Funcionalismo

Vera Monteiro: ‘Estamos na idade da pedra em matéria de servidores públicos’

Professora da FGV Direito SP é cética sobre a atuação do Executivo e reforça peso do Congresso no debate sobre a máquina pública

Vera Monteiro, professora de Direito Administrativo da FGV Direito SP/ Crédito: Divulgação

Nos últimos anos, um número crescente de especialistas passou a se dedicar ao estudo dos temas relevantes para aperfeiçoar o serviço público. Uma abordagem que pretende estimular o debate no governo e no Congresso “sem paixões”, como defende a professora de Direito Administrativo Vera Monteiro, da FGV Direito SP. Integrante do Movimento Pessoas à Frente e vice-presidente do conselho do Instituto Republica.org, ela é a segunda convidada da série de grandes entrevistas que a newsletter Por Dentro da Máquina publicará até o final deste mês. Monteiro revela uma boa dose de ceticismo sobre a atuação do governo e alerta para a relevância da discussão de leis com impacto nacional sobre concursos, carreiras e contratação de temporários. A seguir, a íntegra da entrevista:

Por que é tão difícil obter um consenso sobre o aperfeiçoamento do serviço público?

Acho que isso está relacionado a uma disputa de poder, uma disputa de espaço, de expressão, típica de qualquer outra luta de poder dentro da sociedade. Eu ainda sinto que nós estamos no início de uma grande jornada. Estamos na idade da pedra em matéria de servidores públicos, no sentido de que todo o debate que hoje se faz não é para identificar a melhoria da qualidade das pessoas que entregam os serviços que nós queremos. É a polarização. Ou o governo tem a visão fiscalista, logo, então, precisa diminuir o número de servidores e diminuir a folha. Ou, do outro lado, tem uma visão sindicalista, que quer perpetuar direitos de certas categorias, que acabam sendo expandidas para outras tantas. Essa é a lógica.

No caso das estratégias fiscalistas, veja que, desde 1998, com a Emenda Constitucional nº 19, já se autorizava a demissão de servidores se superados os limites da Lei de Responsabilidade Fiscal com os gastos envolvendo o funcionalismo. Mas isso gerou um debate enorme no Supremo Tribunal Federal, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelos partidos de oposição. Num acórdão de mais de 500 páginas, o STF disse que precisa mudar a Constituição Federal de novo para permitir que haja redução de vencimentos, junto com redução de carga de trabalho, para viabilizar os períodos de crise fiscal. Então, tem um problema de estratégia jurídica também, que acaba levando sempre a um conflito e postergando as soluções.

Por exemplo, a estratégia da PEC 32 é jogar para a galera. A informação é de que estamos fazendo algo em prol da melhoria da qualidade do Estado, usando essa mesma estratégia, sem levar em consideração que a gente não conseguiu colocar quase nada em prática… É preciso ir além. Precisa colocar os lados para negociar mesmo. Não dá mais para se valer dessas estratégias ineficientes.

Falta uma compreensão clara da sociedade sobre o tema?

Quando se fala sobre servidores públicos, a sociedade como um todo tende a achar que esse é um assunto de menor qualidade para o cidadão. Ainda é um debate muito voltado à ideia de que nós estamos falando a respeito de uma classe que não diz respeito a nós, cidadãos como um todo. Os cidadãos ainda têm muito pouca percepção de que a lida do dia a dia dos servidores públicos interfere diretamente na sua vida. A mídia, em geral, sempre pontua o aspecto que diz respeito à existência das castas, daqueles que ganham muito… E acaba ficando um noticiário muito repetitivo. Existe um trabalho muito grande a ser feito de revelar o Estado que nós queremos. Isso envolve não só um debate sobre o nosso sistema tributário, por exemplo, mas também um debate sobre as pessoas que entregam os serviços para nós. As pessoas que estão dentro do Estado.

“O governo federal até agora não se mostrou a quem veio. O governo federal, até agora, não trouxe nenhuma discussão importante a respeito desse tema para o Congresso Nacional. E o governo precisa participar disso, evidentemente.”

