<p>Na manhã do dia 27 de maio, uma quarta-­feira, enquanto o ex­-presidente da CBF, José Maria Marin, e mais oito dirigentes da Fifa eram detidos por autoridades suíças num hotel de Zurique, um documento de poucas laudas vindo do FBI chegava às mãos do procurador da República Vladimir Aras, na sede da PGR (Procuradoria Geral da República), em Brasília.</p>
<p>O pedido era para a realização de uma busca e apreensão na sede de uma empresa de marketing esportivo no Rio de Janeiro. Em menos de cinco horas, sete agentes da Polícia Federal e dois membros do MPF batiam à porta da Klefer, firma do ex­presidente do Flamengo, Kléber Leite, no bairro de Botafogo.</p>
<p>Para o baiano Aras, que desde 2013 comanda a Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional da PGR, essa celeridade seria impensável há 10 anos e representa o avanço na cultura de colaboração entre os países no combate à corrupção, delitos financeiros e outros crimes graves. "Não existem mais refúgios seguros, em que a pessoa vai se esconder e ficar protegida pelo resto da vida, usufruindo de seus recursos obtidos de forma ilícita", diz o procurador, segundo quem o caso da Fifa é um bom exemplo do fim desses "safe heavens".</p>
<p>"A Suíça já foi um país onde você poderia esconder dinheiro. Não é mais. Não existe mais isso de a pessoa pensar que vai colocar o dinheiro numa conta numerada em Genebra e achar que está tudo bem. A Lava Jato é uma prova cabal disso", acrescenta o procurador, que atuou na força­tarefa do Banestado, pioneira no uso da cooperação internacional, e foi um dos negociadores da extradição do ex­diretor do Banco do Brasil, Henrique Pizzolatto, condenado no processo do Mensalão. Ele exalta os mais de R$ 440 milhões repatriados desde o ano passado vindos de bancos suíços.</p>
<p>Nessa entrevista concedida por telefone, enquanto participava de um evento do MPF em Ouro Preto, Aras enaltece o que chama de "década da cooperação internacional", com a estruturação de mecanismos internos e externos para incentivar a atuação coordenada das nações no combate transnacional à criminalidade e também vê uma contribuição indireta do 11 de setembro nesse cenário. "A movimentação de valores, pessoas e mercadorias usadas para fomentar o terrorismo também favorece outros tipos de crimes graves. E esse ambiente favorável à cooperação no combate ao terrorismo também contribuiu para intensificar o combate a outras formas de criminalidade", diz.</p>
<p>O procurador só se esquiva quando questionado sobre os próximos passos da PGR no caso Fifa e uma possível cooperação mais estreita com o FBI. "Tudo o que posso dizer é que o MPF está no caso".</p>
<p>Leia a entrevista:</p>
<p><strong>O sr. atuou em 2003 num dos primeiros grandes casos de cooperação internacional, o caso Banestado. Hoje esse cenário de colaboração entre autoridades de diversos países parece mais consolidado, vide Lava Jato, Swissleaks e, mais especialmente, o caso Fifa. O que mudou de lá pra cá?</strong><br />
Primeiramente, houve uma mudança interna, com a estruturação dos órgãos de cooperação internacional no país. Antes não tínhamos sequer uma unidade do MPF dedicada a esse trabalho; agora temos, foi criada em 2005, ainda com outro nome, numa condição de assessoria, e alçada à condição de secretaria em 2013, na gestão [Rodrigo]Janot. Outro passo importante foi a estruturação do DRCI [Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional], criado no Ministério da Justiça em 2004. Quando estourou o caso Banestado não havia nem a unidade do MPF nem a do Ministério da Justiça. A PF também não tinha uma divisão de cooperação internacional, só a unidade da Interpol; agora tem um órgão interno dedicado exclusivamente a isso. Essa estruturação foi muito bem vinda e ajudou a mudar o quadro. Do ponto de vista externo, houve uma harmonização da legislação internacional, graças a adoção de grandes tratados multilaterais de combate a crimes graves, que estabelecem regras mínimas para fortalecer essa colaboração entre os Estados. Até 1988, só havia a Convenção de Viena sobre o Narcotráfico. Em 2000, veio a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, a Convenção de Palermo. Essa convenção entrou em vigor para o Brasil em 2004. Também houve a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Corrupção, que entrou em vigor para o Brasil em 2006. A estruturação interna somada a esses instrumentos normativos internacionais favoreceram esse ambiente cooperativo.</p>
