Servidor público

‘Não temos medo de um projeto de avaliação de desempenho’, diz presidente do Fonacate

Rudinei Marques defende alternativa ao plano de reorganização de carreiras e aponta falta estrutura para negociar com servidores

Rudinei Marques é presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado / Crédito: Natan Lima

Rudinei Marques integra o seleto grupo de sindicalistas que acompanha de perto as discussões do governo sobre reajuste salarial e tem o pulso sobre os debates no Congresso que podem interferir na vida dos servidores. Presidente reeleito do Fórum Nacional das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), o experiente servidor federal apontou, na última da série de três entrevistas da newsletter Por Dentro da Máquina, pelo menos dois grandes temas que podem avançar no Congresso: o PL dos supersalários e o PL dos concursos. Ele afirmou ainda que há um espaço para discutir a avaliação de desempenho no funcionalismo. Mas protestou contra o que chama de falta de planejamento do governo para negociar com as diferentes carreiras. A seguir, a entrevista completa.

No tema da reforma administrativa, o Congresso trabalha com a PEC 32. Os servidores públicos já disseram não a essa proposta. O governo afirma que tem outro plano para pôr no lugar. Na sua avaliação, qual é o caminho para aperfeiçoar a máquina?

Muita coisa já está acontecendo. Preliminarmente, gostaria de dizer que a PEC 32 promete muito e entrega pouco. Nós estivemos em todos os debates que trataram da PEC 32, e ninguém mostrou em que medida essa proposta melhora o Estado brasileiro. Por que não conseguiram mostrar? Porque é uma PEC que tem um teor muito fiscalista. Ela se propõe a reduzir o tamanho e o papel do Estado, inclusive com redução de horas da jornada de trabalho com a redução proporcional de salário. Ela fragiliza o instrumento do concurso público. Ela se propõe a entregar o público para o privado, mediante instrumentos de cooperação. Nada ali me garante que, depois da PEC ser aprovada como tal, vamos ter um Estado melhor. Ao contrário, teríamos um Estado pior.

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Hoje, a União está com 572 mil servidores. Já tivemos, lá em 1990, 650 mil. Ou seja, no período que a população cresceu mais de 40%, nós reduzimos o número de servidores da União em 78 mil. E vai reduzir mais o quê? Se reduzir jornada, o que vai ser prejudicado? É a saúde? Assistência social? É a segurança pública? São os benefícios do INSS, que, em função dessa redução de pessoal, já estão atrasados? Então, a PEC propõe e não entrega.

O Ministério da Gestão, por outro lado, diz que quer entregar outra coisa. Bom, o que ele pode entregar e o que já vem entregando? No primeiro ano, a maior entrega é o Enem dos concursos. É a primeira grande iniciativa que se faz em décadas de aprimorar a seleção e o ingresso no serviço público, dando uma cara mais parecida com a sociedade brasileira. Eu acho que o Enem dos concursos vem para aproximar mais os certames de outras regiões. Outra área que está avançando muito é o governo digital.

Eu faço parte da Câmara Técnica de Transformação do Estado, uma câmara técnica do Conselhão. Nós tivemos uma reunião importante, em 19 de dezembro, e tiramos vários encaminhamentos para a ministra Esther Dweck e o governo federal lançarem logo as alternativas à PEC 32. Não esperar muito porque, senão, o pessoal fica falando da PEC. Fica falando e, a qualquer hora, a PEC sobe para plenário. Então, o governo tem que se antecipar. Tem que dizer o que ele quer para o futuro do serviço público brasileiro.

“A gente tem uma janela pequena. Depois vem a eleição municipal, depois já vem a eleição majoritária… A gente tem uma janela pequena no primeiro semestre para aprovar no Congresso o que for necessário, e fazer as mudanças que o serviço público precisa.”

O que já está maduro para avançar?