Com essa polarização diante de temas prioritários, por onde é possível buscar uma efetiva melhoria da máquina pública?

No Congresso. Acho que o Congresso hoje é o ambiente em que se constroem bons diálogos sobre projetos de lei que podem gerar impactos muito positivos sobre a gestão das pessoas no serviço público. Essa conversa da PEC 32 tem um efeito muito grande de atrair para o Congresso esse debate. O papel do (Arthur) Lira é importante para fazer isso. E ele é importante, inclusive, porque o próprio governo federal até agora não mostrou a que veio.

O governo federal, até agora, não trouxe nenhuma discussão importante a respeito desse tema para o Congresso Nacional. E o governo precisa participar disso, evidentemente. O governo federal, depois de um ano, demonstrou estar muito mais sensível às pautas de remuneração dos servidores públicos, em razão, evidentemente, do apagão que a gente sofreu (no governo passado). Isso é sensível, mas também sinto que o governo federal, no ministério que está dedicado a estudar o assunto, tem muita influência de pautas corporativas e sindicais.

Eu acho que essa influência vai impedir que a gente tenha avanço na modernização de temas como a Lei Nacional dos Concursos Públicos ou a questão da Lei de Greve no Serviço Público. Esse é um tema fundamental para conter um pouquinho esse lado mais irresponsável do sindicalismo. Isso não vai ser uma pauta que virá do governo federal.

Mas é possível que o governo traga uma pauta importante, por exemplo, sobre avaliação de desempenho, que é um tema que a gente anda muito mal aparado. Meu lado muito cético com o governo federal também diz respeito ao fato de que há pouco apreço, o que é natural, a um olhar sobre os servidores públicos do ponto de vista nacional. O que as nossas pesquisas têm mostrado é que estados e municípios ficam sempre a reboque do que a União Federal faz, sem ter uma legislação que seja capaz de dar segurança jurídica para eles. E isso vale para concursos, para temporários, para avaliação de desempenho e para a questão dos supersalários.

Então, o Congresso Nacional vai ser capaz também de ter uma percepção sobre a sua importância de exercer um papel na criação de uma legislação nacional nesses variados aspectos que dizem respeito à melhoria do serviço público, das pessoas que gerem o serviço público, tendo em vista os problemas que são enfrentados pelos estados e municípios. E isso, claro, recebendo os inputs dos estados e dos municípios. Eu acho que o Congresso tem ficado cada vez mais ciente desse seu papel de legislador nacional na matéria de servidores.

“O erro é achar que existe uma solução mágica para resolver o problema da qualidade do gasto. Não é acabar com a estabilidade, não é acabar com os servidores. Essa polarização é que a gente precisa superar. E a gente tem que encontrar ambiente para esse debate.”

Mas, em 2023, o Congresso não se mexeu e nem foi pressionado a tratar do tema. Sem as induções, o parlamento consegue avançar?

Eu acho que a sociedade precisa pautar o Congresso, sim. É o caso do terceiro setor organizado, como é o Movimento Pessoas à Frente, que reúne um conjunto de pessoas diversas com o objetivo de colocar no debate público temas como a gestão de pessoas; a política de liderança; e o combate aos privilégios. O república.org, com o República em Dados, tem trabalhado também para trazer informações mais qualificadas para esse debate. O terceiro setor tem um papel importante, que não exercia anos atrás.

Estados e municípios também têm um papel. A gente começa a perceber os estados que têm tido algumas políticas relevantes na área de educação e de saúde. Então, a Profissão Docente, que é uma entidade do terceiro setor, dialogando com os estados, percebeu, por exemplo, as dificuldades envolvendo as contratações de temporário na rede de ensino. Alguns estados têm mais de 60% da rede formada exclusivamente por professores em um tempo determinado. Isso gera judicialização.

