas e patentes - inclusive de litígios sobre as patentes pipeline de medicamentos.
Leia a entrevista:
A atuação dos tribunais brasileiros na área de propriedade industrial/intelectual tem garantido segurança na proteção de patentes e outras invenções?
O desenho do Poder Judiciário brasileiro, com uma distribuição de competências ratione personae, relativamente às chamadas justiças comuns ou não especializadas (federal e estadual), terminou por criar um sistema bifurcado para julgamento de questões de propriedade intelectual, afetando sobremaneira as questões de propriedade industrial, que são as que exigem a participação obrigatória do poder público para que haja a necessária proteção ao direito.
Assim, caso esteja em discussão a validade de um ato do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), será proposta uma ação de nulidade perante a Justiça Federal, com a participação efetiva do órgão; caso a lide envolva duas ou mais pessoas jurídicas de direito privado – ou pessoas físicas – sob a acusação de infração de uma patente, um desenho industrial ou uma marca registrada, correrá na Justiça Estadual.
Este sistema não dá a necessária segurança jurídica – no sentido de previsibilidade, uniformidade e estabilidade – à jurisprudência brasileira na área. Acresça-se a isso o fato de que, na distribuição de competência interna do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o regimento interno da Corte não se dá conta de que PI tem um sistema bifurcado e, em consequência, atribui, genericamente, à seção de Direito Privado a competência para julgar questões de PI.
Isso termina por remeter à seção de direito privado questões que têm a natureza jurídica de Direito Público (nulidade de um ato administrativo produzido por uma autarquia federal), julgadas pela Justiça Federal, e que, por conseguinte, seriam mais afeitas à seção de Direito Público. Este fator também contribui para a insegurança jurídica na área.
Na sua opinião - e considerando sua experiência como magistrada - como deve ser a atuação dos tribunais brasileiros em demandas relacionadas à propriedade industrial/intelectual? 
A experiência demonstra que o ideal seria a especialização de juízos em matéria de PI, em 1º e 2º graus. A especialização apresenta duas vantagens principais. Do ponto de vista do Poder Público, é uma medida facilmente implementável, que independe de uma previsão legal e que tem custo quase zero, a não ser os custos decorrentes da redistribuição de processos, que são irrisórios. Do ponto de vista do jurisdicionado, garante a formação de uma jurisprudência mais consistente e bem fundamentada, além de produzida com maior celeridade, o que é sempre desejável.
Infelizmente, ainda encontramos poucos juízos especializados em PI. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES foi o primeiro deles. Desde 2001, conta com varas especializadas em PI. Atualmente são quatro. Desde 2005, o tribunal conta com duas turmas especializadas.
Os Tribunais Regionais Federais da 1ª (sede em Brasília) e da 3ª Regiões (SP e MS), por sua vez, concentram a distribuição da matéria em duas Turmas, embora não se possa chamá-las propriamente de especializadas.
Na Justiça Estadual, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) conta, em 1º grau, com 7 varas empresariais, que julgam também questões de PI entre empresas, enquanto o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) concentra a distribuição de casos de PI em 38 Câmaras de Direito Privado. Ou seja: no TJRJ, há um princípio de especialização apenas em 1º grau, enquanto que no TJSP, há uma distribuição dirigida apenas em 2º grau.
Essa pulverização de juízos dificulta a formação de jurisprudência que possa servir de orientação.
Você poderia nos dar exemplos de políticas que foram traçadas por ativismo judicial? 
O exemplo mais recente é o caso da fosfoetanolamina. Após ter-se difundido entre a população a falsa ideia de que a substância seria capaz de tratar todos os tipos de câncer, foram propostas incontáveis ações judiciais pretendendo obter ordem liminar para que a Universidade de São Paulo (USP) fornecesse o produto, muito embora os estudos da USP se limitassem a seu uso como produto químico, e não como remédio.
Dessa forma, inexistiam estudos sobre sua ação em qualquer ser vivo e muito menos em seres humanos. Em consequência, não existiam também testes clínicos controlados e muito menos registro e autorização de uso pela Anvisa. A par disso, inexistia ainda qualquer prescrição médica que indicasse ser essa substância a mais indicada para aqueles pacientes.
Os juízes que concederam as liminares deram interpretação amplissima aos princípios constitucionais do direito à vida, à saúde e à dignidade humana, fora e além dos limites imanentes desses princípios, compelindo um órgão público (a USP) a praticar determinada ação (fornecer a substância). Foram decisões em flagrante afronta a políticas públicas preestabelecidas, no caso os termos da Lei 6.360/76, que atribui à Anvisa o dever de avaliar tecnicamente aspectos de segurança e eficácia de um medicamento, por meio da análise do dossiê de testes que lhe é apresentado. Praticaram, pois, claramente ativismo judicial.
O mais grave nesta história é que, malgrado o posicionamento técnico contrário da comunidade científica, foi sancionada, em 13/04/2016, a Lei 13.269, em decisão demagógica e despida de qualquer embasamento técnico, que libera a produção, venda e uso da substância, em evidente afronta ao sistema regulatório em vigor. Ou seja, num primeiro momento, pode-se dizer que uma política ditada por ativismo judicial ignorou uma política de Estado e, num segundo momento, uma política de governo suplantou uma política de estado.
Qual a relação entre ativismo judicial e o mercado que depende de proteção de patentes e marcas para desenvolver suas atividades?
Primeiramente, gostaria de deixar claro que o sistema brasileiro de ingresso na magistratura é o mais justo e democrático que já encontrei. Ao longo de minha carreira na magistratura, tive a oportunidade de conhecer diversos sistemas de acesso, mas jamais me deparei com nenhum outro tão despido de conteúdo político como o nosso – estou me referindo, evidentemente, ao acesso ao cargo de Juiz de 1º grau –, especialmente se compararmos com os países em que o acesso é por eleição ou por indicação política. Se nossos juízes não estão sujeitos a escrutínios temporários via processo eleitoral, não lhes cabe efetuar escolhas políticas, mais afeitas aos poderes políticos, visto que estes sim terão suas escolhas avaliadas e aprovadas ou não, a cada nova eleição, na medida em que são reeleitos ou não. As decisões judiciais devem ser analíticas, legalmente orientadas, evitando fundamentações que indiquem preferências políticas. A área da propriedade industrial é diretamente afetada pela jurisprudência política na forma do ativismo judicial, que traz insegurança jurídica, tendendo a afastar novos investimentos.

liliane

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JOTA

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