Luis Viviani

O juiz Alexandre Morais da Rosa, da 4ª Vara Criminal de Florianópolis (SC), julgou, em controle de convencionalidade, a inexistência do crime de desacato, determinando que o conceito vai contra as liberdades democráticas. O caso envolve uma ação do Ministério Público de Santa Catarina contra o cidadão Alex Sandro dos Santos Ferraz.
Segunda a denúncia do MP, as raízes do caso estão em janeiro de 2012, Florianópolis, quando policiais militares avistaram uma briga generalizada e intervieram para apaziguar a situação. Contudo, Alex Sandro teria se mantido agressivo e gritava demasiadamente, além de dizer para as autoridades “que não gostava de polícia e que eram todos lotes de bichos, arrogantes e que não serviam para nada”. Assim, foi levado pelo crime de desacato, mesmo criando resistência ao continuar a ofender os policiais. 
O crime de desacato está no Código Penal e é definido por ser praticado por particular contra a administração pública, no artigo 331, que diz “Desacato: Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Pena: detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”
Na decisão, o magistrado citou tratados internacionais sobre direitos humanos, como o Pacto de San José (Convenção Americana de Direitos Humanos), e a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão para afastar a incidência do disposto no artigo 331 do Código Penal. 
 
“Cumpre ao julgador afastar a aplicação de normas jurídicas de caráter legal que contrariem tratados internacionais versando sobre Direitos Humanos, destacando-se, em especial, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC), bem como as orientações expedidas pelos denominados “treaty bodies” – Comissão Internamericana de Direitos Humanos e Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, dentre outros – e a jurisprudência das instâncias judiciárias internacionais de âmbito americano e global – Corte Interamericana de Direitos Humanos e Tribunal Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas, respectivamente”, diz o juiz na decisão.
E continua, demonstrando que o crime de desacato encontra algumas lacunas: “tenho que a manifestação pública de desapreço proferida por particular, perante agente no exercício da atividade Administrativa, por mais infundada ou indecorosa que seja, certamente não se consubstancia em ato cuja lesividade seja da alçada da tutela penal. Trata-se de previsão jurídica nitidamente autoritária – principalmente em se considerando que, em um primeiro momento, caberá à própria autoridade ofendida (ou pretensamente ofendida) definir o limiar entre a crítica responsável e respeitosa ao exercício atividade administrativa e a crítica que ofende à dignidade da função pública, a qual deve ser criminalizada. A experiência bem demonstra que, na dúvida quanto ao teor da manifestação (ou mesmo na certeza quanto à sua lidimidade), a tendência é de que se conclua que o particular esteja desrespeitando o agente público – e ninguém olvida que esta situação, reiterada no cotidiano social, representa infração à garantia constitucional da liberdade de expressão”.
“Por fim, cabe mencionar que a comissão de juristas brasileiros responsável pela elaboração do anteprojeto do Novo Código Penal deliberou, por maioria de votos, em sessão havida em 07 de maio de 2012, por sugerir a revogação do crime de desacato da legislação penal brasileira, ante a sua incompatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos”, diz, julgando improcedente a denúncia e absolvendo o réu.
“Não vou fazer o que você manda”
Paralelo a isso, recentemente o juiz André Vaz Porto da Silva, da 1ª Vara Criminal da Comarca de Barra Mansa (RJ), citou trecho da música “Killing in the name”, do conjunto norte-americano Rage Against the Machine, em decisão que absolveu réu que teria praticado desacato a ordem de um policial militar. Na epígrafe da sentença, o magistrado escreveu “Fuck you/ I won´t do what you tell me”, conforme noticiou o <a href="http://extra.globo.com/casos-de-policia/juiz-cita-verso-de-musica-com-palavrao-para-absolver-reu-por-desacato-fuck-you-17502568.html" target="_blank">Extra</a>. 
Interpretações 