Além disso, acho que também é importante nesse papel entidades como a Fiesp. São entidades que estão preocupadas com a eficiência do Estado e também estão muito preocupadas com a pauta fiscalista. E não há a menor dúvida de que a gente precisa melhorar a qualidade do gasto. O erro nesse debate é achar que existe uma solução mágica para resolver o problema da qualidade do gasto. Não é acabar com a estabilidade, não é acabar com os servidores. Essa polarização é que a gente precisa superar. E a gente tem que encontrar ambiente para esse debate.

A academia tem um papel muito importante, com elaboração de trabalhos qualificados, dissertações. Então, depois de uma fase em que se falava muito sobre concessão e PPP, agora a gente vai começando a destinar nossas pesquisas a temas relacionados a servidores públicos. O que é uma novidade também. No passado, não tinham boas dissertações sobre o assunto. Agora a gente já começa a ter reflexões.

E a imprensa, sem dúvida nenhuma. A imprensa que melhora o debate sobre gestão de pessoas no serviço público. Para a gente sair das pautas que são sempre muito evidentes. É um trabalho amplo.

“Se a gente continuar com esse ambiente de sempre se buscar uma interpretação favorável por parte daqueles que fazem as regras a seu favor, e aí a gente vê os exemplos do próprio Judiciário, do Tribunal de Contas, que tem normatizado e garantido esses benefícios para si próprio, só tem uma solução: reduzir o orçamento.”

Com uma intensa disputa por todo tipo de benefício remuneratório, há um espaço para debater racionalização das gratificações, como se propõe o PL dos supersalários?

Eu acho que o PL dos supersalários é uma maneira muito republicana de se fazer essa discussão. Eu sou favorável ao PL dos supersalários. O governo deve apoiar o PL dos supersalários, e a gente tem que apostar que ele possa trazer um bom efeito nesse cenário dos salários que superam o teto de maneira indevida. Agora, se a gente continuar com esse ambiente de sempre se buscar uma interpretação favorável por parte daqueles que fazem as regras a seu favor, e aí a gente vê os exemplos do próprio Judiciário, do Tribunal de Contas, que tem normatizado e garantido esses benefícios para si próprio, só tem uma solução: reduzir o orçamento. É reduzir o orçamento de cada uma dessas esferas. Então, você reduz o orçamento do Judiciário. É a única maneira de se buscar racionalização e cumprimento das normas. Enquanto houver dinheiro, haverá a superação do teto.

Sobre o emaranhado de carreiras e tabelas remuneratórias na administração federal, esse debate está ficando para o longo prazo, lá para 2026. O ideal não seria avançar mais rápido nessa agenda?

Do ponto de vista ideal, sem dúvida nenhuma. Mas você já deve ter percebido que as discussões envolvendo a Lei Nacional de Concursos Públicos encontraram grande resistência por parte das carreiras federais. E essas resistências são, na minha leitura, um sintoma de que nós estamos, a partir da revisão da lógica do concurso, entrando no debate da revisão das carreiras porque o concurso é a porta de entrada. Significa sair de um modelo de escolha altamente objetiva e migrar para um modelo em que seja capaz de escolher pessoas mais vocacionadas para o serviço público, como acontece no mundo todo.

Isso por si só já mostra a enorme resistência no redesenho e na redução da quantidade das carreiras no serviço público federal. Começar isso na esfera federal é uma tarefa dificílima. Qual é o diagnóstico que a gente tem a respeito da quantidade de carreiras? Esse processo não teve base em parâmetros técnicos ao longo dos anos. E todos os estudos têm demonstrado que as áreas centrais, que são arrecadação, planejamento, orçamento, e as áreas jurídicas têm sempre os maiores salários. Essas carreiras, desagregadas, têm um incentivo para continuar desagregadas, porque elas estão sempre lutando por soluções que não chamam a atenção do todo e vão conseguindo privilégios, que uma vai puxando para a outra.

Quando a gente fala em redesenho e redução da quantidade de carreiras, essa racionalização envolve pensar essas atividades de forma transversal no Estado. Não ter uma carreira relacionada à ideia de Planejamento, ou Orçamento, vinculada a um ministério, que seja diferente da outra. Importa a unificação. E aí também importa ter um parâmetro que seja adequado e comparável entre todas carreiras. Hoje é impossível você fazer essa comparação. Você nem consegue fazer, tendo em vista os chamados penduricados.