Têm alguns projetos que já estão maduros para votação. Me parece que há um certo consenso na votação do PL dos supersalários. O PL que já começou a tramitação no Senado, em 2016, para conter os supersalários. Depois, foi aprovado também na Câmara. Por causa de uma pequena alteração, ele voltou para o Senado. Para nós, que somos dirigentes de classe no serviço público, é muito importante que esse projeto seja votado. Quando você vê, às vezes, um desembargador recebendo R$ 800 mil no mês, ou recebendo vale-alimentação retroativo há 20 anos, a sociedade não entende, e isso envergonha os próprios servidores. É constrangedor.

A grande maioria recebe salários baixos. Nós temos hoje no Brasil 11 milhões e 300 mil servidores, que na grande maioria está nos municípios, com a média salarial de R$ 4 mil. Ele fica ali amargurado, que está ralando ali, se esforçando para levar para casa R$ 4 mil, enquanto alguém extrapola a razoabilidade.

Veja que os grandes atores dessa transformação do Estado estão convergindo. O ministro Fernando Haddad reforçou, na semana passada, que esse PL precisa ser votado. A ministra Esther disse que o PL precisa ser votado. O terceiro setor está fechado também e disse que o PL tem que ser votado. E nós servidores estamos dizendo para votar o PL. Então, não falta nada, né? Vota o PL. Não vai trazer uma economia muito grande para os cofres públicos, mas é uma medida moralizadora muito importante. O percentual é pequeno, 2,3%, de servidores ganham acima do teto. Mas isso tem que ser contido.

Há uma série de outras medidas que podem ser implementadas de imediato, como a lei geral dos concursos. Com uma pequena alteração redacional, está pronta para ser votada também no Senado Federal. Há ainda medidas importantes que nós pedimos para a ministra Esther anunciar já no primeiro semestre. A gente tem uma janela pequena. Depois vem a eleição municipal, depois já vem a eleição majoritária… A gente tem uma janela pequena no primeiro semestre para aprovar no Congresso o que for necessário, e fazer as mudanças que o serviço público precisa.

É uma contradição o fato de o Congresso se apresentar como fiscalista e ter dificuldade para levar à frente o PL dos supersalários?

Sem dúvida, é uma contradição. Já era para ter sido votado. Ele está parado lá no Senado Federal há três anos, apesar desse clamor social. Hoje tem um clamor. O governo defende, o ministro da Fazenda, a ministra da Gestão, o terceiro setor… os próprios servidores. É uma imensa contradição do Congresso não querer avançar nesse ponto. É só levar a plenário e votar, se o presidente do Senado assim o quiser e quando quiser. Não tem mais empecilho nenhum para o projeto ir à votação do plenário.

O que deve ser feito para evitar que o noticiário que envolve servidor público sempre acabe chegando ao ponto das regalias, dos projetos que aumentam despesas?

Eu acho que a gente pode avançar em transparência. A sociedade precisa saber quanto é que o magistrado está recebendo, se ele está extrapolando o teto constitucional. Acho que a sociedade poderia ter algo como um observatório do Serviço Público para mapear esses pontos fora da curva. E evidenciar: ‘olha, isso aqui aconteceu por isso’. E tentar aí encaminhar medidas corretivas. Agora, como a gente está falando, muita coisa também passa pelo Congresso. O Congresso precisa fazer valer o seu poder legislador e colocar alguns limites. É claro que todo trabalhador quer maximizar os seus ganhos. Agora, a gente tem que ter limites. Esse limite está estabelecido na Constituição.

Sobre o PL dos concursos, como pode haver uma convergência no tema? Sei que há um debate de bastidores. O que está sendo negociado?

Ele é um projeto interessante. Também está pronto para votação. Hoje, a redação desse PL faz referência a uma avaliação de aspectos comportamentais. O que nós entendemos que é uma arma perigosíssima na mão de governos autoritários. Seja governos da esquerda ou de direita, o autoritarismo existe em ambos os aspectos políticos. Uma arma dessas pode facultar a contratação de pessoas alinhadas com o governante do momento. O que são os aspectos comportamentais?

