Corte IDH

Luta por território leva comunidade indígena da Guatemala à Corte IDH

Indígenas Q’eqchi’ alegam que país é omisso e não tem leis que reconheçam direito coletivo à terra historicamente ocupada

Corte idh
Corte Interamericana de Direitos Humanos / Crédito: Divulgação Corte IDH

Indígenas Q’eqchi’, da comunidade Agua Caliente, na Guatemala, levaram à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) um apelo para que se reconheça o direito deles à propriedade das terras que ocupam historicamente. A comunidade tem origem maia e está a cerca de 300 quilômetros da Cidade da Guatemala, a capital do país.

Uma audiência pública sobre o caso foi realizada na última quarta-feira (9/2), na sede da corte, na Costa Rica. Foram ouvidos advogados, representantes do governo da Guatemala, peritos de titulação de terras e um representante dos indígenas.

Esta foi a primeira audiência pública depois que novos juízes, entre eles o brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, foram empossados para integrar o colegiado até o ano de 2027.

Os Q’eqchi’ pedem a responsabilização internacional da Guatemala pela falta de leis que garantam a preservação do território onde eles preservam cultura, língua própria e trabalho, como o tradicional cultivo de milho.

De acordo com a comunidade, há mais de 40 anos eles tentam obter a titulação pública da terra, mas não houve sucesso em razão da falta de mecanismos legais internos e da omissão dos governos que estiveram à frente do país.

Os indígenas também pedem proteção e autonomia para decidir sobre a exploração dos recursos naturais presentes na comunidade. Eles alegam que, além da legislação falha, o Estado concedeu alvarás, licenças e concessões para a instalação de um projeto de mineração de níquel à beira da comunidade, sem o direito à consulta prévia garantido na constituição guatemalteca.

Segundo Rodrigo Tot, líder indígena e representante nomeado pela comunidade, a chegada do projeto gerou uma série de ameaças para que os povos ali presentes deixassem a região. Em outubro de 2012, conta ele, a ameaça virou prática: seu filho foi assassinado dentro de um ônibus, a caminho da Cidade da Guatemala.

“Um carro o seguiu. Chegando na capital, supostamente, para que ninguém percebesse, disseram que era um assalto. Não era um assalto, era direto para o meu filho. Ele estava com o irmão menor, que também levou um tiro. Ele [o menor] ainda tem essa bala perto do coração. Ele ainda sofre com a dor”, narrou Tot durante a audiência.

O crime foi em decorrência da luta pelo território, diz ele. “A morte do meu filho foi pela minha luta, por minhas demandas. Isso era para que eu ficasse em silêncio, mas eu sigo lutando e seguirei lutando toda a vida”.

Conforme o líder indígena, nunca houve resposta de autoridades para a morte. “Na Guatemala, quando morre um indígena, é como se morresse um cachorro, um animal que ninguém se preocupa. Desde a morte do meu filho, ninguém, nenhuma autoridade, falou sobre quem são os responsáveis”.

Tot disse aos juízes da Corte IDH que, há 20 anos, os Q’eqchi’ pagaram integralmente ao governo para obter a terra de volta, mas nunca receberam o título definitivo do governo. “Quando terminamos de pagar pela terra ao Fondo de Tierras [autarquia guatemalteca equivalente ao Incra, no Brasil], nos informaram que não nos podiam entregar o título definitivo porque os registros haviam desaparecido. Desde então, tem sido um sofrimento para a comunidade”.

Notificada do problema, a Guatemala justificou que houve uma “incongruência de documentos” e que não entregou o título porque seguiu as leis vigentes no país. Segundo um representante do governo, o país só reconhece dois tipos de personalidades jurídicas para obtenção de títulos sobre terras: pessoa física e empresas ou instituições representadas por uma pessoa física. Títulos coletivos, portanto, não estão previstos em lei. “O estado evita a desigualdade e a arbitrariedade e, por isso, define procedimentos para a disposição da propriedade ou para sua regularização”, explicou o representante.

O advogado dos Q’eqchi’, Leonardo Crippa, reiterou que não há leis na Guatemala que protejam o direito à terra dos povos indígenas – por isso é necessário que o tribunal decida a favor dos Q’eqchi’. Ele citou jurisprudência da Corte para reforçar o pedido para que o direito de propriedade coletivo ao território seja reconhecido.

“O ordenamento jurídico do Estado não reconhece o direto à propriedade coletivo dos povos indígenas sobre as terras que estão sob sua posse, mas esta Corte reconheceu a natureza coletiva deste direito desde o caso Awas Tingni, contra a Nicarágua, em 2001. Desde então, entendemos que o artigo 21 da Convenção [Americana], sobre propriedade privada, diz também sobre propriedade coletiva de povos indígenas e que essa propriedade tem como titular uma comunidade como um todo”, comentou o defensor.

No caso dos indígenas da Nicarágua, a Corte reconheceu que existe uma tradição comunitária sobre uma forma da propriedade coletiva da terra, no sentido que o pertencimento não está centrado no indivíduo, mas no grupo e na sua comunidade.

Crippa afirmou, também, que todo o processo para autorização de exploração de níquel nas terras foi irregular, já que a comunidade não foi ouvida. O governo diz que 63 pessoas foram consultadas no processo judicial de consulta à comunidade, mas, segundo o advogado, nenhuma delas representa os indígenas. “A instituição representativa da comunidade não foi parte do processo judicial”, garantiu.

Ao fim da audiência, após ouvir as partes, o presidente da corte, o uruguaio Ricardo Pérez Manrique, determinou que os representantes apresentem alegações finais escritas até 11 de março deste ano.

A expectativa é de que o resultado do julgamento saia em cerca de um ano.