Esse mal desenho, eu acho que ainda é muito agravado pelo fato de que cada uma das carreiras tem um metal precioso na mão. Qual é esse metal precioso? Qual é essa joia que cada carreira tem nas suas mãos? São os chamados cargos em comissão. Os cargos em comissão são definidos por carreira. E eu estou chamando esses cargos em comissão e os seus cargos em direção como uma joia porque eles permitem que haja trocas políticas. Permitem a atração de talentos que outras carreiras não permitem. Eles são disputados no Planalto, são disputados nos estados e municípios como água no deserto. Uma racionalização também importaria em se ter uma cesta de cargos em comissão e que eles fossem preenchidos a partir da lógica da área que submete um plano de trabalho, que precisa de um gerente com determinadas características que encontra nesse pool de profissionais e que tem ali cargos à sua disposição.

E eu falo isso na esfera federal, estaduais e municipais. Você tem secretarias de municípios que são 100% formados por cargos comissionados. Você não tem nenhum técnico que seja representante da força efetiva do Estado. Então, há muitas camadas de dificuldade. A literatura e os exemplos que a gente tem ao redor do mundo são no sentido de termos uma diminuição dessas carreiras específicas para uma transição para carreiras que sejam transversais. Isso é uma segunda camada dificílima. E a terceira diz respeito aos aspectos de remuneração.

Então, o que a gente percebe é que a transformação desse contexto necessariamente vai passar pela criação, primeiro, de parâmetros técnicos. Quais são esses novos parâmetros técnicos para a gente associar a complexidade das atribuições desenvolvidas e fazer um novo quadro de novas tabelas salariais que sejam uniformizadas? Talvez seja mais fácil a gente conseguir ir pela beirada. Municípios ou estados que começarem a se sensibilizar. A gente vê hoje o estado de São Paulo tentando falar numa reforma administrativa. Talvez a gente não consiga vê-la na sua plenitude.

“No fundo, esses cargos (de confiança) têm a função de servir para viabilizar a execução de políticas públicas. São cargos de confiança para que o chefe do Poder Executivo, aquele que tem uma posição de liderança, possa desenvolver programas de trabalho. Então, quais são os programas? No fundo, você tem aqui uma enorme falta de transparência com relação ao desempenho da função pública.”

A reforma do estado de São Paulo é focada nos comissionados, não é?

Exatamente. Isso envolve também a criação de uma central de gestão de pessoas. Hoje toda a parte de RH de qualquer estado, município, com algumas pouquíssimas exceções, faz pagamento de folha. É só o que faz a área de RH. A área de RH não faz alocação. No caso de cargos em comissão, você não tem as definições das atribuições do cargo. E não tem uma publicidade a respeito de quais cargos estão disponíveis, e o que se espera de quem vai preencher aquela determinada função. Então, as vagas são preenchidas, evidentemente, a partir de critérios políticos, o que não é necessariamente ruim. Mas eu não tenho nenhuma capacidade de verificação. Você tem um percentual muito grande de ocupantes de cargos em comissão em estados, municípios e na esfera federal. O que faz essa gente? Como é que eu verifico que essa gente está efetivamente desempenhando uma função em benefício do serviço público?

Eu preciso saber: aquela função serve para quê? E preciso saber qual é o perfil daquele que preenche a função. Eu não sei quem são essas pessoas. São homens? São mulheres? Qual é a escolaridade? São profissionais que têm histórico político ou não têm? Será que a gente tem apenas candidatos e ex-candidatos não reeleitos num ciclo vicioso, que vão preenchendo esses cargos de forma a manter o apadrinhamento político? No fundo, esses cargos têm a função de servir para viabilizar a execução de políticas públicas. São cargos de confiança para que o chefe do Poder Executivo, aquele que tem uma posição de liderança, possa desenvolver programas de trabalho. Então, quais são os programas? No fundo, você tem aqui uma enorme falta de transparência com relação ao desempenho da função pública.