Eu escrevi um artigo, que publiquei com o professor Marcelo Ferretti, da FGV, onde a gente evidencia que tem uma névoa em torno desse conceito. Então, a discussão avançou no final do ano, e eu estive acompanhando essa discussão, para que nós tentássemos uma alteração redacional. Está sem relator no Senado Federal. Mas, se a gente conseguir trocar, por exemplo, ‘aspectos comportamentais’ por ‘competências laborais’, você vai medir as competências do candidato naquela área que ele está atuando. Se houver esse consenso entre os senadores, essa mudança pode ser feita, e o projeto pode subir para a votação.

É um PL interessante e poderia ter avançado um pouco mais. Por exemplo, ele vem para parametrizar os editais e a realização dos concursos, principalmente em estados e municípios. Mas, lá pelas tantas, o projeto diz que os estados e os municípios podem fazer qualquer coisa. Isso foi para permitir que o projeto seguisse em frente. E aí ficou essa coisa meio insossa. Quer dizer: é um projeto que, se vier, vai ajudar a diminuir a judicialização. Vai dar mais transparência para os editais, estabelecer regras mais estáveis de elaboração dos certames.

Então, ele pode ser aprovado agora e, depois, numa medida provisória ou num outro PL, é possível fazer algumas alterações para aprimorar. Mas eu acho que seria um gesto de boa vontade do Congresso dar um passo. Mais um pouquinho na frente, a gente dá outro passo. E assim vamos avançando. A democracia também é um processo lento, né? Não dá para esperar que vai resolver o serviço público em um mês. O serviço público está sendo reformado de forma mais intensa no Brasil há quase cem anos. Agora, as melhorias são para aprimorar. Não para destruir, como na PEC 32.

Seguindo essa linha dos concursos, o senhor entende que o Congresso tem que estimular comandos que atendam estados e municípios na hora de legislar sobre servidor público?

E entendo que já poderia ter feito na discussão do PL dos concursos, né? Parece que foi uma leitura equivocada que o Congresso não teria poderes para expedir uma norma geral. Se um município, eventualmente, se sentir afetado, leva-se essa discussão para o STF. Eu acho que houve um um excesso de zelo da assessoria jurídica da Câmara, e acho que precisa ser superado. O Congresso teria ou não competência para expedir uma lei geral sobre a avaliação do desempenho no serviço público? Talvez a gente vá esbarrar na mesma discussão daqui a pouco quando o governo encaminhar algum projeto nesse sentido.

“O que nós pedimos, e o governo está elaborando uma proposta para encaminhar ao Congresso, é um projeto de lei que trate não só da avaliação de desempenho, mas da gestão de desempenho. Nós não temos medo de um projeto de avaliação de desempenho que sirva para exigir que cada servidor entregue, proporcionalmente, o que o Estado o recompensa.”

O que os servidores discutem com o governo sobre avaliação de desempenho?

Nós conversamos bastante sobre aproveitar as experiências do Programa de Gestão de Desempenho (PGD). Você sabe que alguns órgãos já tinham implantado programa de gestão para o desempenho, mesmo antes da pandemia, como o caso da Receita Federal, da Advocacia Pública, da Controladoria Geral da União. Quando veio a pandemia, houve um aperfeiçoamento desse programa. Então, hoje a gente já tem, em muitos órgãos, uma avaliação de desempenho do servidor. O servidor tem que pactuar as metas com o seu chefe. Eu vou fazer teletrabalho, mas eu vou entregar isso, isso e aquilo, em tal prazo. O que nós pedimos, e o governo está elaborando uma proposta para consolidar essas experiências, é para encaminhar ao Congresso um projeto de lei que trate não só da avaliação de desempenho, mas da gestão de desempenho, que é algo maior.

O servidor tem que ser avaliado, mas se o servidor não demonstrou um desempenho satisfatório, ele tem que ser treinado. Ele tem que ser capacitado. A gente sabe que tem muitas áreas novas que exigem uma preparação… Por exemplo, para operar inteligência artificial. Você tem toda a gama de serviços digitais que vai exigir uma reprogramação das competências na área do setor público. Queremos um projeto novo porque os que estão tramitando no Congresso são muito ruins. Eles simplesmente não se prestam a essa função. E, junto com a avaliação de desempenho, a gente tem um programa maior de gestão de desempenho, de treinamento e capacitação. E eu acho que isso está maduro. E eu vejo mais uma convergência entre o terceiro setor, o governo e os próprios servidores.

