Mariana Muniz

O entendimento atual do Supremo Tribunal Federal quanto à execução provisória da pena após a segunda instância pareceu um grande retrocesso na compreensão da presunção da inocência. É a avaliação feita pelo defensor público-geral federal, Carlos Eduardo Barbosa Paz.
Em conversa com o JOTA, ele criticou o sistema penitenciário brasileiro – que classificou de “doente” – e disse que, sem solução na causa, a crise das prisões continuará emitindo sintomas.
“Mas como isso não afeta os formadores de opinião, se perpetuará o discurso de abandono, ódio e descaso atribuído aos defensores de direitos humanos”, disse.
Para o atual chefe da Defensoria Pública da União (DPU), as limitações orçamentárias trazidas pela PEC dos Gastos inviabilizaram completamente a expansão do órgão, um dos essenciais à Justiça. Também têm trazido retrocessos em alguns pontos da prestação de assistência jurídica integral e gratuita à população vulnerável.
Cearense que fez carreira em São Luís do Maranhão, Barbosa Paz vê evidentes distorções na aplicação da Lei da Primeira Infância – que concede às presas-mães a possibilidade de prisão domiciliar caso tenham filhos menores de 12 anos.
“É sintomático que uma mãe pobre não possa ter o mesmo direito a cuidar de seu filho que é conferido a uma outra, rica”, afirmou.
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Além de sistema penitenciário e desafios enfrentados pela DPU, ele falou sobre execução de prisão em segunda instância, autonomia funcional e pequenos traficantes.
Leia a íntegra da entrevista a seguir:
Completamos sete meses desde a matança nos presídios no início do ano e nada foi feito ainda. Como o senhor avalia esta situação? Como a DPU se posiciona?
Desde a eclosão dos incidentes penitenciários em Manaus, no início do ano, temos avaliado que o sistema permanece doente, não é de hoje. As soluções têm sido sempre paliativas e têm atacado apenas as consequências de uma causa muito mais danosa, subliminar, imaterial: a cultura do encarceramento.
Chama minha atenção que a administração penitenciária brasileira tenha dois senhores que não se entendem, que pouco dialogam. O Poder Judiciário emite ordens de prisão que devem ser cumpridas pelo Poder Executivo. Mas há condições desse cumprimento? Ou se faz cegamente, sem a mínima preocupação com direitos básicos e dignidade humana? Há na verdade um cheque em branco a ser preenchido por uma cultura do encarcerado, cujo saldo tem sido historicamente insuficiente para solvê-lo.
É notório por fatos e pesquisas por todo o mundo que o modelo de encarceramento em massa não atende, não ressocializa, tampouco mostra resultados concretos no longo prazo. O Brasil prende muito e prende mal. A quantidade de presos provisórios assusta qualquer jurista estrangeiro e já se naturalizou em nosso país por uma opinião pública alimentada por números inconsistentes, cifras algumas vezes ocultas para preservar políticas de segurança ineficazes e encobrir a ausência de investimentos em políticas transversais que, aí sim, impactarão num melhor porvir.
Depois de Manaus, tivemos Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, e agora execuções de agentes do sistema penitenciário federal. No passado tivemos o Carandiru (SP), Urso Branco (RO), Pedrinhas (MA), com perdas de vidas. Crise cíclica. Sem solução na causa, o sistema continuará emitindo sintomas, mas como isso não afeta os formadores de opinião, se perpetuará o discurso de abandono, ódio e descaso atribuído aos defensores de direitos humanos.
Várias violações já foram denunciadas interna (STF) e externamente (Corte Interamericana de Direitos Humanos). A Defensoria Pública sempre fazendo o seu papel de chamar atenção para isso e continuar peticionando nos juízos criminais e de execução penal. A cada incidente, lembram-se dela, propõem-se mutirões. Neles, constata-se que vários pedidos de progressão de regime, de livramento condicional, de liberdade provisória amontoavam-se nos autos sem pareceres ministeriais e/ou apreciação judicial.
