Corte IDH

Família de advogado morto em disputa de terra pede condenação do Brasil por impunidade

Demora de mais de 20 anos do processo na primeira instância levou à prescrição do caso Gabriel Sales Pimenta

Gabriel Sales Pimenta
Rafael Sales Pimenta, irmão de Gabriel Sales Pimenta, fala à Corte IDH / Crédito: Reprodução

A família de Gabriel Sales Pimenta, advogado de trabalhadores rurais assassinado a tiros em Marabá (PA), em 1982, pede à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) a responsabilização do Estado brasileiro por violação dos direitos à vida, à segurança e integridade pessoal, à justiça e de associação, em virtude da impunidade dos autores do crime.

O pedido foi reforçado pelos parentes e por representantes de organizações de luta pela terra durante uma audiência pública virtual com os juízes do tribunal, realizada na terça-feira (22/3) e na quarta-feira (23/3).

Gabriel Sales Pimenta defendia o direito à terra de pequenos produtores da comunidade de Pau Seco, uma área pública no estado do Pará que fica na região conhecida como Polígono dos Castanhais, a maior reserva de castanha-do-Pará do Brasil à época.

A terra – mais de um milhão de hectares – era reservada para assentar famílias de agricultores. No entanto, os madeireiros Manoel Cardoso Neto, o Nelito, e José Pereira da Nóbrega, o Marinheiro, obtiveram, em 1980, o domínio útil de imóveis na região. Começou aí um conflito fundiário.

Com um pedido feito à Vara Penal de Marabá, os madeireiros conseguiram uma liminar de reintegração de posse e expulsaram os posseiros da região. Gabriel Sales Pimenta, então, entrou com um mandado de segurança contra a decisão, sob o argumento de que os moradores não tinham sido ouvidos e, portanto, a medida era ilegal. O recurso foi aceito e os trabalhadores voltaram à área.

Poucas semanas depois, ao sair de um bar em Marabá, o advogado foi morto com três tiros nas costas, à queima-roupa. Um inquérito foi aberto no dia seguinte e deu início a uma série de omissões da Justiça brasileira, conforme alegam os familiares e também a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O imbróglio culminou na prescrição do processo, 24 anos após o crime.

“Se formos analisar os autos, vamos verificar que tem diversos momentos, mais de dez momentos, em que o juiz demora mais de um ano para tomar qualquer atitude ou o Ministério Público demora mais de um ano. Cremos que isso seja uma conivência do nosso Judiciário com a violência, permitindo e fazendo crescer e reverberar a impunidade no campo”, relatou Rafael Sales Pimenta, irmão da vítima, aos juízes da Corte.

Conforme os autos, várias tentativas de ouvir os acusados fracassaram, porque eles não foram às audiências, principalmente alegando falta de condições financeiras. No decorrer das diligências, Marinheiro e Crescêncio Oliveira de Sousa, denunciado como autor dos disparos, também foram assassinados. Só Nelito foi condenado a júri popular, mas sumiu antes da sentença de pronúncia e só foi preso quatro anos depois, sendo solto em um mês.

Convocado como perito pela Corte Interamericana, o advogado e professor de Direito Penal Rui Carlo Dissenha detalhou as falhas processuais.

“Mais delicada se revelou a fase inicial do processo. Iniciou-se, ali, alguma resistência no cartório em cumprir as determinações judiciais para expedição de mandados de prisão ou de citação. A citação por edital do acusado, necessária porque ele estava desaparecido, levou dois anos e três meses. São várias determinações judiciais que não são cumpridas pelo escrivão na forma da lei e que, por isso, precisam ser repetidas”, narrou o perito à Corte IDH.

Segundo ele, comprovou-se posteriormente que os escrivães tinham relação direta com os acusados. “Curiosamente, em determinado momento – dia 13 de março de 1986 -, o próprio escrivão informa que se tornara sogro de um dos acusados, o Marinheiro. Outro escrivão, responsável pelo outro cartório que poderia atuar, informa que se tornara, com aquele casamento, primo do mesmo acusado”, descreveu Dissenha. “Importante reiterar que juiz ou promotor nada fizeram diante da demora ou das suspeitas que poderiam pairar sobre a atuação dos escrivães. Apenas reiteraram, mecanicamente, os pedidos não cumpridos”, complementou o advogado.

Ele também comentou sobre a incapacidade do Judiciário de levar Nelito a julgamento. “O Estado sempre teve conhecimento da especial condição deste processo, da sua obrigação de controle de prazos, atos e formalidades, já que vários órgãos trouxeram ao processo a importância da questão para a proteção de direitos humanos em vários momentos, inclusive oficialmente. Era plenamente possível ao Estado dar aplicação às determinações legais, pois havia estrutura e possibilidade, como demonstrar o fato de que afinal das contas o acusado foi localizado e preso, embora tarde demais”.

