Guilherme Pimenta

A crise financeira de 2008, responsável por uma das maiores recessões econômicas globais da história, relevou que os bancos necessitam de uma estrutura de governança corporativa e de compliance diferente das demais empresas.
A análise é a advogada Pamela Romeu Roque, professora do Insper, que lançou o livro "Governança Corporativa de Bancos e a Crise Financeira Mundial", pela editora Almedina. A especialista concedeu entrevista ao JOTA sobre a obra.
"A recessão revelou que a governança corporativa no setor bancário deve ser considerada com especificidades para além do que conhecemos como governança corporativa geral, ou seja, com algumas estruturas próprias e/ou ênfases particulares", afirmou Pamela.
Segundo ela, as instituições financeiras "demandam alguns cuidados especiais", como gerenciamento de riscos, políticas de remuneração dos diretores e com as estruturas de controle/fiscalização, que envolvem comitê de auditoria, política de conformidade, auditoria interna e auditoria independente.
"Esses temas acabam também sendo alvo de regulação propriamente dita e, assim, há um componente de direito com força cogente que deve ser sopesado em um nível muito mais elevado do que encontramos na maioria dos casos de outras espécies empresariais", defendeu a professora.
Especialistas avaliam que o pagamento de bônus a executivos de bancos se davam na mesma proporção em que eles assumiam riscos. Quando estourou a crise, o risco ficou com o mercado.
Pamela Roque avalia que as regras sobre governança corporativa de instituições financeiras vigentes no Brasil estão alinhadas aos padrões e boas práticas internacionais. "Temos algumas lacunas pontuais, como a política de remuneração não apenas da Alta Administração, mas de funções abaixo que também possam trazer risco ao banco", disse.
"Vale relembrar que, com certa frequência, lemos notícias ou tomamos conhecimento de medidas judiciais ajuizadas em função de condutas ilícitas, especialmente fraudulentas, praticadas no interior de bancos brasileiros com o propósito de bater metas e auferir bônus", completou Pamela.
A advogada ainda fala que há uma ligação entre estabilidade financeira e governança corporativa bancária. "A governança corporativa de bancos lida com o modo como determinados bancos são governados, e bancos bem governados contribuem para a estabilidade financeira."
Leia a entrevista na íntegra:
Quais foram os impactos da crise de 2008 nos bancos brasileiros? Por que foram bem menores quando se compara a outros países?
Entendo que uma análise cuidadosa dos impactos da crise de 2008 no Brasil, bem como da própria atuação e efetividade do Banco Central, dependem de ponderação multidisciplinar de dados, especialmente no tocante às características da economia brasileira da época, notadamente do desenvolvimento do crédito em relação ao nosso PIB e exposição dos nossos bancos aos produtos que se encontravam na raiz do problema. Esse último ponto, inclusive, merece ser analisado sob a ótica mais abrangente de como os bancos no Brasil conduzem suas atividades e seu faturamento em comparação com o que se praticava nos mercados norte-americano e britânico à época e, principalmente, o porquê disso.
Que lições a crise financeira revelou para a governança corporativa no setor financeiro?
A crise financeira revelou que a governança corporativa no setor bancário deve ser considerada com especificidades para além do que conhecemos como governança corporativa geral, ou seja, com algumas estruturas próprias e/ou ênfases particulares.
Um dos problemas de governança bancária antes da crise era que a estrutura remuneratória dos executivos bancários incentivava a tomada de risco excessiva no curto prazo. O Brasil enfrentava ou enfrenta problemas semelhantes?
Logo após a crise, o Brasil alinhou-se à tendência mundial decorrente daquele momento de cuidado com as estruturas remuneratórias em bancos por meio da Resolução CMN 3.921/2010. É de se destacar, entretanto, que a referida norma é focada na Alta Administração dos bancos (ou seja, diretoria e conselho de administração). O movimento internacional de preocupação com as estruturas remuneratórias em bancos pós-crise de 2008 tem uma abrangência maior e volta-se a todos aqueles que, independentemente de sua posição hierárquica na estrutura da instituição bancária, possam assumir riscos substanciais para o banco.
Para além dessa constatação, devemos reconhecer que o Brasil tem, em regra, uma lógica remuneratória não tão agressiva e alavancada como a que acontecia, por exemplo, nos Estados Unidos da América na época da crise. Especialmente, temos uma legislação trabalhista muito diferente da realidade norte-americana. Essas características contribuem para a assertiva de que não enfrentávamos e não enfrentamos o mesmo nível de problema. Não obstante, o risco que estruturas remuneratórias inadequadas representam para uma instituição bancária (especialmente porque "risco" faz parte do centro de seu negócio) demanda que haja um cuidado especial em termos de governança corporativa quando comparada a outras indústrias, mesmo que não necessariamente tratemos do mesmo nível de situação que existia na base da crise de 2008.
Vale relembrar que, com certa frequência, lemos notícias ou tomamos conhecimento de medidas judiciais ajuizadas em função de condutas ilícitas, especialmente fraudulentas, praticadas no interior de bancos brasileiros com o propósito de bater metas e auferir bônus. Os incentivos gerados pelas estruturas remuneratórias e o efetivo compliance das condutas devem ser cuidadosa e constantemente analisados.
No cenário pós-crise de 2008, o que começou a ser feito pelo regulador brasileiro (Banco Central) e pelos bancos no que se refere à governança corporativa?
O regulador brasileiro veio emitindo normas versando sobre a governança corporativa de bancos e considerando elementos dessa vertente na avaliação que faz das entidades reguladas. Além da já referida Resolução 3.921/2010, devemos mencionar, sem sermos exaustivas, as vigentes Resolução 4.557/2017, que trouxe a importante preocupação da gestão de risco integrada, Resolução 4.588/2017, versando sobre auditoria interna e Resolução 4.595/2017, versando sobre compliance.