Nós, como representantes dos servidores, não temos medo de um projeto de avaliação de desempenho que sirva para exigir que cada servidor entregue proporcionalmente ao que o Estado o recompensa. Não tem problema. Se ele está no serviço público, ele tem que entregar. Se não estiver entregando, o lugar dele não é no serviço público. Então, acho que tem uma convergência para avançar no projeto de gestão de avaliação de desempenho.

Há outras questões, como as contratações temporárias. Nos municípios, sobretudo, é preciso de uma regulamentação maior. Eu acho que tem um consenso. A PEC 32 tentou entrar um pouco nisso, mas, primeiro, não precisa de uma PEC. Tem que ser algo mais responsivo às necessidades locais. Um projeto bem elaborado que garanta direitos a esses servidores que vêm temporariamente, que garanta uma cobertura previdenciária. Você tem que pensar que esse servidor, ainda que temporário, vai se aposentar lá na frente. Então, a gente não tem no Brasil ainda uma cultura previdenciária e isso precisa se formar. O Estado tem que dar o exemplo.

Como o senhor vê a possibilidade de um projeto que trate da avaliação visando potencialmente a demissão do servidor? Parece que esse é o grande impasse a respeito desse tema…

A gente tá aberto a discutir esse tema. Não é um tabu. Em primeiro lugar, a gente considera a estabilidade como uma proteção ao Estado. No caso das vacinas, na pandemia, precisou ter um servidor com garantias constitucionais pra fazer as denúncias necessárias, né? No caso do Ricardo Galvão, no INPE, ele só não perdeu o emprego porque é um servidor estável. Um servidor da Receita que tem que tomar uma medida dura contra uma autoridade pública… Isso tudo só é possível porque há estabilidade, né? No momento que o trabalhador sentir que não tem uma garantia do Estado com exercício pleno das suas atribuições, ele pode não fazer. E isso é o dia a dia do Estado. Então, é necessária uma proteção.

Agora, tirando isso, é claro que o servidor tem que, como eu disse antes, entregar proporcionalmente ao que ele recebe. É importante observar que a estabilidade já hoje não tem um caráter absoluto. Se o servidor não está realmente entregando, isso já pode ser visto ao longo do estágio probatório de três anos. Eu sei casos de servidor não estava entregando, e ele foi desligado. Ele saiu do serviço público porque não entregou. Três anos é um período suficiente pra ver se o servidor está correspondendo ou não. Se não tiver correspondendo, o lugar dele não é no serviço público. Tem que entregar para sociedade.

O servidor se confunde com o Estado, e o Estado tem que entregar. Eu acho que, conjugando gestão com avaliação de desempenho, pode ter, no limite, alguma penalidade mais gravosa, desde que seja resguardado o contraditório e a ampla defesa. Esse instrumento não pode servir a governos autoritários para perseguição de servidores. No governo Bolsonaro, os casos de assédio moral ganharam uma nova conotação: o assédio institucional. Foi uma nova figura jurídica concebida para conseguir responder aquilo que estava acontecendo. Você não tinha mais a perseguição a um servidor do Ibama, a um servidor da Funai, era uma corporação toda que era perseguida justamente por estar cumprindo as suas funções. Isso não pode acontecer em hipótese alguma. Então, tendo esse cuidado, nós podemos avançar. É um cuidado que resguarda tanto o servidor quanto o Estado.

“A crise sanitária, em 2020, talvez seja um divisor de águas em relação ao serviço público. Nunca o Estado foi tão necessário. E isso fez com que muitos países, inclusive, revissem reformas administrativas, ou reconsiderassem o papel do Estado. E o Brasil está dialogando com esses países.”

O Congresso tem a compreensão adequada sobre a importância dessa agenda?

