Corte IDH

Brasil é condenado por impunidade de assassinos de defensor de direitos humanos

Morte de Gabriel Sales Pimenta, advogado de trabalhadores rurais no Pará, está há 40 anos sem resposta judicial

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Gabriel Sales Pimenta / Crédito: Reprodução/Abrapo

O Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) por “graves falências” judiciais que resultaram na impunidade dos responsáveis pelo assassinato de Gabriel Sales Pimenta, um advogado de trabalhadores rurais assassinado a tiros em Marabá (PA), em 1982.

Em sentença publicada na última terça-feira (4/10), o tribunal considerou que, ao se omitir de cumprir sua obrigação de investigar, processar e punir os autores do crime, o Estado brasileiro violou os direitos às garantias judiciais, à proteção judicial, à verdade e à integridade pessoal, previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.

A Corte destacou que, em situações de violência contra defensores de direitos humanos, como é o caso de Sales Pimenta, os Estados têm dever reforçado de empregar a devida diligência quanto à investigação. Para aos juízes, a omissão estatal no processo em questão tem efeitos coletivos em razão do medo gerado aos outros cidadãos.

“A Corte sublinha que a violência contra pessoas defensoras de direitos humanos tem um efeito amedrontador (chilling effect), especialmente quando os delitos permanecem impunes. A esse respeito, o Tribunal reitera que as ameaças e os atentados à integridade e à vida dos defensores de direitos humanos e a impunidade dos responsáveis por estes fatos são particularmente graves porque têm um efeito não apenas individual, mas também coletivo, na medida em que a sociedade se vê impedida de conhecer a verdade sobre a situação de respeito ou de violação dos direitos das pessoas sob a jurisdição de um determinado Estado”, pontuaram os juízes na sentença.

O tribunal intercontinental ainda reiterou que, em nenhum momento dos processos judiciais, o contexto de trabalho no qual o advogado estava inserido foi levado em conta. “Caso houvesse sido considerado, eventualmente teria sido factível identificar os interesses econômicos e políticos que poderiam ter sido afetados pelo exercício do trabalho do senhor Sales Pimenta, em particular no âmbito da decisão judicial que reverteu a expulsão de 150 pessoas das terras reivindicadas por fazendeiros, decisão que tinha sido proferida em virtude de um recurso apresentado pela suposta vítima pouco tempo antes de sua morte”.

A Corte também ressaltou que Sales Pimenta não foi vítima de uma situação isolada, mas de um contexto de “impunidade estrutural” em crimes contra trabalhadores rurais e defensores de seus direitos no Pará.

“A Corte conclui que o presente caso está inserido no contexto de impunidade estrutural relacionado a ameaças, homicídios e outras violações de direitos humanos contra os trabalhadores rurais e seus defensores no Estado do Pará. Ao mesmo tempo, esta impunidade estrutural se reflete na falta de devida diligência analisada no caso em estudo. Com efeito, conforme decorre dos autos, a grave negligência dos operadores judiciais na tramitação do processo penal, que permitiu a ocorrência da prescrição, foi o fator determinante para que o caso permanecesse em uma situação de absoluta impunidade”.

Em razão das violações, a Corte ordenou as seguintes medidas de reparação ao Brasil:

  • criar um grupo de trabalho com a finalidade de identificar as causas e circunstâncias geradoras da impunidade e elaborar linhas de ação que permitam superá-las
  • publicar o resumo oficial da sentença no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado do Pará e em um jornal de grande circulação nacional, assim como a sentença, na íntegra, no site do governo federal, do Ministério Público e do Poder Judiciário do Estado do Pará;
  • realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação com os fatos do presente caso;
  • criar um espaço público de memória na cidade de Belo Horizonte, no qual seja valorizado, protegido e resguardado o ativismo das pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil, entre eles o de Gabriel Sales Pimenta;
  • criar e implementar um protocolo para a investigação dos delitos cometidos contra pessoas defensoras de direitos humanos;
  • revisar e adequar seus mecanismos existentes, em particular o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, nos âmbitos federal e estadual, para que seja previsto e regulamentado através de uma lei ordinária e tenha em consideração os riscos inerentes à atividade de defesa dos direitos humanos;
  • pagar as quantias fixadas na sentença a título de dano material (US$ 100 mil), imaterial (US$ 280 mil), custas e gastos (US$ 32.500).

Julgaram o caso os juízes Ricardo C. Pérez Manrique, presidente (Uruguai); Humberto Antonio Sierra Porto, vice-presidente (Colômbia); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Nancy López (Costa Rica), Verónica Gomez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile). O juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch não fez parte da deliberação e assinatura desta sentença porque o regulamento da Corte não permite a participação em casos do país de origem.

O caso

Gabriel Sales Pimenta defendia o direito à terra de pequenos produtores da comunidade de Pau Seco, uma área pública no estado do Pará que fica na região conhecida como Polígono dos Castanhais, a maior reserva de castanha-do-Pará do Brasil à época.

A terra – mais de um milhão de hectares – era reservada para assentar famílias de agricultores. No entanto, os madeireiros Manoel Cardoso Neto, o Nelito, e José Pereira da Nóbrega, o Marinheiro, obtiveram, em 1980, o domínio útil de imóveis na região. Começou aí um conflito fundiário.

Com um pedido feito à Vara Penal de Marabá, os madeireiros conseguiram uma liminar de reintegração de posse e expulsaram os posseiros da região. Gabriel Sales Pimenta, então, entrou com um mandado de segurança contra a decisão, sob o argumento de que os moradores não tinham sido ouvidos e, portanto, a medida era ilegal. O recurso foi aceito e os trabalhadores voltaram à área.

Poucas semanas depois, ao sair de um bar em Marabá, o advogado foi morto com três tiros nas costas, à queima-roupa. Um inquérito foi aberto no dia seguinte e deu início a uma série de omissões da Justiça brasileira, conforme alegam os familiares e também a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Conforme os autos, várias tentativas de ouvir os acusados fracassaram, porque eles não foram às audiências, principalmente alegando falta de condições financeiras. No decorrer das diligências, Marinheiro e Crescêncio Oliveira de Sousa, denunciado como autor dos disparos, também foram assassinados. Só Nelito foi condenado em júri popular, mas sumiu antes da sentença de pronúncia e só foi preso quatro anos depois, sendo solto em um mês.

O imbróglio culminou na prescrição do processo, 24 anos após o crime. Até hoje, 40 anos depois, ninguém foi punido.