Quais as diferenças que uma instituição financeira precisa adotar em sua governança corporativa comparando com as demais empresas?
De uma maneira simplificada, instituições financeiras demandam alguns cuidados especiais, notadamente quanto i) ao próprio objetivo da governança corporativa, que acaba ganhando contornos mais enfáticos com relação ao cuidado com os stakeholders (partes interessadas) de bancos, mesmo em países em esta perspectiva não é muito comumente aceita para outras espécies de entidades empresariais; ii) quanto à qualificação técnica da Alta Administração (conselho de administração e diretoria); iii) quanto ao gerenciamento de riscos, que conta com estruturas de governança de risco como a Declaração de Apetite de Risco (RAS), o Comitê de Risco e o Diretor de Risco (CRO); iv) quanto a políticas de remuneração e sua relação com a assunção de risco para a instituição, bem como estabelecimento de um comitê de remuneração; e v) cuidados com as estruturas de controle/fiscalização, que envolvem comitê de auditoria, política de conformidade, auditoria interna e auditoria independente. Todos esses temas acabam também sendo alvo de regulação propriamente dita e, assim, há um componente de direito com força cogente que deve ser sopesado em um nível muito mais elevado do que encontramos na maioria dos casos de outras espécies empresariais.
Qual a relação entre governança e estabilidade financeira?
A estabilidade financeira evidentemente depende de uma série complexa de fatores, mas podemos dizer, em sentido amplo, que a governança corporativa de bancos lida com o modo como determinados bancos são governados, e bancos bem governados contribuem para a estabilidade financeira.
Recentemente o CMN promulgou a Resolução 4.595, que trata de compliance. Ela forma uma trilogia, com a 2.554 (de controles internos, que é a mais antiga) e a 4588, de auditoria interna. É correto dizer que esse tipo de estruturação interna - compliance, controles internos, auditoria - passou a ser essencial para a governança das instituições desde a crise? Por que?
Sim. Desde a crise que o chamado modelo de 03 Linhas de Defesa vem se consolidando internacionalmente para a governança corporativa de bancos, valendo-se, justamente, do gerenciamento de risco feito, em uma primeira linha, pelos próprios gestores das áreas de produção; em uma segunda linha, pelas áreas de gestão integrada de riscos e compliance; e, em uma terceira linha, pela área de auditoria interna. Isso advém da percepção de que é necessário envolver o banco como um todo no gerenciamento de risco, ao mesmo tempo em que se pretende que este gerenciamento seja integrado, holístico e, evidentemente, organizado.
Como a sra. avaliou o conteúdo da circular do Banco Central sobre compliance?
O conteúdo da Resolução 4.595/2017 é mais abstrato do que alguns esperavam, principalmente em função do momento em que vivemos. Mas a sua comparação com manifestações do Comitê da Basileia, especialmente no documento que versa sobre governança corporativa de bancos de 2015 (que alçou a função de compliance em bancos a um princípio de governança corporativa), faz concluir que seu conteúdo seguiu as linhas principais daquelas.
Como a própria norma diz, a política de compliance implementada em determinada instituição deve considerar sua natureza, porte, complexidade, estrutura, perfil de risco e modelo de negócio da instituição - há efetivamente uma grande diversidade e quantidade de possibilidades de estruturas dentre as instituições supervisionadas pelo Banco Central. A opção por adentrar ainda mais em detalhes quanto à política de compliance poderia significar um engessamento inadequado para essa realidade. Ao contrário, a ênfase em noções essenciais (como o gerenciamento do risco de conformidade de maneira integrada aos demais riscos, matérias mínimas a serem tratadas, a separação da área de compliance da de auditoria interna, remuneração independente do desempenho das áreas "fiscalizadas", a indelegabilidade da atribuição e da responsabilidade do conselho de administração, o cuidado em assegurar recursos para o desempenho da função e a documentação da política), nesse contexto, é positiva. Para desenvolvimentos futuros, considerar que o regulador pode emanar normas mais contundentes com relação a determinados segmentos (seguindo a segmentação realizada pela Resolução 4.553/2017) também seria positivo.
As regras sobre governança corporativa de instituições financeiras vigentes no país estão alinhadas aos padrões e boas práticas internacionais?
De um modo amplo, sim. Temos algumas lacunas pontuais, como a política de remuneração não apenas da Alta Administração, mas de funções abaixo que também possam trazer risco ao banco (os chamados substantial risk takers), conforme já mencionamos.
Qual o papel da soft law no mercado bancário brasileiro?
Considerando que temos um mercado bastante concentrado, e um regulador presente, o soft law aqui, apesar de importante, não tem a mesma importância do que observamos fora. Entretanto, o soft law, especialmente decorrente dos organismos internacionais, é um importante norte de orientação de melhores práticas, especialmente para, por exemplo, preencher lacunas e extrair a essência de estruturas, assim como também colabora para atualizações decorrentes de lições aprendidas em diferentes mercados.
Quais os desafios regulatórios bancários brasileiros para o futuro?
Do ponto de vista jurídico, ressaltaria o desafio da revisão e atualização de normas do tratamento de instituições financeiras em crise vis-à-vis a recente evolução internacional, notadamente quanto ao desenvolvimento de mecanismos de bail-in (focado em colaboração de investidores a bancos em dificuldade) em contraste com o bail-out (quando há socorro de governos aos bancos em dificuldade).

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JOTA

Pamela Roque, professora do Insper, lança obra que analisa impacto da recessão nos bancos

'Crise mostrou que bancos precisam de governança própria'

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