Entrevista

Adilson Moreira: ‘Juízes e promotores acham que o racismo não tem relevância’

Para advogado, um dos maiores nomes do Direito Antidiscriminatório, ‘há um compromisso de brancos em não condenar pessoas brancas’

Adilson Moreira
O advogado Adilson Moreira. Crédito: Divulgação

Quando entrou na graduação de direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 1994, Adilson Moreira era o único negro entre 3 mil alunos. Seus professores eram todos brancos e de classe média alta, “pessoas para quem a discriminação sequer existe”. Decidiu pesquisar questões raciais, e ouviu mais de uma vez, inclusive dos professores e colegas mais progressistas, questionamentos como: “Há tantos problemas jurídicos que você poderia pesquisar, por que você vai pesquisar sobre racismo?”.

Duas décadas depois, ele é um dos maiores nomes do Direito Antidiscriminatório do Brasil e tem no currículo dois mestrados e dois doutorados, com passagem pelas universidades norte-americanas de Harvard e Yale, duas das mais prestigiadas do mundo. Professor de Direitos Humanos da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, também é autor de sete livros, entre eles “Racismo Recreativo” (Coleção Feminismos Plurais), de 2019, “Tratado de Direito Antidiscriminatório” (ed. Contracorrente), de 2020, e o mais recente, “Manual de Educação Jurídica Antirracista” (ed. Contracorrente), lançado em outubro deste ano em parceria com Philippe Oliveira de Almeida e Wallace Corbo.

A obra, que propõe um ensino jurídico politicamente engajado que contribua no combate ao racismo, foi motivada justamente pela experiência de Adilson na graduação: “Entrei com o objetivo de me tornar um agente de transformação social e não tive formação o suficiente para isso. Publiquei este Manual para que a experiência acadêmica e profissional de pessoas que pertencem a grupos minoritários não seja tão frustrante e solitária como foi a minha”, explica.

E critica: “Há um problema grave na educação jurídica brasileira relacionado ao fato de que as nossas faculdades ensinam as pessoas a raciocinar juridicamente, ou seja, a aplicar normas jurídicas a fatos, mas não tem nenhum tipo de reflexão a respeito do conteúdo dessas normas ou da realidade social sobre a qual essas normas incidem”.

Nesta entrevista ao JOTA, o professor demonstra como um Judiciário 82% branco e que foi ensinado a refletir sobre a realidade brasileira leva à resposta inadequada do sistema judiciário aos vários problemas que grupos minoritários enfrentam.

E comenta, ainda, um certo compromisso que faz com que juízes não condenem pessoas brancas, mecanismo que ficou evidente em pelo menos dois acontecimentos recentes: a prisão de Roberto Jefferson após ataques a tiros e granadas à Polícia Federal e a abordagem da Polícia Rodoviária Federal a caminhoneiros de extrema direita que bloquearam estradas em reação à derrota de Jair Bolsonaro (PL) para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições.

Leia os melhores trechos da entrevista:

De que forma a falta de diversidade entre advogados, promotores e juízes se manifesta na prática?

Quando estava escrevendo o livro “Racismo Recreativo”, li centenas de decisões sobre injúria racial, especialmente casos em que se manifestava por meio do humor racista, e fui surpreendido pela persistência de juízes que utilizavam o argumento da democracia racial para fundamentar suas decisões. É a estratégia que 99% das pessoas brancas acusadas de racismo adota: o argumento do amigo negro, da empregada negra – ”se eu fosse racista não teria contratado uma pessoa negra”.

O racismo é o maior problema social que nós temos, o maior impedimento ao exercício de direitos no Brasil. E a ausência desse entendimento entre juízes, promotores, defensores e advogados — profissionais que decidem a nossa vida e a vida do país — impede que pessoas negras tenham a devida resposta do Judiciário e que pessoas brancas racistas sejam responsabilizadas

Ainda hoje, a maioria dos professores são brancos — e, nas instituições mais tradicionais, a maior parte dos alunos também. Considerando este cenário, como começamos a mudar a educação jurídica nas universidades acerca de questões raciais?

Essa é a primeira questão que abordamos no livro. Estamos diante de uma mudança progressiva nas universidades que é a presença cada vez maior de alunos negros, indígenas e de brancos pobres. Então temos, de um lado, o aumento de diversidade e de multiculturalismo entre os alunos e, do outro lado, um corpo de professores que permanece largamente homogêneo, especialmente racialmente.

O multiculturalismo crescente é uma forma de conseguir pensar o direito de forma crítica, que pode operar como instrumento de transformação social, que é justamente o que a Constituição estabelece. E essas pessoas que estão chegando querem ver a realidade delas refletida em sala de aula. O problema é que, com algumas poucas exceções, professores brancos não desenvolvem pesquisas sobre direitos de grupos minoritários.

Por isso é importante que os alunos, por meio dos centros acadêmicos, pressionem as faculdades para contratar professores negros. E, ainda mais importante, para instituir linhas de pesquisa sobre Direito Antidiscriminatório, minorias, relações raciais.

Neste sentido, como foi a sua experiência na graduação?

Nos dois primeiros anos, eu era a único aluno negro da faculdade. A partir do terceiro ano, tinha um outro negro além de mim, entre 3 mil alunos. Não tive nenhum professor negro – além de brancos, eles eram advogados extremamente em sucedidos, ou desembargadores, ou seja, pessoas que pertenciam à classe alta brasileira. Então, em geral, eram pessoas que não sofriam discriminação, sequer entendiam que a discriminação existia.

