Direitos humanos

Comunicador popular peruano denuncia discriminação por orientação sexual à Corte IDH

Dezoito anos após ter sido acusado de ‘praticar atos homossexuais’ em cafeteria, Crissthian Olivera pede justiça

coisa julgada
Juízes da Corte IDH / Crédito: Cesar Tadeu/Flickr@STJnoticias

O comunicador popular peruano Crissthian Manuel Olivera Fuentes apresentou à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), nesta quarta-feira (24/8), em Brasília, denúncia contra o Estado do Peru por violações de direitos humanos em razão de atos discriminatórios relacionados à sua orientação sexual.

Ele conta que, em 11 de agosto de 2004, tomava café afetuosamente com seu então namorado em uma cafeteria, dentro de um supermercado na capital Lima, quando ambos foram subitamente abordados por seguranças e convidados a se retirar.

Segundo o relato, os funcionários ordenaram que eles parassem com “aquelas atitudes”, porque “aquilo” não era permitido na cafeteria. Fuentes conta que eles apenas liam poemas um para o outro, sentados “muito juntos”. Nada além disso.

Os seguranças tentaram puxá-lo pelo braço, ao que ele se esquivou e seguiu sentado com o namorado, conta. Em seguida, a gerente da cafeteria interveio: eles teriam que sair porque um cliente havia prestado queixa, alegando que estava com filhos pequenos e que eles não poderiam continuar com aquelas demonstrações de afeto.

“A situação foi bastante humilhante, porque estávamos em uma situação pacífica, romântica, e passamos abruptamente para uma situação totalmente humilhante. De repente, havia quatro seguranças nos tratando como delinquentes, e não só como delinquentes, mas como doentes, como se pudéssemos contagiar alguém com nossa homossexualidade. Eu estava absolutamente convencido de que não tinha cometido nenhum crime e, por isso, busquei justiça”, afirmou o comunicador.

Fuentes então apresentou, em outubro de 2004, uma ação por discriminação sexual ao Instituto Nacional de Defesa da Competência e Proteção da Propriedade Intelectual (Indecopi), um órgão administrativo de proteção ao consumidor. Para comprovar que foi tratado com discriminação na cafeteria, ele apresentou uma reportagem, feita dias depois, na qual um repórter heterossexual repete as mesmas condutas com sua namorada em um supermercado da mesma rede sem que nada aconteça.

Em sua defesa, o responsável pelo supermercado sustentou que o casal foi repreendido porque cometia “atos de homossexualidade”. Também disse que Fuentes havia protagonizado “incidentes” em outros locais e que sua conduta feria a moral e os bons costumes coletivos.

Em agosto de 2005, a denúncia foi declarada sem efeito pelo Indecopi, sob a justificativa de que não havia provas da suposta discriminação e que o interesse da criança facultava ao supermercado permissão para solicitar que ele e o namorado parassem com as demonstrações afetivas.

Inconformado, o comunicador popular pediu a nulidade da decisão administrativa judicialmente, diante da Corte Superior de Lima, mas o pedido foi negado com a mesma justificativa do órgão administrativo: as provas eram insuficientes. A decisão foi mantida em todas as instâncias superiores do Peru.

O reclamante disse que, durante todo o processo judicial, foi ouvido por um juiz apenas uma vez. “A única vez que eu tive contato com um juiz foi uma audiência em que me senti novamente humilhado, porque ele, em plena audiência, me chamou a atenção pela minha postura corporal. Me disse que era falta de respeito. Para ele, era mais importante minha postura corporal do que o que eu tinha a dizer”.

Fuentes pediu aos juízes da Corte IDH que suas alegações não sejam silenciadas. “Meu principal pedido é que acreditem em mim. Porque, por 18 anos, minha palavra foi desvalorizada, descredibilizada. Peço, por favor, que esta Corte acredite em mim de uma vez por todas e, como consequência disso, estabeleça que o fato e o processo foram totalmente discriminatórios. Eu quero justiça e quero que isso acabe”, suplicou.

A pesquisadora Laura Clérico, professora de Direito Constitucional na Universidade de Buenos Aires e professora emérita da Universidade de Universidade de Erlangen-Nuremberg, convocada como perita para a audiência, afirmou que as decisões contrárias a Fuentes estão carregadas de tecnicismos que encobertam a discriminação.