Sem uma lei de abrangência nacional para tratar de carreiras, concurso, e avaliação de desempenho, é possível ter um serviço público mais eficiente?

Acho difícil. Os estados têm muita reticência em fazer alguma coisa que não tenha já alguma experiência federal. Acho muito difícil gerar algum tipo de movimento nessas placas tectônicas se não tivermos uma legislação nacional a respeito desses variados temas para induzir e trazer parâmetros mínimos. Isso não significa a perda de autonomia, de flexibilidade dos estados e municípios. Servidor público é matéria de estados e municípios, mas a Constituição Federal não impede que normas nacionais, ou normas editadas pelo Congresso de abrangência nacional, tragam parâmetros mínimos, estimulando as melhores práticas.

O exemplo é a lei nacional de concursos públicos. Outro é em matéria de atração, pré-seleção e gestão de cargos de confiança. Uma norma que estabeleça parâmetros de transparência na ocupação desses cargos. Nós não temos dados, nós não sabemos quantos cargos de liderança existem, não sabemos em estados e municípios quem ocupa esses cargos. Nada. Isso é um negócio maluco. E os donos desses cargos escondem isso porque usam a seu próprio favor. E isso é sempre uma moeda de troca dentro das esferas federativas. Então, em matéria de racionalização das carreiras, seria importante ter uma norma geral que induza a revisão, que estabeleça um passo a passo, prazos, que crie alguns estímulos para estados e municípios que vierem a aderir a novos parâmetros do redesenho em busca de desenhos mais eficientes.

Além de concurso público, a contratação temporária é um tema muito importante. O governo Bolsonaro começou a aumentar muito, por medida provisória, as hipóteses de contratação temporária na esfera federal. Estados e municípios começaram a fazer a mesma coisa em razão da pandemia. Isso revelou uma enorme judicialização sobre o assunto e levou a academia em geral a repensar a ideia de que o serviço público precisa ser unicamente formado por servidores públicos ocupantes de cargos por tempo indeterminado.

É natural que parcela da força de trabalho seja composta por servidores ocupantes de funções por tempo determinado, tendo em vista as demandas do serviço público. Isso significa também estimular do ponto de vista de uma lei nacional, dizendo que é normal que parte da força de trabalho seja formada por pessoas contratadas por tempo indeterminado e, outra parte, por pessoas contratadas por tempo determinado. Isso não é uma heresia. E contratado por tempo determinado não significa dizer que isso é a precarização da força de trabalho, que é sempre a acusação da contratação temporária. Então, por isso também, de novo, uma lei nacional é importante para que estados e municípios não façam essa precarização porque, de fato, eles fazem e não devem fazer.

“Acho que esse era o momento para o governo federal dar o exemplo que teria uma capacidade de estimular estados e municípios a transformarem as suas portas de entrada para o serviço público do ponto de vista de usar as melhores práticas. Um dos grandes problemas envolvendo os servidores é o fato de você fazer um concurso em 2023, e o próximo concurso ser só em 2033, daqui a 10 anos.”

Nesse contexto, teria sido importante aprovar uma lei geral de concursos antes do Concurso Nacional Unificado, inclusive para avançar no conteúdo da prova?

É uma perda de oportunidade ímpar. Cada um tem os seus tempos políticos, e eu respeito os tempos políticos de cada qual. Do ponto de vista da racionalidade, eu acho que é uma perda de oportunidade tremenda. Acho que esse era o momento para o governo federal dar o exemplo que teria uma capacidade de estimular estados e municípios a transformarem as suas portas de entrada para o serviço público do ponto de vista de usar as melhores práticas. Um dos grandes problemas envolvendo os servidores é o fato de você fazer um concurso em 2023, e o próximo concurso ser só em 2033, daqui a 10 anos.