Eu fui uma das primeiras pessoas a estudar Direito Antidiscriminatório, e ouvia, de professores e colegas, inclusive os mais progressistas: “Mas há tantos problemas jurídicos que você poderia pesquisar, por que vai pesquisar sobre racismo?”. Como se essa não fosse uma questão do Direito.

Entrei na graduação com o objetivo de me tornar um agente de transformação social, mas eu não tive formação o suficiente para isso. A minha experiência foi muito frustrante. Exatamente por isso, tive o propósito de escrever um livro sobre Direito Antidiscriminatório e, agora, o “Manual de Educação Jurídica Antirracista”, para que a experiência acadêmica e profissional de pessoas que pertencem a grupos minoritários não seja tão frustrante e solitária como foi a minha.

Vê avanços desde então?

Sim, especialmente no Direito Antidiscriminatório. Nunca se produziu tanto sobre esse tema no Brasil e isso é consequência de ações afirmativas. Quando pessoas negras e indígenas começaram a chegar nas universidades, começaram a desenvolver pesquisas e produzir conhecimento sobre esse tema. Hoje temos dezenas de livros relacionados ao racismo, ao Direito Antidiscriminatório e à população negra e povos indígenas. Quanto mais você tem conhecimento sobre como os mecanismos discriminatórios operam, maiores as chances de você criar meios para permitir que as pessoas possam ter o gozo de direitos.

Além disso, hoje em dia vários concursos da magistratura federal exigem Direito Antirrecriminatório; nos cursos de formação há Direitos Humanos.

A Lei de Racismo funciona? Na prática, pessoas são condenadas por racismo no Brasil?

A lei é falha. Só reconhece como racismo manifestações de discriminação direta, ou seja, um tratamento desvantajoso arbitrário e intencional de uma pessoa com base no critério de raça, proibido por lei. O problema é que pessoas negras sofrem uma pluralidade de discriminações fora deste escopo: discriminação indireta, interseccional, organizacional, micro agressões, etc.

A aplicação da lei também é falha — isso porque muitos juízes e promotores acham que o racismo não tem relevância, que crimes que afetam pessoas negras não são relevantes, não justificam a ação do Estado. Há um compromisso de pessoas brancas em não condenar pessoas brancas. Os juízes vão ativamente procurar encontrar todo tipo de argumento para não condenar pessoas brancas. Isso nos casos que realmente vão para apreciação dos juízes, não estou falando dos milhares de casos arquivados pelo MP ou pelo delegado, que nem chegam a oferecer denúncia por injúria ou racismo e tipificam como ameaça.

Muito raramente pessoas são condenadas. E, mesmo quando são, com pena de seis meses a um ano e bons antecedentes, nada acontece. O racismo, no Brasil, é um crime perfeito, basicamente.

Após a vitória do ex-presidente Lula nas últimas eleições, o nome do professor Silvio Almeida — o advogado, filósofo e seu colega de docência no Mackenzie — vem sendo ventilado como possível ministro da Justiça do próximo governo. Que recado nomear uma pessoa negra à frente da pasta passa para o país?

O presidente Lula, em seu pronunciamento após o resultado das eleições, afirmou que  o racismo é um grande problema e que precisamos lutar contra ele — eu obviamente concordo com isso. E indicar o professor Silvio Almeida, que é um pesquisador do tema e um jurista altamente qualificado, é um bom recado, um recado certo, uma indicação para a população de que ele levará a questão racial a sério. Mas espero que, mais do que indicar uma pessoa negra para o cargo, ele realmente dê os mecanismos para que o Silvio possa atuar e que ouça e apoie o que ele tem a dizer.

Recentemente, vimos no noticiário alguns exemplos práticos do que você chamou de “compromisso de não condenar pessoas brancas”: a prisão de Roberto Jefferson e a manifestação de caminhoneiros de extrema direita que bloquearam estradas em reação à derrota de Bolsonaro. Pode comentar?

Eu dedico um dos capítulos do meu livro a entender o privilégio como mecanismo de discriminação — afinal, o racismo decorre da ideia de que as pessoas brancas têm prerrogativas naturais de acessar determinados lugares, determinadas oportunidades. E o presidente Jair Bolsonaro, durante sua campanha, afirmou isso diversas vezes: “No meu governo, as minorias terão que se curvar perante às maiorias”. Isso é uma promessa de privilégios.

Esses bolsonaristas estão indignados porque o presidente que prometeu que garantiria a eles privilégios permanentes foi derrotado, mas eles pretendem preservar uma ordem social na qual têm acesso a oportunidades só por serem brancos.

E de que formas o racismo se manifestou na sua trajetória profissional?

Veja: eu sou uma pessoa altamente qualificada, tenho duas graduações, dois mestrados e dois doutorados, parte deles por Harvard, a mais prestigiada do mundo, mas participei de certos processos de seleção nos quais a pessoa que passou em primeiro tinha acabado de sair do primeiro mestrado. A instituição contratou essa pessoa, que tem uma trajetória profissional realmente sem brilho, mas eu fui contratado pelo Mackenzie. Desde então, me tornei um nome importante no debate jurídico nacional. Essa instituição perdeu muito. Economicamente, inclusive.

As pessoas ignoram um elemento muito importante: a discriminação tem um custo financeiro enorme. Para as pessoas que contratam, o importante muitas vezes é garantir o emprego para uma pessoa branca. É o caso da população negra como um todo: metade do país é excluída de oportunidade e isso tem custo humano e financeiro para a economia e para o desenvolvimento do país.