Mariana Muniz

O Tribunal Regional Federal da 2ª região (TRF2) manteve a validade da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) – que estabelece normas de atuação para os psicólogos e psicólogas no que diz respeito à orientação sexual e proíbe, entre outras práticas, a promoção de tratamentos como “cura gay”.
Por unanimidade, a 7ª Turma Especializada do TRF2 rejeitou apelação que procurava derrubar sentença de 2012 no mesmo sentido. O recurso indeferido foi apresentado pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, autor da Ação Civil Pública 18794-17.2011.4.02.5101, que visava anular a Resolução e todos os processos éticos concluídos com base nela.
O MPF ainda pode recorrer da decisão do TRF2 ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar reverter a decisão.
A resolução em vigor proíbe os profissionais de psicologia de exercerem qualquer atividade que favoreça o tratamento como doença de comportamentos ou práticas homoeróticas. Também veda a adoção de métodos que orientem pessoas homossexuais a fazer tratamentos não solicitados.
Diz a normativa do CFP:
Art. 3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados.
Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.
De acordo com Rogério Oliveira, conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), a dita resolução tem sido alvo constante de grupos religiosos e representações políticas. Para ele, isso se dá por não aceitarem que “em uma sociedade avançada, inclusiva, o vir a pertencer passa por um esforço coletivo, tendo a diversidade e pluralidade humana como modelo social de pertencimento”.
Precedentes
À luz do novo CPC (lei nº 13.105/15), que preconiza a valorização e respeito aos precedentes, a decisão do TRF2 pode ter um impacto importante, no sentido de ser seguido em julgamentos futuros sobre o mesmo tópico, permitindo um avanço sobre o tema.
“É um entendimento que certamente constitui um precedente e precisa agora ser respeitado até que haja eventual superação do precedente, o que eu acredito que não irá acontecer”, afirma o advogado Paulo Iotti, diretor do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS).
O Novo CPC estabelece, no artigo 926, que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Isso significa que as Cortes devem trabalhar de forma a evitar divergências internas sobre questões jurídicas idênticas, observando a existência de um sistema do qual magistrados e turmas julgadoras fazem parte.
No caso específico do TRF2, uma fundamentação “muito consistente”, segundo Iotti, é fundamental para que esse precedente seja consolidado.
“O acórdão mostrou muito bem a contradição que é chamar de ilegal uma resolução que adequa o exercício da profissão à postura cientifica contemporânea”, afirmou.
A controvérsia
Na petição inicial, o Ministério Público Federal expôs que a Resolução no 1/99 do CFP é nula por transgredir, entre outros, o princípio da legalidade, o direito fundamental ao livre exercício profissional e ao direito fundamental à livre manifestação do pensamento.
Para os procuradores, a resolução do Conselho impediria que as pessoas procurassem atendimento desejado.
“Antes de tudo, é necessário contextualizar a demanda para deixar claro que o Ministério Público Federal se preocupa, na espécie, com os interesses daqueles homossexuais que querem espontaneamente o auxílio de um psicólogo”, escreve, na apelação, a Procuradoria da República no Estado do Rio de Janeiro.
Eles continuam: “se os homossexuais devem ser considerados minoria para efeitos da proteção do Estado como preconizado na r. sentença apelada, os homossexuais que pretendem o auxílio de psicólogos, então, constituem-se na minoria da minoria e, assim, devem ter proteção redobrada desse mesmo Estado.”
Fundamentação
No voto condutor, o desembargador Sergio Schwaitzer afirma que propalar a realização de tratamento e cura da homossexualidade contribui com um tratamento da orientação sexual como se fosse uma doença (patologização).
“O que não se coaduna até mesmo com o teor da nota constante na CID-10 F.66, segundo a qual ‘a orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno’”, anota.
A alegação do MPF de que a resolução fere o princípio da legalidade também não é válida, segundo o magistrado, já que o Conselho tem atribuição para orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de psicólogo – nos termos da lei 5.766/71.
“Trata-se apenas de um balizamento de atuação profissional, de tal forma a que seja vedada a promoção de quaisquer tipos de ações que impliquem, direta ou indiretamente, o reforço de uma pecha culturalmente sedimentada na sociedade no sentido de que a homossexualidade consiste em doença, distúrbio, transtorno ou perversão”, argumentou no voto.
Defesa
Mariana Kreimer Melucci, uma das representantes legais do CFP, conta que, durante a sustentação oral realizada no final de junho, no Rio de Janeiro, o membro do Ministério Público Federal se recusou a falar.
“Ele disse que aquela não era o pensamento do órgão, e preferiu não se manifestar durante a audiência”.
Segundo ela, a Ação Civil Pública foi motivada por uma psicóloga que promovia serviços de “cura gay” e que havia sofrido sanções pelo conselho de psicologia.
“Alguém do MPF resolveu embarcar no que essa profissional dizia, sob alegação de estar sendo tolhida do livre-exercício de sua profissão”, afirma.
Em sua defesa, o CFP escolheu duas vertentes legais: a da legitimidade do órgão como entidade competente para a regulação da profissão e a “despatologização” da homossexualidade.
Desde o início dos anos 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que a “orientação sexual por si não deve ser vista como distúrbio”.
“A alegação do que a resolução fere os direitos humanos e não permite o atendimento psicológico da população LGBT beira o absurdo”, comenta a advogada.
Nos memoriais do processo, ela chama atenção para o fato de o Ministério Público Federal embasar a pretensão de suspender a normativa sem, contudo, perguntar como esse sofrimento é produzido.
Vitória para os direitos humanos
A decisão unânime que manteve os termos normativos da Resolução 1/99 do Conselho Federal de Psicologia, embora passível de recurso, é uma importante vitória na luta dos Direitos Humanos. Essa é a avaliação da procuradora municipal Patrícia Mannaro.
“O próprio questionamento jurídico para excluir o art. 3 da Resolução, por si só, já deveria ser considerado no mínimo imoral”, afirma.
De acordo com ela, que é integrante da Rede Feminista de Juristas e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, a simples discussão jurídica sobre o tema já fere a dignidade da pessoa humana, que tem o direito a ter respeitado sua autodenominação e orientação sexual, sem que o Estado invada a intimidade pessoal e questione a essência de cada ser humano.
“O Brasil, na contramão dos ditames de igualdade da própria Constituição Federal, continua segregando direitos e garantias fundamentais a uma grande parcela da população brasileira”, aponta.
O novo CPC estabelece de forma expressa, em seu artigo 926, que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.
Ou seja, os tribunais não devem permitir divergências internas sobre questões jurídicas idênticas, como se cada magistrado ou turma julgadora não fizesse parte de um sistema.

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JOTA

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