Diego Miguita

Contexto
Embora as notícias recentes tenham, com absoluta razão, surpreendido negativamente toda a sociedade, algumas considerações feitas a respeito do atual cenário do contencioso administrativo federal contrariam dados oficiais. Ninguém discordará que todos os fatos devam ser devidamente apurados e as medidas legais cabíveis aplicadas adequadamente. Isso, contudo, não significa que a instituição deva ser extinta, como defendem alguns, ou virar mero órgão chancelador de autos de infração, conforme sustentam outros no mesmo eco dos primeiros. É fundamental uma análise ponderada sobre o atual cenário que envolve as disputas no Conselho Administrativo de Recursos - CARF, especialmente baseada em dados objetivos e concretos, deixando de lado, nesse momento, o subjetivismo de opiniões que, a despeito de plausíveis, são naturalmente fruto de convicções pessoais.
Seguramente, qualquer R$1 que se suspeite tenha sido desviado dos cofres públicos não merece o conformismo de quem quer que seja. É adequado dizer que a legítima indignação popular somente se torna possível, na grande maioria das vezes, pelo papel fundamental de informar exercido pelos mais diversos meios de comunicação, e, dentro desse contexto, a facilidade de acesso e a velocidade de circulação são características que, de um lado, prestam-se ao fortalecimento da democracia, mas, de outro, requerem muita cautela na filtração e conferência do que é veiculado.
Para não ficarmos no campo teórico - quase que filosófico - da repercussão e dos efeitos da informação no mundo contemporâneo, convido o leitor à reflexão sobre quantas vezes e de quantas pessoas ouviu comentários a respeito da Operação Zelotes; alguns mais inflamados; outros de caráter partidário; quase todos sentenciando o desvio suposto desvio de R$ 19 bilhões. Poucas horas após a primeira notícia sobre o caso reverberar na ensolarada manhã de 26 de março de 2015, o veredicto popular irrecorrível estava anunciado: o CARF deve ser imediatamente extinto!
Coincidentemente, naquela mesma manhã, estava em uma associação representativa de classe comentando o “Plano Anual da Fiscalização – 2015”, anunciado pela Receita Federal do Brasil - RFB pouco tempo antes do fatídico dia. Dados oficiais divulgados nesse documento emprestaram a lente adequada para que eu pudesse enxergar o que a tinta não havia revelado nas matérias. Pensei reservadamente: seria razoável, então, difundir a ideia de que o CARF deva ser extinto?
Sob as lentes das estatísticas oficiais sobre os julgamentos no CARF e o reforço de sua atuação.
Com base no levantamento oficial das estatísticas processuais do CARF, ouso dizer que seria, no mínimo, precipitado e incoerente bradar à exaustão essa convicção. De fato, das autuações lavradas pelo fisco em 2010 e julgadas pelo referido órgão até 31 de dezembro de 2014, 95,8% foram mantidas. Leia-se: o contribuinte apenas conseguiu êxito em menos de 5% do total dos casos definitivamente julgados.
Ainda no contexto da operação deflagrada pela Polícia Federal, a RFB divulgou que estão sob julgamento no CARF cerca de R$ 520 bilhões em créditos tributários, distribuídos em 105 mil processos. Dito de outro modo, segundo os números da Operação Zelotes, estariam sob investigação desvios na ordem de R$ 19 bilhões, relativos a 70 processos; a maioria ainda em andamento.
Traduzindo em números: a investigação recai sobre 3,65% dos valores em disputa, distribuídos em 0,067% do total de casos em andamento.
Quanto a este ponto em particular, deve ser dito que apenas pode ser desviado algo que tenha direção determinada, caminho certo. Quer se dizer com isso que, tecnicamente, somente poderia se falar em desvio se os créditos tributários tivessem sido definitivamente julgados na esfera administrativa, e - é bom que se diga - desde que não estivessem sendo discutidos na esfera judicial. Até pelo sigilo das investigações, não se sabe exatamente as matérias em disputa e nem se parcela das cobranças deveria ser juridicamente cancelada e em qual esfera a última palavra seria dada. Acertadamente, declarações têm sido prestadas no sentido de que os processos deverão ser reexaminados, mas que isso não significa, necessariamente, que serão integralmente julgados em favor da Fazenda Nacional.
Seja como for, repita-se o que foi dito: ainda que fosse R$ 1 relativo a um único processo, não amenizaria a perplexidade que as notícias causam. Não é a intenção das breves reflexões deste artigo avaliar juridicamente o que está ou estava em discussão processual. O que se pretende aqui é lançar luz sobre meros palpites, erguidos ao status de quase dogma, de que estamos diante de um tribunal a ser sumariamente aniquilado, ajustando as lentes daqueles que possam não ter conhecimento dos dados aqui mencionados.
Debates, desde que embasados tecnicamente e suportado, sempre que possível, em fatos concretos, é plenamente saudável. Pode-se defender livremente, a bem da verdade, a extinção da fase administrativa de julgamento, concentrando toda e qualquer disputa no Poder Judiciário (embora a extinção possa esbarrar em questões constitucionais de garantia ao contraditório e à ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, por exemplo).