Diante da prescrição, a família afirma ter tentado recursos em todas as instâncias no Brasil, mas sem nenhum resultado positivo. “Ficamos sem nenhuma possibilidade de penalizar os assassinos ou de obter qualquer tipo de reparação”, reclama o irmão de Gabriel Sales Pimenta.

À Corte IDH a família pede que o Estado brasileiro seja condenado a reabrir o processo, que adote um protocolo nacional para investigação de crimes contra advogados e que crie núcleos especializados junto aos Ministérios Públicos. Também quer a determinação para o fortalecimento do programa de proteção a defensores de direitos humanos e uma reparação simbólica.

Rafael Pimenta pediu a condenação do Brasil “em toda a extensão que a Corte achar que é adequada, sejam reparações simbólicas, do ponto de vista de nomes de escolas, seja a reparação das medidas de não repetição, que é uma medida fantástica que a Corte Interamericana vem aprofundando e desenvolvendo. Nós temos discutido com todos os nossos parceiros no Brasil que é preciso existir uma legislação que proteja o defensor de direitos humanos vivo. O Estado tem que prover a segurança do defensor quando alegar que está sendo ameaçado de morte”.

Alegações do caso Gabriel Sales Pimenta

O advogado José Batista Afonso, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), uma das autoras do pedido à Corte IDH, pediu a condenação do Brasil não só para reparação à família da vítima, mas para que se evite crimes parecidos.

Segundo ele, de 1982 a 2020, 1.837 camponeses ou defensores do direito à terra foram assassinados no Brasil, conforme dados da própria CPT. Destes, 880 foram no estado do Pará.

“No Brasil e principalmente na região amazônica, os donos de terra não detêm apenas grande poder econômico, mas também fortes influências nos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, razão pela qual a impunidade prevalece em quase todos os casos em que fazendeiros são acusados de serem mandantes de crimes”, comentou. “A impunidade funciona como uma espécie de licença para matar. A violência tem sido usada como forma de dominação para manter a concentração de terra, a acumulação de riqueza nas mãos de poucos e a exclusão social dos camponeses”, disse o defensor.

Lucas Arnoud, advogado do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), também coautor do pedido, seguiu na mesma linha. “Como esta Corte já reconheceu, a impunidade incentiva a repetição de outro ato do mesmo tipo. E o caso de Gabriel Sales Pimenta não foi um fato isolado, mas sim parte de um contexto em que a impunidade é a regra e que não se encerrou na década de 80, permanecendo até os dias atuais”.

Por outro lado, a defensora do Estado Taiz Batista da Costa, advogada da União junto Departamento de Assuntos Internacionais da Advocacia-Geral da União (AGU), negou que o Brasil tenha violado direitos e afirmou que o Estado agiu dentro das possibilidades legais. Ela argumentou ainda que a Corte Interamericana de Direitos Humanos não tem competência temporal para julgar o caso.

“Não estão sob competência temporal do tribunal as alegadas ameaças sofridas e a morte do senhor Gabriel Salles Pimenta. Existem procedimentos internos para a apuração do evento morte que imediatamente se seguiram, iniciados ainda em 1982 e ocorridos antes da adesão do Brasil à Convenção Americana, em setembro de 1992”, alegou.

Para Costa, os atrasos no andamento processual também não são passíveis de julgamento da Corte IDH. “ Os fatos submetidos pela comissão à análise do tribunal ocorridos antes de 10 de dezembro de 1998, como os alegados atrasados na citação de um réu pelo cartório local, também estão fora da competência em relação ao tempo da Corte Interamericana. De acordo com o artigo 62 da convenção, o Estado brasileiro optou por reconhecer a competência da Corte apenas para fatos posteriores a 10 dezembro de 1998”.

Também em defesa do Brasil, Bruna Nowak, coordenadora de Contenciosos Internacionais de Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, disse que o Estado seguiu corretamente a Convenção Americana e o ordenamento interno para a prescrição. Ela fez um apelo aos juízes ao fim da exposição.

“Na remota hipótese de essa honorável Corte concluir que o Estado violou direitos humanos, requer-se que sejam levadas em consideração as alterações promovidas no processo penal brasileiro desde a época dos fatos e as políticas públicas existentes e destinadas à proteção de defensores de direitos humanos, inclusive daqueles que lutam pelas causas agrárias”, pediu a representante do governo.

Antes de encerrar a audiência, o presidente da Corte Interamericana, Ricardo César Pérez Manrique, pediu que os defensores entreguem as alegações finais por escrito até 22 de abril, com atenção especial aos fatos narrados pelo perito.

O juiz Rodrigo Mudrovitsch não participará da deliberação da sentença do caso por ter nacionalidade brasileira, conforme prevê o artigo 19 do regimento da Corte IDH.