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<p><strong>A chamada "Guerra ao Terror" teve alguma influência?</strong></p>
<p>O fenômeno do terrorismo também favoreceu demais o espírito das nações no sentido da cooperação. A movimentação de valores, pessoas e mercadorias usadas para fomentar o terrorismo também favorece outros tipos de crimes graves. E esse ambiente favorável à cooperação no combate ao terrorismo também contribuiu para intensificar o combate a outras formas de criminalidade. Não só como um reflexo da preocupação norteamericana, mas também no continente europeu, que tem influenciado até mais do que os EUA, com os instrumentos de cooperação da União Europeia e da Comissão Europeia, como mandados europeus de entrega para extradição, mandados europeus de obtenção de provas ­­no lugar de pedidos formais de cooperação entre os países, como ainda se usa nas Américas. Hoje há quase uma consciência global sobre a necessidade de se combater o crime grave onde quer que ele esteja.</p>
<p><strong>As leis penais no Brasil acompanharam esse processo?</strong></p>
<p>Sim. Houve uma evolução legislativa que permitiu ao país se integrar melhor a esse cenário. A Lei do Crime Organizado de 2013, por exemplo, é muito melhor que a anterior, que era de 1995. A Lei de Lavagem de Dinheiro, que foi alterada em 2012, ficou muito melhor que a versão original,que era de 1998. Há uma soma de fatores que contribuíram para que o resultado desse esforço cooperativo do Brasil com outros países fosse mais bem sucedido. E também há uma soma de fatores díspares, mas que convergem para a facilitação do diálogo internacional, para que não haja uma interrupção da capacidade dos Estados, notadamente dos Ministérios Públicos e das polícias, de alcançar criminosos e seus ativos onde quer que eles estejam. Na Europa, já se caminha a passos largos para a supranacionalização dos órgãos de persecussão criminal e controle, com a criação de uma polícia (Europol), um órgão de regulação de fronteiras (Frontex), um órgão de coordenação da cooperação jurídica entre os países membros (Eurojud) e, em breve, um MP europeu. Esse é um processo que cedo ou tarde também vai chegar na América.</p>
<p><strong>Por que o sr. diz que o caso de corrupção da Fifa mostra que não há mais "safe heavens"?</strong></p>
<p>No caso da FIFA, o que muita gente imaginava era que a Suíça continuava a ser um paraíso para a ocultação de recursos, como no passado o Brasil foi um paraíso para se ocultar criminosos. Durante muito tempo foi assim. Joseph Mengele morreu aqui, Ronald Biggs viveu aqui por muito tempo, Tomaso Buscetta, por outro lado, foi preso e extraditado. A captura desse italiano Pasquale Scotti [membro da Camorra, preso em maio] mostra que a coisa já não é mais bem assim. Ele ficou aqui quase 30 anos foragido no país, ainda é fácil se esconder aqui, mas essa facilidade é cada dia menor. A Suíça já foi um país onde você poderia esconder dinheiro. Não é mais. Não existe mais isso de a pessoa achar que vai colocar o dinheiro numa conta numerada em Genebra e achar que está tudo bem. A Lava Jato é uma prova cabal disso. Nesse periodo de 11 anos em que se estruturou esses instrumentos de cooperação internacional no Brasil, a quantidade de dinheiro recuperada foi de R$ 45 bilhões. Em menos de um ano de Lava Jato, somando a recursos do caso Rocha Mattos, a Suíça mandou de volta para o Brasil mais de R$ 440 milhões. Ou seja, se há uma investigação bem feita no país, não há porque acreditar que esse dinheiro vá ficar guardado lá fora.</p>
<p><strong>O mesmo vale para o criminoso?</strong></p>
<p>Se você é um criminoso, onde quer que você esteja você pode ser capturado. Hoje se tem uma consciência muito maior por parte do Ministério Público de como funciona a Interpol, o caso Pizzolatto não me deixa mentir. A comparação com o caso do Salvatore Cacciola é emblemática. O sujeito com cidadania italiana fugiu para lá e não aconteceu nada ­­só foi preso porque viajou para Mônaco. Com o Pizzolatto foi completamente diferente, já estamos na terceira fase do processo de extradição e agora ele deverá ser entregue. Não há como dizer que existem refúgios em que a pessoa vai se esconder e ficar protegida pelo resto da vida, usufruindo de seus recursos obtidos de forma ilícita. É claro que ele pode ficar escondido em qualquer canto do planeta, mas fica escondido como qualquer outro criminoso. Ele não fica mais tranquilo em nenhum lugar. Não existe um lugar em que as democracias não possam, por meio do devido processo legal coperacional, regulado pelos tratados internacionais e pelas legislações internas, dar continuidade a uma persecução penal iniciada em seu território, apenas porque se atravessou uma fronteira.</p>
