Corte IDH

México admite que violou direitos humanos ao prender indígenas sem provas

Como reparação, vítimas pedem o fim do ‘arraigo’, uma forma de prisão sem ordem judicial que possibilitou o erro

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Representantes do Estado do México durante audiência. Crédito: Corte IDH/Divulgação

O Estado do México admitiu à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que violou direitos humanos ao encarcerar arbitrariamente os indígenas nahuas Jorge Marcial Tzompaxtle Tecpile, Gerardo Tzompaxtle Tecpile e Gustavo Robles López, em 2006.

Eles foram presos depois de pedir ajuda a policiais para consertar o carro em que estavam, em uma rodovia próxima à cidade de Veracruz, no Golfo do México. Inicialmente, os agentes atenderam ao pedido de socorro, mas, desconfiados, logo passaram a revistar o veículo e mochilas que estavam com os indígenas.

Com o trio a polícia encontrou livros de ideias do revolucionário russo Lênin, jornais, revistas, um documento com os dizeres “morte ao imperialismo” e uma foto do guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Encerrada a inspeção, os homens acabaram presos por suspeita de ligação com o crime organizado.

A detenção foi feita a partir do instrumento jurídico conhecido no México como “arraigo”, uma prisão preventiva sem ordem judicial para investigar pessoas suspeitas de ligação com o crime organizado. Os irmãos Tzompaxtle e López foram levados a uma prisão de segurança máxima na capital, Cidade do México, onde ficaram presos por dois anos e meio.

Em audiência pública frente à Corte IDH, na quinta-feira (23/6), Jorge Tzompaxtle contou que ficou meses sem saber por que foi preso e restrito de comunicação com a família. Ele disse que, logo que foi detido, foi submetido a vários interrogatórios sem a presença de um defensor, em situações como uma ordem para tirar a roupa para que se buscasse marcas de bala em seu corpo.

“Nossa vida mudou para sempre. Passamos a viver com medo, com desprestígio da nossa família, alguns familiares começaram a se afastar”, relembrou o mexicano. Os três foram inocentados assim que foram libertados.

Como forma de reparação pela prisão ilegal, Tzompaxtle pediu aos juízes da Corte que ordenem que o México acabe com o arraigo e a prisão preventiva de ofício no país. “Mesmo que possam dizer que o arraigo é legal, eticamente isso é nefasto, é criminoso, porque se violam os direitos humanos de pessoas que estão em uma situação indefesa. Eu sei que é difícil, mas viemos pedir a vocês que digam ao Estado mexicano que acabem com essas leis”, pleiteou.

O depoente disse que o pedido de condenação internacional não é só por ele, mas por pessoas que ainda hoje são vítimas de corriqueiras violações aos direitos humanos no México.

“No nosso país, não há avanços na condição da justiça, não somente neste caso, mas em muitas outras coisas. Seguem detendo e assassinando defensores de direitos humanos, ambientalistas, muitas mulheres, jornalistas. Se não se avança na justiça, podem até dizer que somos um país democrático, mas os fatos não demonstram isso”, afirmou Tzompaxtle.

Para Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a figura do arraigo, embora presente na Constituição mexicana, não cumpre os requisitos de idoneidade, necessidade e proporcionalidade acordados na Convenção Americana. O instrumento jurídico, diz a comissão, fere direitos fundamentais como a liberdade pessoal, o princípio de presunção de inocência e devido processo legal.

Convocado como perito pela Corte IDH, Luis Raúl González Pérez, ex-presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos do México, concordou que o arraigo e a prisão preventiva de ofício partem de subjetividades e devem ser extintos por serem contrários aos artigos 7 e 8 da Convenção Americana.

“Trata-se de uma pena antecipada disfarçada de uma suposta medida cautelar. A autoridade ministerial pretende ganhar tempo para a investigação pela qual é responsável sem que exista certeza jurídica e sem contar com elementos probatórios e evidências”, assinalou o perito.

Advogado das vítimas, Carlos Karim Zazueta Vargas ressaltou que foram feitas várias discussões legislativas no México para o fim do arraigo, mas que não houve mudança prática. Para ele, a figura jurídica é um “ilícito internacional” que deve ser imediatamente revogado.

“Acreditamos que se esgotou a possibilidade de que o dever democrático e o dever das próprias autoridades mudem essa figura. Esperou-se bastante. Já são mais de 40 anos do arraigo e mais ainda da prisão preventiva oficiosa e não houve uma mudança substancial. Por isso, acreditamos que é necessário que a honorável Corte ordene a revogação dessas ilicitudes”, sugeriu o defensor.

Alejandro Celorio, representante do Estado na audiência, reconheceu que o Estado do México violou, no caso concreto, uma série de direitos fundamentais previstos na Convenção Americana. Para ele, houve uma “incorreta aplicação” do arraigo e da prisão preventiva.

O representante estatal, no entanto, disse que os instrumentos jurídicos questionados “já não são mais os mesmos” da época dos fatos, já que houve reformas no México que os tornaram mais restritos e controlados. Ele sugeriu que o arraigo e a prisão preventiva de ofício sejam mantidos no México.

“A soberania nacional do México prefere, ao menos no momento, mantê-lo como parte do seu sistema de justiça penal com a única finalidade de combater, com instrumentos jurídicos, os grupos de crime organizado que operam no nosso território”, pediu Celorio.