“Neste caso, há um uso do que se chama de tecnicismo. Constantemente se fala de falta de provas suficientes e isso parece encobrir a atitude discriminatória. É como um tapete sobre tudo o que foi feito. Sempre falam de provas insuficientes, porque não se queria acreditar na vítima. O que chama a atenção é a heteronormatividade dominante na Justiça. Nunca, nas ações, se explica os argumentos materiais e processuais que serviram para declarar a inadmissibilidade das provas”, comentou.

A pesquisadora avaliou que os processos envolvendo o comunicador foram baseados em estereótipos, não em fatos.

“A denúncia tinha ideias pré-concebidas, generalizadas, de que pessoas com orientação sexual não heteronormativas são depravadas, doentes, que isso seria contagioso para as crianças. Isso passou despercebido por todas as instâncias administrativas e judiciais. No expediente judicial, aparecem citações a nudismo, sexo e coisas parecidas. Colocam no mesmo saco a simples demonstração de afeto com tudo isso. Qual é a relação?”, questionou Clérico.

Outra perita ouvida, Laura Otero Norza, especialista em Direito do Trabalho, afirmou que, em casos de discriminação em que há indícios consistentes, como é o caso em questão, é preciso inverter o ônus da prova, já que as vítimas geralmente não têm ferramentas para comprovar a violência que sofreram.

“Geralmente, o agredido não tem provas concretas. É só a sua palavra. Quem tem os elementos probatórios é a empresa, não a pessoa que foi discriminada. Daí a importância de se aplicar a inversão do ônus da prova, porque aí podemos tentar amenizar a desigualdade processual entre as partes”, defendeu a perita.

O procurador supranacional do Ministério de Justiça de Peru, Carlos Reaño Balarezo, voltou a alegar falta de provas consistentes e negou que tenha havido discriminação. Além disso, ele afirmou que se trata de um caso isolado, não uma violência sistêmica, o que retiraria a competência da Corte IDH para julgar o caso.

“Não existem provas. No processo administrativo, o senhor Olivera não apresentou justificativas probatórias para comprovar que foi alvo de discriminação. Além disso, os fatos apresentados não fazem parte da controvérsia, porque se trata de um caso particular do senhor Olivera”, afirmou o representante do Estado.

José Carlos Vargas, outro representante do Estado, reclamou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que apresentou a denúncia à Corte, tenta agir como uma “quarta instância” ao tentar revalorar provas.

“A Comissão quer agir como um tribunal. Além disso, a própria Corte não tem competência absoluta para revalorar as provas. Isso seria uma quarta instância, o que não é aceitável”, declarou o representante.

A comissária Esmeralda Arosemena de Troitiño, da CIDH, rebateu: “Avaliar se as decisões condizem com a Convenção Americana é parte das atribuições da Comissão. O Estado deve demonstrar um erro grave que tenha onerado seu direito de defesa, o que não ocorreu. Caso contrário, não há que se falar em quarta instância”.

Após as exposições, a defesa de Fuentes pediu que o Estado seja condenado por violar direitos às garantias judiciais, à vida privada, à igualdade perante à lei e à proteção judicial. Representante do comunicador, a advogada María Ysabel Cedano, solicitou que a Corte determine medidas efetivas contra a violência de gênero.

“Estamos exercendo nosso direito de reparação histórica. Não se trata de um caso isolado. Nós somos vítimas de violência estrutural e essa violência se expande a cada dia, mesmo 18 anos depois do que aconteceu com Fuentes. Não temos registros de crimes de ódio no Peru, por exemplo. Isso nos diz que não basta aprovar leis, fazer discursos bonitos ou distribuir panfletos. É preciso mudar a estrutura. Não queremos mais normas escritas em papel. O que queremos é proteção e justiça para que nos deixem viver em paz”.

O caso será julgado na Corte IDH pelos magistrados Ricardo C. Pérez Manrique (do Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (da Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (do México), Nancy Hernández López (da Costa Rica), Verónica Gómez (da Argentina), do Patricia Pérez Goldberg (do Chile) e Rodrigo Mudrovitsch (do Brasil).