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<p><strong>A via é de mão dupla? O Brasil está aberto a investigações de outros países?</strong></p>
<p>Dentro dessa década da cooperação, ocorreu uma outra mudança importante porque antes o STF tinha um entendimento de não permitir que investigações de outros países continuassem aqui. Em 2004, a EC 45 transferiu a competência sobre as cartas rogatórias do STF para o STJ. Isso flexibilizou esse ambiente e hoje nós fomos além e temos, graças a uma resolução do STJ, um instrumento que é o auxílio direto. Podemos cumprir um pedido de uma autoridade estrangeira diretamente, sem passar pelo STJ, com a intervenção de um procurador da República e um juiz de primeiro grau. Esse instrumento permitiu que atendessemos ao pedido de diligência dos EUA no caso da Fifa em 10 horas. Recebemos o pedido na manhã do dia em que os suspeitos foram presos na Suíça; ao meio­dia o pedido chegou na minha mão na PGR; e o colega do MPF executou a diligência entre as 17h e 18h no Rio de Janeiro. Isso não seria possível sem o auxílio direto, se não tivéssemos essa facilitação do diálogo com os outros países, se não tivéssemos a secretaria que eu ocupo, que facilita a comunicação dentro do Ministério Público, e se não houvesse o tratado que regula essa cooperação.</p>
<p><strong>O caso da Fifa levantou novamente a discussão sobre jurisdição. Há quem diga que os EUA estão agindo como polícia do mundo, investigando crimes que não têm relação com eles. Qual sua opinião?</strong><br />
É uma situação curiosa. Aqui no Brasil nós temos desde 1984 regras escritas no Código Penal que permitem a persecução transnacional de delitos que tenham sido cometidos fora do território brasileiro. Esse tema já foi debatido em muitos países. No caso do genocídio em Ruanda, por exemplo, a Bélgica, que tinha uma cláusula de jurisdição penal universal, processou vários cidadãos ruandeses por crimes cometidos em Ruanda contra naturais daquele país em tribunais em Bruxelas. O Pinochet foi processado na Espanha por crimes cometidos contra cidadãos espanhóis no Chile. São muitos os casos, porque existem dois tipos de jurisdição: a territorial, que é a mais comum, e a extraterritorial condicionada ou incondicionada. O artigo 7o do Código Penal brasileiro prevê que um crime praticado contra o presidente da República, em qualquer lugar do planeta é de jurisdição brasileira. Crimes previstos em tratados internacionais, como a Convenção contra o narcotráfico, sobre o tráfico de pessoas, são de jurisdição brasileira, ainda que não tenham sido cometidos aqui, desde que respeitem algumas condição estabelecidas na lei. A crítica contra os Estados Unidos é frágil porque vários países têm regras de jurisdição extraterritorial.</p>
<p><strong>É uma discussão superada?</strong></p>
<p>Não diria nem que está superada, diria que é um falso problema. É tradicional no direito internacional a existência de jurisdição extraterritorial de forma condicionada e também de forma incondicionada nos casos de crimes lesa humandidade, especialmente nos países europeus de tradição de civil law. Nos Estados Unidos, o que eles costumam alegar é que, se um crime, em qualquer uma de suas fases, toca o território americano, isso atrai a jurisdição americana. Falando de um caso hipotético: um cidadão no Brasil decide mandar dinheiro para Angola para subornar um agente público de lá. A relação, aparentemente, é entre o corruptor no Brasil e o corrupto em Angola, com a jurisdição ficando nesses dois países. Mas se esse dinheiro sujo for lavado por meio de um banco americano, os EUA têm competência para investigar o caso. O mesmo valeria se o dinheiro fosse lavado no Brasil. E essa foi uma das alegações usadas para afirmar a competência americana nesse caso: o fluxo do dinheiro passando pelo território dos EUA. Ao contrário de um problema, isso pode ser uma coisa boa. No caso do Banestado, isso foi muito útil para o Brasil, porque foi possível buscar provas lá sobre crimes cometidos no Brasil e no Paraguai. As sedes do banco em Nova York e Miami serviam apenas para lavar o dinheiro, mas como os recursos passaram por lá, eles puderam processar pessoas e nos ajudar na recuperação dos ativos ­­o que de fato aconteceu.</p>