Acho que o Congresso também não é tão avesso ao serviço público quanto pode parecer. É claro que tem um Congresso um pouco mais liberal e conservador, talvez, com interesse em uma reforma administrativa com um viés um pouco mais fiscalista, como a PEC 32. Mas eles são sensíveis e reconhecem a importância do serviço público, ainda que tenham uma perspectiva um pouco enviesada. Isso se choca com uma nova visão que o mundo está tendo em relação ao serviço público. A crise sanitária, em 2020, talvez seja um divisor de águas em relação ao serviço público. Nunca o Estado foi tão necessário. E isso fez com que muitos países, inclusive, revissem reformas administrativas, ou reconsiderassem o papel do Estado. E o Brasil está dialogando com esses países.

Nós temos um serviço público de qualidade. Você publicou recentemente uma entrevista que diz que nós temos um serviço público da idade da pedra. Não é verdade, em hipótese alguma. Nós temos 95% da ciência brasileira que é tocada pelo serviço público. Nós temos órgãos de excelência. Eu poderia dar N exemplos de que nós temos áreas de excelência no serviço público. Em matéria de digitalização, o Brasil está há anos nus na frente da Alemanha, por exemplo. É uma agressão ao serviço público brasileiro, que não deve nada para o de países desenvolvidos.

Por que é ainda mais difícil aprovar leis de abrangência nacional sobre o serviço público?

Acho que tem um pouco a ver também com a questão federativa. A autonomia dos entes federados para encaminhar esses assuntos. Na dúvida, acaba sendo decidido pelo STF. Mas veja que, em um caso desse, de gestão e avaliação do desempenho, é algo que, com um projeto bem elaborado, talvez não seja questionado por ninguém. Se ele vem realmente para melhorar, né? Se ele foi fruto de um consenso, quem é que vai embarreirar um projeto que vem para melhorar?

Sobre a reorganização de carreiras, o secretário José Celso, nesse mesmo espaço, tratou das dificuldades e das resistências para tentar racionalizar o emaranhado de cargos, salários e carreiras. Como o senhor avalia o atual sistema de carreiras?

Eu tenho uma longa vivência no serviço público. São 35 anos como servidor e esse período se confunde com a atuação no movimento sindical. E o que eu vejo? Sobre lidar com N tabelas, com tantas carreiras… Nós estamos na era da inteligência artificial. Quer dizer, se dá alguns comandos e o sistema dá conta desse gerenciamento. Não vejo tanto a diversidade de cargos, carreiras e funções e atribuições como um empecilho para o aperfeiçoamento da máquina pública. E digo mais: nós temos carreiras cujo corporativismo funciona em defesa do Estado. Então, é um corporativismo saudável. Eu trabalhei tempo na Receita Federal. Os auditores são corporativos, mas eles são corporativos na defesa da sua instituição, da justiça tributária. Praticamente todas as entidades de classe do Fisco Federal, Estadual, Municipal, estavam no Congresso debatendo uma reforma tributária mais justa, que fizesse a Justiça Fiscal. A gente vê que o pessoal é muito aguerrido.

Agora, a Receita Federal está em greve, mas é um servidor que tem altíssimas responsabilidades, que está muito sujeito ao assédio do mercado, né? Assedio da autoridades públicas, muitas vezes, como foi o caso das joias (ligadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro). É um servidor que precisa de garantias, de segurança remuneratória e legal para exercer as suas prerrogativas em plenitude. Mesma coisa com um delegado da Polícia Federal. Veja o trabalho que a PF está tendo agora na operação Lesa Pátria. Quer dizer, apurar essa rede de criminosos que tentou pôr em xeque o Estado Democrático de Direito. Olha a imensa responsabilidade nas mãos da Polícia Federal. E sem contar todas as outras, né?

Isso tudo para dizer que não é o excesso de cargos, de carreiras, que dificulta a gestão. Essas caixinhas, que muitas vezes o Ministério da Gestão vê com certo desdém, mostram que o servidor está identificado com a instituição na qual ele atua. E vai defender aquela instituição. Se a transversalidade for a regra, você não vai ter mais essa identificação. Então, quem é que vai defender os órgãos quando o governo autoritário exacerbar seus poderes? No governo Bolsonaro, se os servidores do Ibama, por exemplo, não estivessem identificados com o órgão e com as funções que eles exercem, não tivessem resistido.

