28 anos sem resposta

Argentina reconhece culpa pelo maior atentado terrorista da história do país

Estado admitiu à Corte IDH que agentes estatais atuaram para impedir investigações do ataque à Amia, em 1994

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O local do atentado de 1994 contra a AMIA / Crédito: Nbelohlavek/Wikimedia Commons

A Argentina reconheceu diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que violou direitos fundamentais de vítimas do atentado contra a sede da Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em Buenos Aires, em 1994, e de familiares delas.

A explosão, por volta das 10h de 18 de julho daquele ano, no bairro Balvanera, região central da capital argentina, provocou a morte de 85 pessoas e ferimentos graves em outras 151. Das vítimas fatais, 66 estavam dentro da congregação judaica; as outras passavam pela calçada ou foram atingidas em prédios vizinhos. É o maior ataque terrorista da história do país.

Em audiência pública realizada pela Corte IDH entre a última quinta (13/10) e a sexta-feira (14/10), em Montevidéu, o Estado admitiu que agentes sob sua responsabilidade – promotores, juízes e membros do Executivo – sabiam do risco do atentado e nada fizeram para evitá-lo. Também reconheceu que, após o crime, os mesmos agentes ocultaram provas, compraram testemunhas e sumiram com documentos, o que impediu a responsabilização dos autores até hoje.

O reconhecimento de culpa foi feito publicamente por Natalia D’Alessandro, representante do Ministério da Justiça argentino, que também declarou aos juízes do tribunal intercontinental que a Argentina reconhece a violação dos direitos à vida, integridade pessoal, acesso à informação, garantias judiciais, igualdade e proteção judicial.

“Foi o pior ataque terrorista contra a sociedade argentina. Um ataque contra a comunidade judia e contra centenas de transeuntes e vizinhos que levavam sua vida cotidiana no bairro Balvanera, em Buenos Aires. O Estado não tomou as medidas adequadas de proteção, apesar da situação de risco geral em que se encontravam as comunidades de congregação da comunidade judia em Buenos Aires. O Estado tampouco protegeu as vítimas frente a circunstâncias que demonstravam um risco específico para a Amia, como as denúncias de serviços estrangeiros de inteligência sobre um possível atentado”, afirmou a representante estatal.

D’Alessandro disse que o Estado se compromete a cumprir todas as medidas de reparação que a Corte poderá ordenar em sentença, embora seja difícil esclarecer completamente o crime, 28 anos depois, visto que provas foram destruídas e muitos anos se passaram.

“O esclarecimento do atentado e de todas as dimensões do seu encobrimento enfrenta um sem-número de dificuldades, entre elas o dano provocado pelas manobras de ocultação, a sempre atrasada resposta judicial, a opaca atividade de inteligência e a falta de cooperação da República do Irã. Mas o certo é que nenhuma dessas dificuldades livram o Estado de sua responsabilidade de superá-las”, falou a representante da Argentina.

A denúncia foi levada à Corte IDH pela Associação Civil Memória Ativa, formada por familiares das vítimas, e pelo Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels). Eles reclamam que, quase três décadas após o atentado, as investigações não andaram e ninguém foi preso pelo crime.

Adriana Reisfeld, presidente da Memória Ativa, que perdeu a irmã Noemí no ataque, contou que nunca teve acesso completo às informações das investigações e que, em várias ocasiões, audiências foram desmarcadas sem justificativa. Ela disse se sentir discriminada em razão da origem judaica.

“Sempre houve um Estado ausente. Tivemos um Estado ausente por 28 anos. É muito triste. Nós vimos outros atentados no mundo, como Oklahoma, Atocha, as Torres Gêmeas e nem sei quantos outros atentados mais. Em todos, em pouco tempo se esclarecia. No entanto, no nosso caso, não tem nada, não tem nenhum preso”.

Adriana lembrou que, em 2005, a Argentina chegou a reconhecer a responsabilidade pelo atentado em um decreto com medidas que deveriam ser cumpridas para reparação das famílias. No entanto, segundo ela, nada do que foi prometido foi levado adiante. “Isso foi uma farsa do Estado argentino. Assina um decreto e não o cumpre”, reclamou.

A declarante disse que não houve investigação séria em nenhum momento desde o atentado e pediu que a apuração comece do zero. Segundo ela, provas foram destruídas por autoridades sem que ninguém fizesse nada, como descartaram materiais da cena do crime em um rio.

“Espero que a Corte sancione o Estado argentino duramente. Que exijam que o Estado argentino cumpra o que nós pedimos. Tem que existir uma investigação séria. Não é possível que as provas não sejam preservadas. Coisas terríveis se passaram: as pedras do edifício em que caiu o ataque foram jogadas no rio. Isso não tem explicação. É preciso ensinar o Estado argentino a cumprir com seu dever com as vítimas, como eu. Com os anos, aprendemos que nós também somos vítimas. Somos as vítimas da injustiça”, disse Adriana.

Diretora-executiva do Cels, a advogada Paula Litvachky, representante jurídica das vítimas no caso, também relatou desprezo pelas provas durante a audiência pública.

“Em 2015, 21 anos depois do atentado, podemos ter acesso aos escritórios dos organismos de inteligência, onde estava guardada a documentação da investigação. Estavam debaixo de 30 centímetros de água, com ratos e baratas, tudo misturado. Em 2016, um grupo de promotores resolveu revisar uma parte importante das provas – as autópsias e o material genético. Uma parte dessas evidências foi encontrada em um balde, dentro de um freezer. Eram fragmentos de corpos humanos, alguns deles sem identificação”, afirmou a advogada.

Diana Basner, viúva do arquiteto Andrés Malamud, recordou que o atentado deixou sem pai suas duas filhas, então com 2 e 5 anos. Ela afirmou que, desde então, trava uma luta “longa e infrutífera” em busca de verdade e justiça.

“Não deixamos de bater em todas as portas, de recorrer a todas as instâncias, de pedir audiências. Nunca deixamos, por um segundo, de reclamar o que sempre pensamos que o Estado deveria nos dar. É um longo caminho, infelizmente bastante infrutífero”.

Ela sustentou que a Corte IDH é a última tentativa das famílias de obter alguma reparação. ”Acredito que cumprimos nossa missão. Não há mais nada depois daqui para nós, é a última instância que temos. Tudo acaba aqui. Então lhes passo a responsabilidade de que, se há de existir verdade e justiça nesse caso, o Estado tem a obrigação de nos dar verdade e justiça. Merecemos isso. Minhas filhas merecem saber por que mataram seu pai, quem matou e como. Depois de 28 anos, o Estado não deu a elas essa resposta”.

Diana valorizou o reconhecimento da responsabilidade por parte do Estado, mas cobrou medidas concretas. “Este reconhecimento nos parece importante, assim como pareceu em 2005. É algo alentador, mas queremos que se traduza em ações concretas, que sirvam para todos – para as vítimas, os familiares e para toda a sociedade argentina. Para isso, muitas mudanças devem ser feitas”.

O caso será julgado na Corte IDH pelos magistrados Ricardo C. Pérez Manrique (do Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (da Colômbia), Nancy Hernández López (da Costa Rica), do Patricia Pérez Goldberg (do Chile), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México) e Rodrigo Mudrovitsch (do Brasil). A juíza argentina Verónica Gómez não participará do julgamento.