A DPU propôs ainda em janeiro de 2017 reclamação perante o STF (RCL 26.111) peticionando o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional e inconvencional do sistema penitenciário manauara. O pedido liminar não foi apreciado à época, no recesso judiciário, e a relatoria entendeu por rejeitar os pleitos por entendê-los amplos e sem um fato concreto.
A DPU havia pedido direito de progressão de pena dos detentos em caso de falta de vagas nos presídios. 
A DPU encampou a proposta de súmula vinculante feita pela Pastoral Carcerária que pretendia solidificar o entendimento de que um preso não pode cumprir pena em regime mais gravoso ao que fora efetivamente condenado. Isso foi decidido e firmado pelo STF, havendo hoje o entendimento vinculante aos juízos de execução quanto a essa matéria. Súmula vinculante nº 56.
Na esteira da preocupação e providências em face do superencarceramento, a DPU propôs edição de outra súmula vinculante (PSV 125) para consolidar o entendimento de que casos de tráfico privilegiado [agente primário, com bons antecedentes, que não se dedique a atividades criminosas nem integre organização criminosa] não se enquadram no conceito de hediondez, logo fariam jus a outras medidas que não um longo regime fechado. A propositura encontra-se em análise pela presidência da Corte desde fevereiro de 2017.
Após a decisão do STF possibilitando a execução de prisão em segunda instância, como o senhor enxerga a situação dos presídios federais?
O entendimento atual da Corte Suprema quanto à execução provisória da pena após a segunda instância nos pareceu um grande retrocesso na compreensão da presunção da inocência.
Naquele cinco de outubro do ano passado, quando deveríamos comemorar mais um aniversário da Constituição Cidadã, lamentávamos a decisão que manteria e levaria tantos outros detentos a um sistema penitenciário estadual de há muito colapsado e um federal que merece redobrada atenção nesse momento. A Defensoria Pública, da tribuna como amicus curie, ofertou vários e fartos números e estudos de impacto, especialmente os índices de reversão das decisões no STJ e, mais especial e frequentemente no próprio STF. Isso, àquele momento, ao que tudo indica, não foi suficiente para subsidiar o pleno para um desfecho diverso. Mas, como tenho dito, nunca deixaremos de fazer nosso papel.
Em dado momento, creio e torço para que a Corte revisite o tema e possamos ter o restabelecimento da presunção da inocência nos originários termos da Constituinte.
Como o senhor enxerga a concessão de prisão domiciliar para mães de crianças menores de 12 anos? Este direito é aplicado de maneira equilibrada?
Tanto a DPU, DPEs, Ministério dos Direito Humanos e entidades da sociedade civil têm se mobilizado judicial e socialmente para exigir tratamento isométrico a todas as presas-mães nessa situação, em acordo com a Lei da Primeira Infância. Há evidentes distorções na aplicação dela, ainda, mas permanecemos vigilantes e atuantes desde o primeiro grau de jurisdição. É sintomático que uma mãe pobre não possa ter o mesmo direito a cuidar de seu filho que é conferido a uma outra, rica.
A Defensoria atende mais mulheres que homens? Quem é o público que recorre à DPU?
Historicamente, como pode comprovar o último <a href="http://www.dpu.def.br/images/stories/arquivos/PDF/mapa_dpu.pdf">mapa diagnóstico da DPU</a>, o percentual de assistidos do sexo masculino é preponderante, especialmente na seara criminal.
Nosso público-alvo são cidadãos nacionais e também estrangeiros em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência de recursos. Além disso, temos atuação segmentada a grupos específicos que merecem busca ativa e atendimento adequado, como população em situação de rua, enfrentamento ao tráfico de pessoas, enfrentamento ao trabalho escravo, cidadania LGBTI, comunidades tradicionais (quilombolas, ciganos, ribeirinhos, calçaras, religiões de matriz africana etc) e indígenas.