Nós estamos dialogando com a MGI. A gente tem uma parceria com o secretário José Celso de longa data. Temos um bom diálogo, mas nem tudo o que eles encaminham vai ser chancelado aí pelo movimento classista dos servidores. A gente tem que continuar conversando.

“Talvez o governo possa estabelecer tetos salariais, de acordo com a complexidade, com o grau de responsabilidade, com as exigências de cada grupo de servidores. Acho que dá para fixar mínimos e máximos de acordo com a complexidade, o grau de responsabilidade, a sensibilidade daquela carreira. Dá pra fazer.”

Especialistas e gente do governo afirmam que, com as carreiras fragmentadas, cria-se um ambiente propício para uma disputa por reajustes que acabam distorcendo o processo de negociação. O que pode ser feito para evitar essas distorções?

Talvez o governo estabelecer tetos salariais, de acordo com a complexidade, com o grau de responsabilidade, com as exigências de cada grupo de servidores. Veja que o reajuste da Funai, por exemplo, foi justificado pela ministra Esther como uma isonomia em relação aos servidores do meio ambiente com atividades correlatas. Isso pode ser feito em N carreiras. Nesse sentido, acho que dá para fixar mínimos e máximos de acordo com a complexidade, o grau de responsabilidade, a sensibilidade daquela carreira. Dá pra fazer. Não é o fim do mundo. Agora, tem que haver pulso no MGI. Tem que ter alguém que resolva e empoderado para isso. Muitas vezes, o Ministério da Gestão decide algumas coisas, e ele é atropelado pela Presidência da República, pela Casa Civil, pelo Ministério da Fazenda.

Como o senhor avalia a sistemática de negociações com os servidores em uma mesa nacional geral para tratar de reajuste linear, e mesas específicas e temporárias para tratar de cada carreira? Está funcionando?

Quando o governo anunciou essa sistemática, eu achei um pouco temerário. A gente sabia que o Ministério da Gestão estava muito desguarnecido de pessoal. E, nas mesas específicas, são dezenas de carreiras. Você teria que abrir dezenas de mesas com a capacidade operacional muito pequena… Eu vi que a ministra Esther falou que a Secretaria de Gestão de Pessoas tem dez servidores, dos quais cinco vão fazer concurso e pediram licença para estudar. Ficaram cinco no meio do processo de negociação salarial. Então, cadê o planejamento? Acho que faltou planejamento. Quer dizer: você anuncia que vai abrir dezenas de mesas, mas não têm capacidade operacional para dar conta. O que está acontecendo? Acho que foi um passo mal dado aí do Ministério da Gestão.

Por outro lado, as carreiras cobram, né? Há questões específicas importantes a serem resolvidas. Talvez, o governo poderia ter se precavido e ampliado a capacidade operacional das secretarias antes de abrir as mesas, com o pessoal instruído em negociação. Isso não é algo que leva um pouco de tempo. Não se capacita rapidamente alguém para conhecer as carreiras, para negociar, para enfrentar as animosidades que são levadas para esse debate, né?

A frustração de não ser atendido pela mesa pode fazer com que o governo enfrente um processo de greve mais intenso ao longo do ano de 2024?

Veja que o governo, primeiro, usou uma estratégia para contemplar financeiramente a base de servidores que tem os menores salários. Então, o governo anunciar um reajuste de 51% no auxílio alimentação (para 2024) significa que boa parte dos servidores, talvez mais de 50%, vão ter um reajuste maior do que a inflação do período. Isso dá uma contida no ímpeto grevista e nas mobilizações.

Por outro lado, veja o que está acontecendo na mesa específica. O governo diferiu a frustração. Ele não vai frustrar todo mundo ao mesmo tempo. Hoje, tem uma dúzia de mesas instaladas. Aí, vai abrir mais 10 e mais 10… Agora, reduzindo o quadro de pessoal da Secretaria de gestão de Pessoas, vai demorar mais a abrir novas mesas, vai demorar mais a dar respostas para quem está com mesas abertas… Esse fato de ter diferido a frustração quer dizer que você sempre tem a expectativa de, lá na frente, abrir a sua mesa. Você conseguiu alguma coisa que alguém não conseguiu ainda.