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<p><strong>No caso da Fifa, as autoridades americanas estão usando largamente acordos de delação premiada. No Brasil, começamos a usar esse instrumento na operação Lava Jato. Estamos nos aproximando do modo como os EUA investigam crimes?</strong></p>
<p>Não diria que estamos começando a usar agora. O primeiro acordo de colaboração premiada realizado no Brasil ocorreu em 2003, no caso Banestado, quando fizemos o acordo de Alberto Youssef, que foi homologado pelo juiz Sérgio Moro. Essa experiência do Banestado, quando foram realizados 18 acordos, foi adotado pel Enclaa (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), e posteriormente apresentado como projeto de lei pela então senadora Serys Slhessarenko (PT­MS). Durante os protestos de 2013, o senador Renan Calheiros, durante uma madrugada no Congresso, desengavetou o projeto que foi aprovado como uma resposta à sociedade naquela ocasião. O diferencial na Lava Jato não é o uso da técnica nem a quantidade de acordos feitos, porque a quantidade até agora é bem semelhante. A novidade é que os procuradores de Curitiba usaram a ferramenta para a recuperação de ativos, o que é muito comum nos Estados Unidos, e não vinha sendo feito antes em larga escala. O indivíduo, cercado de provas, aceita contar tudo o que sabe e devolver o dinheiro, antecipando a restituição dos valores, sem que seja necessário esperar o trânsito em julgado do processo, que nós sabemos pode ser longo e moroso.</p>
<p><strong>Como funciona na prática um processo de colaboração internacional? Quais são as autoridades envolvidas? Há interferência da diplomacia dos países?</strong></p>
<p>Há várias formas e canais de comunicação. Quando há tratados de cooperação entre os países e a intenção é apenas a troca de informações, o contato pode ser feito por meio de adidos policiais; por meio dos chamados procuradores ou magistrados de ligação, liasons prosecutors, que são designados com essa função de fazer a ponte entre os dois sistemas, atuando como correspondentes no outro Estado. Mas também há casos de acesso direto entre os procuradores; entre procurador e policial, procurador e juiz de instrução. Já para a transmissão de provas, é preciso recorrer aos mecanismos formais. No Brasil, os responsáveis são o Ministério da Justiça, na maioria dos tratados, e a Procuradoria Geral da República, no caso específico de Portugal e Canadá, cujos acordos preveem a conexão direta com o MPF. Posso trocar provas com esses dois países diretamente, mas quando envolve os EUA ou a França, por exemplo, é necessário acionar o MJ. O Itamaraty só atua nos casos em que não há tratado, ou quando há algum obstáculo no tratado, entre os dois países. E, claro, tudo isso sem esquecer da Interpol, que é o mecanismo mais antigo e continua muito útil.</p>
<p><strong>Há um limite no que pode ser negociado entre dois países que investigam um crime? No caso do Pizzolatto, o Brasil apresentou garantias para o cumprimento da pena dele no Brasil. Caberia, por exemplo, uma troca de provas com os EUA pela extradição do [ex­ presidente da CBF José Maria] Marin?</strong></p>
<p>O limite são as leis, a Constituição, e o tratado bilateral. Se não houver proibição em nenhum desses textos legais, a negociação se dá por critérios de proporcionalidade e reciprocidade. No caso do Pizzolatto, a reciprocidade seria extraditar um nacional brasileiro para a Itália, mas isso não é permitido pela Constituição. O que poderia ser oferecido era um compromisso de estreitamento de laços com a Itália, uma cooperação mais próxima. O Brasil aceitou, por exemplo, a visita consular de representantes do governo italiano a Pizzolatto quando ele estiver preso no Brasil. Isso não era vedado pela legislação, pelo contrário, está previsto por convenção internacional.</p>
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JOTA

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