Bárbara Pombo

Decano do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro Felix Fischer afirma que os efeitos práticos da delação premiada, instituída pela Lei 12.850/2013 e em voga na Operação Lava Jato, podem surtir debates no Judiciário. “Temos que pensar se isso tem sentido jurídico. Uma pessoa que não tem importância nenhuma no esquema terá uma pena alta e o cabeça, não?”, afirmou ao JOTA o ex-presidente da Corte.
Fischer preside atualmente a 5ª Turma do STJ, responsável pelos julgamentos dos habeas corpus de réus na Operação Lava Jato. Aos 68 anos, afirma não sentir-se pressionado a manter as decisões da Justiça Federal do Paraná, confirmadas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que negaram as liberdades dos acusados de envolvimento no esquema de corrupção na Petrobras.
Com mais de 40 anos de carreira na área penal e ex-procurador do Ministério Público do Paraná, Fischer rechaça a legalização da maconha e o argumento de derrota à guerra contra o tráfico. Afirma ver a disseminação da venda e distribuição de drogas no Brasil a partir do combate feito na Colômbia. “Há uns cinco anos, era raro pegar um caso sobre mini usina de refino de cocaína em fazendas. Agora é difícil ter um mês que não chega um caso assim para ser julgado no STJ”.
Aponta, por outro lado, contradições na proposta de redução da maioridade penal aprovada em primeiro turma na Câmara, e defende um pente fino nas penitenciárias brasileiras para identificar presos por furto e estelionato, cujas penas são baixas o suficiente para o regime aberto ou semiaberto. “Precisamos verificar como essas pessoas foram parar nas penitenciárias. Talvez a pena tenha sido aplicada de maneira muito drástica, talvez preconceituosa”, afirma.
Fischer recebeu o JOTA nesta terça-feira (28/7), em seu gabinete, em Brasília. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
A lei da delação premiada é muito recente, e ainda não há jurisprudência das cortes superiores sobre o instituto. Quais pontos o senhor considera que podem ensejar maior debate sobre a aplicação da nova lei?
O problema é que a delação não é uma sentença, ela tem que ser bonificada ou ela não tem valor nenhum. A delação tem que ser vista com muito cuidado. Antigamente, quando não havia delação premiada, o Supremo tinha a jurisprudência para a chamada de corréu. Era o sujeito querendo tirar o corpo fora, imputando ao outro, achando que com isso, se condenado, na fixação de pena o juiz levaria em conta, mas não teria uma redução tão grande quanto essa delação premiada. Sem ser premiada, o Supremo ficava com o pé atrás. Sendo premiada, o juiz tem que ser muito cuidadoso porque as consequências são bem maiores do que se for uma delação típica se tudo aquilo for verificado.
A questão são os efeitos práticos dessa delação. Temos que pensar se isso tem sentido jurídico. Um sujeito que não tem importância vital no esquema entregando os demais é uma coisa. Outra é o líder do esquema se beneficiando com a delação. E vamos supor que caia uma hipótese dessa: em um grupo, todos fazem delação premiada. Ninguém será punido?
O senhor acha que caberia uma regulamentação da lei?
Ela está disposta em vários lugares, tem um tipo de delação no Código Penal e tem essas que estão sendo feitas agora. Não sei até que ponto isso não pode causar algum tipo de confusão. Tem que ver com cuidado o efeito do instituto sobre a pena. Uma pessoa que não tem importância nenhuma no esquema terá uma pena alta e o cabeça não?
Faria sentido ter delação premiada apenas para réus não presos?
Em relação ao réu que está preso não poderia ter, né? Às vezes, a pessoa está presa por outros motivos. Vamos supor o sujeito tentou fugir e foi preso, para quê impedir a delação dele? Essas medidas que são muito radicais, que mudam completamente a sistemática têm que ser analisadas com muito cuidado.
O STJ e o Supremo, até o presente momento, apoiaram todos os atos que vieram do Paraná, em relação a Lava Jato. O senhor acha que a operação não correria risco de ser anulada?
Pode ser que eu receba um processo que é caso de nulidade, não dá para adivinharmos. O fato de haver nulidade não quer dizer que houve um equívoco da pessoa que está julgando.
Advogados têm dito que a Lava Jato se tornou um reality show judicial. Haveria, nesse caso, conflito entre o direito à informação do público e o direito de uma investigação e julgamento reservado, sem holofotes?
Acho que a divulgação de detalhes da investigação não está ocorrendo. Nós sabemos que está havendo uma investigação. Os detalhes não estão sendo divulgados, têm casos de quebra de sigilo bancário, o que não pode ser divulgado. Eu acho que é um caso de repercussão em razão dos valores envolvidos e o número de pessoas envolvidas. Isso desperta muita atenção de quem acompanha por jornal.
Acho que o problema maior no nosso sistema é o julgamento ser público. Na maioria dos países, do segundo grau para cima, a deliberação é feita em sala fechada. A transparência é quanto a motivação da decisão. Não é dizer sim ou não, tem que dizer o porquê.
Qual o prejuízo que o senhor vê nos julgamentos abertos?