Contudo, não me parece ser esse o melhor caminho (extinção do CARF), seja pelo já moroso e sufocado trâmite dos processos judiciais (que se pretende melhorar a partir do Novo Código de Processo Civil), seja pelo fato de que, realmente, há autuações que estão em desacordo com a legislação, e a esfera administrativa se mostra a mais apta a solucionar as controvérsias e validar ou afastar a legalidade das autuações, com especial importância ao princípio da busca da verdade material que norteia o processo administrativo. É a expressão máxima do mecanismo de controle da legalidade dos atos administrativos em matéria tributária federal.
Há inúmeros casos que demandam conhecimentos técnicos específicos e profundo entendimento da mecânica da legislação tributária, que, sabe-se, é uma das mais complexas e extensas do mundo, de modo que varas judiciais comuns encontrariam certa dificuldade de análise pormenorizada em meio a dezenas de outras matérias sob julgamento. Outros, menos complexos da perspectiva jurídica, são frutos de equívocos no cruzamento de dados; erros de cálculo ou aplicação de alíquota; preenchimento incorreto de declarações; casos para os quais a mera análise de documentos é suficiente ao reconhecimento do cancelamento do auto de infração, o que não justificaria seguir a trilha onerosa e morosa do Poder Judiciário. Não seria absurdo dizer que, para muitas empresas e por conta de descompasso no cruzamento de dados, garantir o juízo - com a presunção de que é devedora do fisco - inviabilizaria as suas operações.
Deveria, se não mais existisse a esfera administrativa de julgamento, ser questionada uma possível alteração no Código Tributário Nacional, para assegurar a suspensão da exigibilidade do crédito enquanto perdurar a discussão judicial em determinados casos. Atualmente, enquanto pendente de julgamento administrativo, a exigência fica automaticamente suspensa, independentemente de oferecimento de garantia. No Poder Judiciário, salvo no caso de depósito judicial ou medida liminar, pode ser manejada ação executiva, de tal modo que, partindo do pressuposto de que crédito lançado é crédito definitivamente constituído, o direito à ampla defesa e ao contraditório ficaria totalmente prejudicado.
E o que dizer da Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal (“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”) com eventual supressão da instância administrativa? Atualmente, as estatísticas da RFB dão conta de 3 em cada 10 autuações são acompanhadas de representação fiscal para fins penais, ou seja, a fiscalização aponta a prática, em tese, de crime contra a ordem tributária. Se lançamento efetuado passa a ser considerado, automaticamente, “lançamento definitivo”, estaria legitimada a ação penal correspondente imediatamente? Torna-se imprevisível a administração das mais variadas circunstâncias que podem decorrer dessa ponderação.
Sem dúvida alguma, inúmeros outros argumentos a favor da existência da instância administrativa de julgamento poderiam ser invocados, mas o que o momento impõe, a meu ver, não é a discussão sobre a extinção do CARF, mas sobre o fortalecimento do seu papel fundamental de defesa da legalidade da tributação.
Nesse ponto, merece destaque positivo o fato de que a própria RFB e o Ministro da Fazenda reconhecem que as investigações não colocam em dúvida a idoneidade do órgão, da maioria de seus Conselheiros e do processo administrativo fiscal federal. As investigações giram em torno de casos pontuais, como bem faz ressaltar a estatística já apresentada.
O que deve ser feito - e espera-se que um conjunto de medidas seja adotado nesse sentido – é o aumento da transparência e aperfeiçoamento das regras de julgamento; dos critérios de seleção e nomeação de Conselheiros; da avaliação permanente da atuação por meio de uma comissão interna de ética; da implantação de sistemas modernos e seguros de distribuição processual; proteção das informações sobre autos de infração e processos administrativos em geral. Enfim, tudo aquilo que reforce a instituição e retome a sua credibilidade será muito apreciado pela sociedade.
Reflexos negativos da Operação Zelotes, relação entre fisco e contribuinte e pequenas considerações sobre a legislação tributária.
É lugar-comum a crença de que a relação entre fisco e contribuinte é belicosa, como se inimigos mortais fossem. E, lamentavelmente, o dia a dia parece nos convencer a abraçar essa ideia, que tem sido reforçada nos últimos dias. Pretende-se - em muitas notícias e de maneira equivocada - atribuir ao CARF função que não lhe compete: zelar pelo interesse do fisco ou do particular, vestindo a farda do paladino da justiça parcial. É inquestionável que esse papel não lhe cabe. Em última análise, o que ambos (fisco e contribuinte) perseguem é a consagração da legalidade da tributação. Simples assim.
Para os casos em andamento, infelizmente, é provável que surjam reflexos negativos da Operação Zelotes, especialmente com relação a disputas complexas envolvendo altos valores e temas que comportam diversas interpretações. Espera-se que influências metajurídicas ou institucionais não sejam sobrepostas à busca da afirmação da legalidade, objetivo que, em quase um século desde a criação do Conselho de Contribuinte em 1924, tem sido exitosamente alcançado, história essa que não pode e, com certeza, não será manchada pelo últimos eventos. De todo modo, se o percentual de aderência do CARF às autuações beira os 96%, caminha, agora, para um patamar surpreendente de aderência integral. E isso remete a uma última, mas não menos importante, avaliação que julgo deva ser feita.