Segundo o delegado Marcos Leôncio Ribeiro, presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), a questão trata de divergências de interpretação, além de afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro admite a conciliação entre o direito à manifestação e à liberdade de expressão com a punição pelos abusos e excessos.
“Os dois princípios estão preservados. Mesmo porque não há nenhum valor absoluto. Se uma pessoa foi presa, conduzida por supostamente ter desacatado, e houve excesso, será responsabilizada”, afirma. Entretanto, para o delegado, a questão do desacato deve ser mantida desde que não haja “banalização do conceito”. “Nesse caso, o policial que se exceder deve responder por isso também”, diz.
Ribeiro enxerga que a extinção do desacato como crime não vai resolver os excessos que as autoridades porventura possam adotar. Além disso, comenta que a doutrina é muito rica em dizer o que é ou não desacato, e há uma rede de garantias que a Constituição de 88 se preocupou em considerar, mostrando que a autoridade que faz a prisão não é a mesma que homologa o desacato.
“Se você está dirigindo e para uma blitz, normalmente há uma discussão. A pessoa acaba ofendendo a autoridade, que entende que houve desacato, mas ele não dá palavra final. Leva o cidadão para a delegacia de polícia, e um terceiro que não se envolveu na discussão confirma a legalidade ou não da prisão, como delegados ou juízes”, afirma, ao completar dizendo que a justiça brasileira possui critérios e cuidados “até por conta do valor do princípio da liberdade de expressão”.
Por fim, Ribeiro adverte que não se pode estimular as pessoas a não respeitar as autoridades, o que acabaria acontecendo caso houvesse a extinção do crime de desacato. 
“O problema não é o desacato, é o excesso de abuso de autoridade, quando uma pessoa quer impor sem respaldo legal sua autoridade. Isso gera desconfiança da sociedade com as autoridades do país. Mas é necessário que tenhamos instrumentos para punir os excessos, para que constrangimentos não se perpetuem”, diz.
Já Michelle Leite, presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef), conta que houve comemoração por parte dos defensores públicos com a decisão, por ser “bastante progressista”. Para ela, o direito penal deve se reservar a atender o que os outros ramos do direito não “são eficientes para resguardar”. 
“No caso da sentença do Dr. Alexandre, o réu manifestou uma opinião sobre os policias, e embora tenha sido infundada e indecorosa, não foi ato para justificar uma intervençao do direito penal”, diz, afirmando que o caso poderia ter sido tratado na esfera de responsabilidade civil. “Caberia indenização para quem se sentiu lesado, mas nada que atinja a liberdade do cidadão, isso seria desproporcional.”
Sobre a existência de um equilíbrio entre as liberdades de expressão e o controle das autoridades, Michelle considera difícil e teme haver inclusive insegurança jurídica.
”É um conceito muito aberto, porque está na esfera pessoal do agente público. A lei deve ser mais objetiva, porque o que pode ser desacato para um pode não ser para outro, e isso acaba sim gerando insegurança jurídica, é um aspecto negativo desse delito”, afirma.
Esse pensamento é também o do advogado Rafael Lessa Vieira de Sá Menezes, coordenador-auxiliar do núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, que diz adotar a linha da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na qual o desacato afronta o sistema democrático, pois impede que as pessoas possam manifestar sue descontentamento. “Os agentes estatais acabam utilizando desse crime para impedir essa liberdade de expressão”, completa.
Para Menezes, seria necessário tirar o conceito do código penal, já que um funcionário público pode tomar medidas judiciais e cíveis cabíveis. “A existência do crime de desacato leva uma conduta qualquer de insatisfação perante um funcionário público, um desserviço público, para a polícia, com processo penal e todas as suas consequências”.
O advogado lembra que nas manifestações públicas, nos últimos anos, muitas pessoas têm sido levadas para a delegacia após qualquer confusão. “A polícia leva e não tem como demonstrar quem quebrou tal vidro, por exemplo, e fazem boletim geral de desacato, dizendo que todos desacataram. Isso é uma justificativa de repressão de manifestações públicas”, aponta.

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JOTA

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