Fica muito lento. Dependendo do processo, a pessoa quer mostrar que tem conhecimento, faz votos muitos longos. Vemos muitas vezes superposição, por exemplo, o relator falou uma coisa e o outro fala a mesma coisa com outras palavras. Em uma sala fechada, isso não aconteceria. Se o julgamento em público fosse sinal de transparência, como fica o fato de que 80% das decisões são monocráticas na nossa Justiça? O juiz teria que explicar em público a sua decisão. Acho que não é relacionado a transparência, é uma tradição nossa, mas quando o volume de processos é grande, isso atrapalha...e muito.
A 5ª turma julgará os habeas corpus de réus na Lava Jato que foram negados na primeira instância e no Tribunal Regional Federal da 4ª Região. O senhor se sente pressionado a manter essas decisões diante da repercussão da operação?
Não...eu quase não tenho vida social, então...Acho que a maioria [dos ministros] não sofre. Nunca tive esse tipo de problema. Não que seja melhor que os outros, mas é porque levo uma vida simples. Mas é bom que imprensa fique em cima não porque alguém fará algo de errado, mas por ser um caso muito relevante. Aqui e no Supremo sempre têm casos de repercussão. A cachina em Manaus daqui a pouco vai repercutir aqui – 37 pessoas [mortas] em um fim de semana. Tá loco...
Nos últimos anos, tivemos investigações e julgamentos envolvendo réus de alto poder econômico e influentes na política. O senhor considera que essa é uma mudança de paradigma que veio para ficar?
O fato é que [a Polícia Federal e o Ministério Público] estão atuando rápido. Agora, se deve ser julgado procedente dependerá de cada situação.
O senhor é do Paraná. Conheceu o juiz Sérgio Moro? Pode fazer alguma avaliação sobre ele?
Só de cumprimentar porque eu era do Ministério Público Estadual e ele da Justiça Federal. Ele parece ser, pelo que falam, um excelente juiz.
O que podemos esperar da 3ª Seção e da corte especial nesse segundo semestre do STJ? Tem algum julgamento mais importante?
Na terceira seção, eu fiquei quatro anos fora como vice e depois como presidente do tribunal. Mudou o tipo de processo que vinhamos julgando, tinha uma variedade maior até porque se julgava matéria civil também. Na época, nós julgávamos previdenciário, locação e servidor público. Nós ficamos só com o resíduo, foi tudo para a 1ª e 2ª Seções. Mas, em matéria pena, temos um índice muito alto de crimes de roubo, furto e o tráfico de drogas. Casos de usuários não chegam aqui porque não tem amparo legal para condenar um usuário. O que chega aqui é tráfico mesmo, que anda bem disseminado. Desde pequenas fabriquetas de cocaína, plantação de maconha e outros casos nos quais as pessoas estão distribuindo.
Mas ainda está em discussão alguma questão sobre a quantidade de droga encontrada para fins de caracterização de tráfico?
Esse tipo de discussão não tem aparecido, pode ser que tenha aparecido na 6ª Turma. O que tem se discutido muito na parte de tráfico de entorpecentes é uma situação que se chama de tráfico privilegiado. Quando o sujeito não tem antecedentes, vai ter uma redução da pena, a pena fica bem branda.
No segundo semestre, o Supremo pode julgar a descriminalização do porte de drogas para uso próprio...
O uso próprio já está praticamente descriminalizado, está despenalizado. Praticamente não tem pena, é o que está na lei. Agora, liberar o uso de entorpecentes é complicado. Tem um estudo que foi feito pela Polícia Federal e apresentada em audiência pública no Congresso. O sujeito fez um trabalho detalhado, bem técnico, em que foi feito uma enquete que mostrou que 70% da população brasileira não quer descriminalização. Agora uso medicinal é outra coisa, até morfina é utilizada. Maconha pode ser utilizada também, mas não para ser inalada. Um dado que é omitido é de que parece que a maconha tem quatro, cinco tipos e alguns deles são muito fortes.
A maconha tem cinco vezes mais alcatrão que o cigarro. Conseguiram fazer uma campanha muito exitosa para proibir o cigarro, eu, por exemplo, não fumo cigarro desde 1996. É difícil encontrar alguém que fume cigarro, ou seja, foi uma campanha bem feita. No entanto, vão liberar a maconha que é pior que o cigarro. Você estará em um restaurante, não vai poder fumar cigarro, mas vai poder fumar maconha. Aí não tem fumante passivo?
Tem uma série de questões que devem ser observadas. Por exemplo, o combate contínuo na Colômbia contra o tráfico, acabou trazendo muita coisa de lá para cá. Há uns cinco anos, era raro pegar um caso que na fazenda de alguém houvesse uma mini usina de refino de cocaína. Agora é difícil ter um mês que não chega um caso assim para ser julgado aqui, no STJ. E ainda temos os casos que morrem lá embaixo [nas instâncias ordinárias].