Como já foi dito, ninguém discorda que existem práticas abusivas cometidas pelos contribuintes, mas também não há dúvidas de que muitas outras decorrem de legítima interpretação da legislação tributária, muitas vezes imprecisa e até indutora de comportamento, as quais, em cerca de 30% das autuações (dados oficiais), são tratadas como fraude ou sonegação, implicando multa qualificada (150% do tributo considerado devido) e, eventualmente, repercussões penais.
É absolutamente normal que a mesma operação com os mesmos elementos fáticos e documentais seja considerada absolutamente legítima em uma turma de julgamento; em outra, sonegação fiscal das mais gritantes. E essa divergência de posições vai muito além das salas de julgamento do CARF. Existe, em grau muito maior, na doutrina nacional e estrangeira, nas práticas observadas em outros países e dentro da própria RFB entre as autoridades fiscais.
Daí surgem as seguintes questões: fosse a legislação mais clara e precisa, com instrumentos mais eficazes e eficientes de solução de dúvidas de interpretação e de maior transparência na relação entre fisco e contribuinte, não evitaria bilhões em disputa e o ambiente conflituoso que se instaura diariamente? Situação clara de discordância de interpretação da mais complexa legislação tributária do mundo pode ser colocada na mesma cesta daquela de sonegadores contumazes, de fraude grosseira e de condutas flagrantemente ilícitas?
Essa reflexão parece-me tão ou mais relevante do que as medidas de fortalecimento do CARF. O nosso espinhoso ordenamento jurídico-tributário incita a formação no imaginário popular de um maniqueísmo de fazer inveja aos mais aclamados folhetins. É alçada à condição de luta do “Bem” contra o “Mal”. E, nessa batalha diuturna, como que antecipando o golpe de misericórdia, a multa qualificada soa como presságio do último suspiro. Mais do que medida punitiva, corretiva, pedagógica, ou como queira interpretá-la, torna-se um instrumento de combate. Combate a que ou a quem? A legalidade da tributação serve a todos, indistinta e imparcialmente (assim deveria ser).
E, de fato, a legislação parece não fomentar um ambiente pacífico. Basta ver as multas aplicáveis no caso de lançamento de ofício: 75% ou 150% (desconsiderando agravamentos por embaraço à fiscalização). Se foi um descuido no recolhimento que foi declarado, 75%. Se fraudou notas e livros, omitiu receitas, não escriturou vendas, criou passivos fictícios, 150%. Se decorreu de legítima interpretação da legislação tributária, de modo a compreender os efeitos de determinada transação, cercada de elementos inerentes à contemporaneidade que a cerca, mas o fisco discordou; 150% (?). Se cometeu equívoco no preenchimento de declarações, sem prejuízo ao Erário, pode significar omitir informação ou inserir elementos inexatos, punível com multa de 150% (?). É esse o cenário atual e são questões como essas que são frequentemente submetidas ao crivo dos julgadores.
Deve ser colocado em pauta o debate sobre possíveis revisões da legislação tributária sob diversos aspectos, incluindo a simplificação e consolidação de normas esparsas e a gradação de penalidades aplicáveis. Deve haver medida, critérios, proporcionalidade, clareza. Medidas que evitem a instauração de conflitos são altamente desejáveis e, também nesse ponto, a nova equipe do Ministério da Fazenda merece elogios: recentemente, criou a consulta pública a minutas de instrução normativa e a malha fina da pessoa jurídica, com o objetivo de tornar mais transparente a relação com os contribuintes e mitigar os litígios tributários. Ainda são pequenos passos, mas caminham na direção da tão clamada segurança jurídica.
Por fim, talvez seja o momento de retomar assunto que outrora foi prontamente rechaçado pela comunidade jurídica: a regulamentação do parágrafo único do artigo 116 do CTN. A julgar pela jurisprudência instável da última década e em vista da complexidade da nova legislação da tributação corporativa introduzida pela Lei nº 12.973/14, especialmente de possíveis repercussões do IFRS não disciplinadas pela legislação, devemos nos antecipar e evitar que novos bilhões sejam alvo de disputas entre fisco e contribuintes. De uma única coisa estou convencido: devemos abandonar a cultura arraigada de combater exclusivamente as consequências para acertar, principal e substancialmente, o foco na causa.
Diego Aubin Miguita. Bacharel em Direito pela PUC/SP. MBA em Gestão Tributária, extensão em IFRS e Tributação Internacional pela FIPECAFI FEA/USP FIPECAFI-FEA/USP. Mestrando em Contabilidade pela FECAP/SP. Pós-graduando em Direito Tributário Internacional pelo IBDT. Membro do IBDT, do Grupo de Estudos sobre Direito e Contabilidade – GEDEC da FGV/SP, da Associação Brasileira de Direito Financeira – ABDF e da International Fiscal Association – IFA. Advogado em São Paulo.

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Breves reflexões sobre o CARF

Relação entre fisco e contribuinte