Do ponto de vista da racionalidade, o governo também poderia estimular que estados e municípios se organizassem para que essa porta de entrada se transformasse em uma porta permanente. Por que não organizar uma central de concursos? Você vai contratar um professor hoje, daqui a 10 anos terá perdas. As pessoas saem, as pessoas pedem licença, as pessoas se aposentam… E essa renovação tem que ser permanente. E é essa permanência que faz com que você tenha um gradual avanço na qualidade dos concursos públicos.

Acho que o governo também perdeu uma ótima oportunidade de fazer um processo incremental, incluindo no concurso público provas que pudessem efetivamente revelar as capacidades sociais do candidato. O concurso unificado é importante, mas ainda deixa a desejar. Ele poderia ter implementado já com coisas bem mais eficientes.

Na sua avaliação, por que há tanta resistência ao tema da avaliação comportamental nos concursos públicos?

Eu vou atribuir isso ao desconhecimento. A gente só faz concurso público sem esse tipo de avaliação, na sua grande maioria. Quando fala em prova prática, a gente esquece que juízes têm que elaborar sentenças, que procuradores precisam elaborar pareceres. Isso é uma espécie de prova prática. Então, nada impede que outras carreiras também tenham provas práticas. Professor universitário, quando vai fazer um concurso na Universidade Federal, tem que dar uma aula. E eu acho natural que a aula possa valer mais até do que títulos.

A existência de mestrado, doutorado ou pós-doutorado não significa que o candidato seja a melhor pessoa para passar conhecimento na sala de aula. São perfis diferentes. Uma coisa é o perfil de pesquisador, outra coisa é o perfil do professor na sala de aula. Então, eu acho que existe uma camada de desconhecimento. Certas carreiras já fazem. Existe, sem dúvida, um certo preconceito e o medo. Porque, no Brasil, tudo é judicializado, e o Judiciário se seduz muito com todo tipo de argumento que diz que o gestor público tem algum tipo de liberdade para tomar decisão no caso concreto. A chamada discricionariedade. Então, quanto mais prova objetiva você tiver, prova de marcar, mais seguro é. Existe um medo legítimo do Judiciário. Por isso, a necessidade de se organizar isso de uma maneira boa antes de fazer esses concursos.

E existe, sem dúvida nenhuma, um preconceito enorme com relação à avaliação psicológica. Um preconceito que está muito relacionado ao argumento de que isso gerará necessariamente desvio de finalidade. Haverá sempre decisões que vão prestigiar um em detrimento do outro. Então, para a gente superar esse preconceito, o Movimento Pessoas à Frente fez uma boa pesquisa em Portugal. A gente descobriu que, em Portugal, os testes psicológicos são feitos por inteligência artificial. Então, não é nem um humano fazendo avaliação sobre outro humano, que é uma coisa natural em testes comportamentais.

A gente tem que confiar mais em gente. A dúvida é se haverá algum tipo de privilégio. Vamos, então, gravar aquela sessão. Agora, fazer isso quando você tem um concurso com muita gente é muito mais difícil. Então, quando você faz concursos de forma incremental, isso é muito mais fácil, você consegue dar a atenção devida para fazer com que todos façam isso nas mesmas condições. Eu não sou capaz de descrever quais são os testes, mas que a gente seja capaz de estabelecer critérios que sejam capazes de dar as mesmas oportunidades para todo mundo.

É importante pontuar também que, em matéria de concurso público, há um status quo já organizado sobre um certo modelo de concurso público. Você mudar isso também significa mudar toda uma indústria de concursos públicos. Isso precisa ser dialogado também, porque há interesses contrários com relação a isso. Não só do ponto de vista daqueles que preparam os candidatos, que vão ter que se reorganizar para preparar de maneira mais adequada, mas também com relação aos próprios candidatos. Hoje, no Brasil, há um grupo significativamente grande de pessoas que vive de prestar concurso público e sair de uma carreira e buscar outra. E esse grupo, que eu vou chamar aqui de concurseiros, também não tem interesse em que haja uma mudança das áreas. Então, também por parte deles, a gente percebe que existe, por parte deles, um ataque a qualquer tentativa de melhoria na eficiência dos concursos.