Como o senhor vê a questão do tráfico de pequenos traficantes?
Vejo a situação do pequeno traficante mais como satisfação do governo de uma política de segurança pública – ineficaz, diga-se – do que propriamente um combate inteligente e efetivo ao tráfico de entorpecentes. Não por acaso temos proposto teses que viabilizem benefícios a esses que são, antes de tudo, também vítimas de um sistema e da ausência do Estado em políticas outras emancipatórias à cidadania.
Quais são os principais gargalos da DPU? Há uma necessidade de pessoal muito grande? Vi que estão com concurso aberto.
A DPU é instituição pública, permanente, essencial e autônoma do sistema jurídico federal. É a “caçula”, tendo nascido na Constituição Federal de 1988, advinda da advocacia de ofício da Justiça Militar da União.
Como recente instituição, temos muitos desafios a cumprir. O primeiro deles é mostrar à sociedade, ao parlamento e aos órgãos fiscais que o regime orçamentário imposto à DPU é danoso e impeditivo do cumprimento da Emenda Constitucional 80, que determinou a instalação da Defensoria Pública em todas as comarcas brasileiras num prazo de 8 anos, dos quais restam 6.
As limitações orçamentarias trazidas pela PEC dos Gastos inviabilizaram completamente a expansão do órgão e têm trazido retrocessos em alguns pontos da prestação de assistência jurídica integral e gratuita à população vulnerável.
Um outro ponto é que, desde a sua instalação emergencial e provisória, a DPU não conta com nenhuma carreira de apoio própria, tendo o assunto se arrastado no Congresso Nacional desde 2014 através do PL 7.922, cujo texto não conta até então com a anuência dos órgãos técnicos do Governo Federal.
O concurso lançado tem previsão de 25 vagas para defensores públicos federais, apenas para fins de reposição, uma vez que no ano passado tivemos muitas vacâncias para outras carreiras de melhor estrutura e remuneração.
Como o senhor vê o papel da DPU para a contenção do poder punitivo?
A Defensoria Pública tem sido, e realmente isso dela se espera, trincheira – última ou única, por vezes – de cidadania. Verdadeiro contraponto de um Estado policialesco e violador de direitos e garantias fundamentais. Daí porque precisamos de uma instituição realmente fortalecida em sua estruturação e ocupação de espaços de fala e de atuação. Fomentar e participar dos debates nacionais no Congresso Nacional, nas entidades de defesa de direitos e que envolvam recrudescimento de medidas há muito abolidas por países na vanguarda civilizatória. Só assim se poderá esclarecer e preparar a opinião pública face a um incompreensível avanço do poder punitivo estatal.
O STF reconheceu no ano passado a autonomia funcional da DPU. À época do julgamento, houve críticas de que o Supremo estaria promovendo uma “violação à divisão dos poderes”. O que o senhor acha da questão?
A autonomia da Defensoria Pública da União, dos Estados e do Distrito Federal, outorgada através de emendas constitucionais legadas pelo Congresso Nacional, certamente tem sido o motor do avanço consistente e gradual da defesa e promoção de direitos e garantias fundamentais. Hoje, no cenário, não consigo imaginar uma defensoria pública não autônoma, uma vez que parte do nosso trabalho é demandar exatamente contra o Estado.
A decisão do STF que manteve por ampla maioria (8x2) a autonomia da Defensoria Pública sinalizou o compromisso daquela Corte em interpretar e ratificar o desejo do Parlamento em fortalecer a instituição defensorial. Ao contrário do que possa parecer, o STF garantiu uma independente e harmônica relação entre os Poderes e instituições outras, agora autônomas, como a DPU.

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JOTA

Para defensor público-geral federal, Carlos Eduardo Paz, sistema penitenciário está "doente"

Execução da pena em 2ª instância parece grande retrocesso

Para defensor público-geral federal, Carlos Eduardo Paz, sistema penitenciário está "doente"