Tem um argumento que corre muito aí que, na guerra contra o tráfico, nós já perdemos, então é melhor liberar. Se for assim  libera logo a corrupção, o homicídio, o roubo. Todos os dias você vê nos noticiários um assalto com morte, sempre tem homicídio. Se esse é o problema, não conseguir enfrentar esse tipo de crime, então vai tudo será liberado.
O senhor percebe que esses crimes de furto e roubo vêm atrelados ao tráfico de drogas?
Nos casos que chegam aqui, isso acontece muito pouco. Apesar de nas estatísticas das penitenciárias, ter um número muito alto de condenados cumprido pena por furto. Eu não consigo entender como, a não ser que a pena tenha sido fixada de forma absurdamente alta ou se houver reincidência. Não deveria ter, parece que tem 80 mil condenados por furto em penitenciárias. Me parece que em furto e pequenos estelionatos, também não podia estar lá. A pena é baixa o suficiente para ter direito de regime de aberto ou semiaberto.
Tem que ter algum organismo para vasculhar aqueles que estão apenados. Porque acho que tem muita gente que está apenada, em casos de furto, pequenos estelionatos. Precisamos verificar como essas pessoas foram parar nas penitenciárias. Talvez a pena tenha sido aplicada de maneira muito drástica, talvez preconceituosa.
Alguns argumentam que o Estado ainda não está bem aparelhado para cumprir essas medidas alternativas.
A pena prevista por furto é baixa. Quando não tem lugar reservado para o regime semiaberto, pela jurisprudência vai para o regime aberto. Não pode ficar em um regime que seja mais grave do que aquele a qual ele foi condenado. Então, essa desculpa não pega.
Como o senhor avalia a política de combate ao tráfico de drogas no Brasil?
Misturam muito a situação de tráfico com a de uso próprio. Mas uma coisa está relacionada a outra. Tem que haver uma organização melhor para combater.
De que forma?
Isso é uma discussão que cabe à esfera policial. Mas chegar de certa feita tal qual um secretário, não daqui, de um outro Estado e falar que era melhor liberar o uso da droga porque perdemos a guerra. Se for assim, nós perdemos a guerra contra vários outros crimes. Só é preciso assistir ao noticiário, não precisa nem pegar estatística. Na hora do almoço, tem tanto crime nojento que não dá nem para comer assistindo. O índice de crimes violentos é muito alto, então o noticiário é só isso. É aquilo que antigamente se chamava de jornal que se espreme só sai sangue.
Ao que o senhor atribui isso?
Eu acho que isso é o uso de drogas. Acho que um cara normal não comete esse tipo de crime. A própria iniciativa de cometer essas violências, só com o uso de drogas. Não dá para comparar com o álcool, alguém alcoolizado não comete esse tipo de crime.
Perdemos a noção do absurdo?
Se a coisa fica banalizada, a tendência é que a pessoa também chegue a uma situação de indiferença. Esse é o perigo.
Como o senhor tem visto as discussões sobre a redução da maioridade penal, que foi aprovada em primeiro turma na Câmara?
Não concordo com o que estão fazendo, como a pessoa pode ser apenada por alguns crimes e não por outros? Ou ele tem consciência de toda e qualquer atividade criminosa, como qualquer outra pessoa, ou não tem. Agora, ter só para alguns crimes, não faz sentido. Curiosamente, deixaram de fora crimes muito graves. Se for para reduzir, reduz geral. Tráfico internacional seria e tráfico interno não?
Na minha opinião, é preciso separar os menores de 18 anos dos outros detentos. Cumprir pena em local separado, pode ter um atenuante devido a idade. Pode ser até para diminuir mais do que o normal, mas para o cumprimento da pena é preciso colocar em um lugar separado.
Antes mesmo da entrada em vigor do novo CPC, já há um projeto de lei no Senado para alterar o código. O senhor é adepto das críticas em relação ao fim da admissibilidade dos recursos especial e extraordinário na origem?
Acho que deve haver admissibilidade prévia, como tem sido até hoje porque senão não tem condições de o tribunal funcionar. Para o STJ é até pior do que para o Supremo.
Por quê?
Porque eles têm a repercussão geral. A própria parte vai deixar de recorrer ao Supremo. Se a análise de admissibilidade vier para nós vai complicar muito. Se tiver que ampliar o tribunal ele deixa de ser uma Corte de padronização, vira um tribunal como qualquer outro. Já é difícil fazer isso com o número de ministros que temos porque volta e meia há divergência entre turmas e entre seções. Nossa função é de uniformizar a jurisprudência infraconstitucional. Se o tribunal for ampliado cria um efeito cascata de confusão porque não tem nem mais espaço aqui. Fazer o arcabouço de uniformização ficará impraticável.
O Judiciário volta do recesso com a grave dos seus servidores. Teme prejuízo em relação aos julgamentos?
Aqui no gabinete estamos trabalhando. Se não der para levar para julgar, não deu. Mas estamos nos preparando para julgar. O problema é que eles [os servidores] ficaram por muito tempo com os vencimentos congelados em uma época que dizem não ter existido inflação, já existia sim. Isso é muito chato. Resta saber se há condições de pagar isso tudo.

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JOTA

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