No tema da avaliação de desempenho, há propostas no Congresso que tratam do tema e vinculam falta de desempenho à demissão de servidores, o PLC 539 e a PEC 32. O governo é contra as duas e vê o assunto sob a ótica da progressão do servidor, não da punição. Na sua avaliação, em que medida que isso funciona?

Com relação à PEC 32, o único aspecto que talvez seja útil é o dispositivo que muda um inciso do artigo 169 da Constituição Federal, que permite a redução da jornada de trabalho em até 25% e fala expressamente em redução da remuneração. De resto, a PEC 32, quando fala da avaliação periódica de desempenho, do meu ponto de vista, ela não agrega. Mas existe um debate a respeito da gestão de desempenho que é estabelecer esses parâmetros na Constituição Federal e transformar numa pedra dura situações que são muito diferentes entre o União, estados e municípios.

Imaginar que estados e municípios sejam obrigados a fazer ciclos de avaliações semestrais; que todas as decisões vão sempre estar sujeitas a um revisor… O pessoal que estuda gestão de desempenho diz que isso não vai ser viável de ser feito nos 5.570 municípios. Então, o tema precisa ser pensado com cuidado. As realidades são, de fato, muito diferentes. E colocar na Constituição Federal não vai gerar efeito nenhum.

Eu acho que o governo federal deu o passo que ele conseguiu dar, que é tentar vincular avaliação de desempenho àqueles que querem permanecer no trabalho remoto (Programa de Gestão e Desempenho ou PGD). Eu não sei o quanto isso tem sido eficiente ou não, mas foi uma tentativa inteligente de começar a introduzir o tema da avaliação de desempenho. É super pontual, são algumas carreiras, mas é uma tentativa.

Agora, não há a menor dúvida que se o governo federal não quiser, ele não vai fazer avaliação de desempenho para todas as carreiras. Acho que, se o PLC 539 não for bom, o governo deveria propor um novo PLC. Vamos discutir. Acho que esse é um sinal que o governo deveria dar. Não dar esse sinal significa que o governo incorpora uma pauta corporativista que é contrária a qualquer tipo de avaliação de desempenho eficiente. A avaliação de desempenho hoje não é capaz de gerar melhoria para a qualidade do serviço público. E a avaliação de desempenho tem que servir para isso, né? Para saber sobre a satisfação do usuário. Isso tem que gerar não só a perda da progressão, mas também outras consequências, como a possibilidade do servidor ser desligado por um mau desempenho.

“Eu não acredito numa solução que seja heroica e que da noite para o dia a gente veja uma transformação radical em matéria de servidores públicos no Brasil. Insisto na tecla de que precisamos ter transparência. Precisamos ter racionalidade. Não vejo, no futuro próximo, uma mudança radical em termos de melhoria da qualidade dos servidores públicos.”

Como a senhora vê o serviço público no futuro, quem sabe daqui a 10 anos?

Um serviço público melhor porque vejo algumas iniciativas importantes que vão ter impactos pontuais. Eu não vejo, daqui a 10 anos, um novo mundo em matéria de gestão de pessoas no Brasil. Eu vejo mais pessoas trabalhando para a revisão desse ambiente. Eu vejo esse tema ganhando cada vez mais a pauta. Vejo esse tema ganhando importância. Vejo algumas iniciativas importantes do ponto de vista da inclusão, do ponto de vista da revisão de algumas carreiras, do ponto de vista da melhoria da qualidade do concurso… Pelas beiradas e pelas frestas, e aos poucos, eu acredito na capacidade dessas experiências irem tomando algum tipo de corpo.

Eu não acredito numa solução que seja heroica e que da noite para o dia a gente veja uma transformação radical em matéria de servidores públicos no Brasil. Insisto na tecla de que precisamos ter transparência. Precisamos ter racionalidade. Não vejo, no futuro próximo, uma mudança radical em termos de melhoria da qualidade dos servidores públicos. Eu não vou ver esse tempo. Acho que ainda nós vivemos o tempo das disputas de poder.