O governo administrou um pouco o caos que seria dizer não para todos ao mesmo tempo. Eu não estou vendo, sendo bem franco, naqueles segmentos que mais empregam no setor público: da educação, da saúde ou da assistência social, inclusive, da polícia, que já encaminhou suas soluções, esse ímpeto para parar, como nós tivemos lá em 2012, quando o governo Dilma queria o reajuste zero e nós tivemos que mostrar que não era bem assim. Naquela ocasião, o movimento teve um custo gigantesco: perdeu o governo; perdeu a sociedade; e os próprios servidores. Greve é um perde-perde. Eu não estou vendo configurados os mesmos fatores nesse momento.

“Quando algumas dessas categorias com mais capacidade de se mobilizar resolve parar e peitar o governo, algumas outras que recebem menos podem se sentir estimuladas. Veja, por exemplo, a Receita Federal, que está no segundo mês de greve. Na medida que a Receita avança com seus pleitos e tem uma sinalização do governo, isso pode incentivar os setores de outras categorias a se mobilizar.”

E qual é o clima nas carreiras típicas de Estado, consideradas centrais e com mais força junto ao governo?

É um pessoal que está um pouco mais angustiado. Quando algumas dessas categorias com mais capacidade de se mobilizar resolve parar e peitar o governo, algumas outras que recebem menos podem se sentir estimuladas. Veja, por exemplo, a Receita Federal, que está no segundo mês de greve. Na medida que a Receita avança com seus pleitos e tem uma sinalização do governo, isso pode incentivar os setores de outras categorias a se mobilizar.

Por isso, o governo usou a estratégia de diferir a frustração. Ele vai dando espaçadamente no tempo. Talvez isso contenha uma mobilização conjunta, mas ainda assim deixa sequelas. Veja que os fiscais agropecuários não foram atendidos. Estão mobilizados, e essa insatisfação vai crescendo. Em determinado momento, pode estar em paralisação ou greve. Mesma coisa com o Banco Central, com o Tesouro Nacional e a CGU, que eu represento. Tivemos a abertura da nossa mesa específica na semana retrasada, mas sem uma data definida para devolutiva. A base fica cobrando: por que acertaram com tal carreira e nós não? Por que a carreira não é importante? Mas como é que a nossa carreira não é importante se todo o dinheiro público passa por aqui? Não tem um real da União que não passe pelo Tesouro Nacional. Se o Tesouro para, o país para também.

A gente está evitando que isso aconteça. Eu espero que o governo tenha sensibilidade para encaminhar os assuntos dessas áreas mais estratégicas. O próprio fato de o governo ter acertado no primeiro momento com a Polícia Federal mostra isso. A polícia tem um papel muito grande para resguardar a democracia, o Estado de Direito e tudo isso que foi posto em xeque nos últimos anos.

O senhor entende que o governo vai acabar criando condições para dar algum reajuste linear aos servidores ainda em 2024?

Vejo o calendário. A gente tem que estar de olho também no calendário político. O governo fez uma primeira proposta de 4,5%, em 2025, e 4,5%, em 2026. Com isso, ele quer encerrar o mandato com o mesmo percentual de reajuste dos demais poderes. Só que os demais poderes receberam em 2023, agora em fevereiro de 2024 e vão receber a última parcela em 2025. Ao passo que a União está postergando em um ano esse mesmo percentual para os servidores do Executivo, que têm as médias salariais menores. Esse foi o primeiro movimento do governo: fazer uma proposta para 2025 e 2026, no mesmo patamar que os demais poderes.

Agora, nós entendemos que teríamos espaço para o governo dar um reajuste já em 2024. Veja que o reajuste de 2023 foi concedido em maio e pagou na folha de julho. O governo poderia, se quisesse, dar um reajuste um pouco mais para frente, e o impacto esse ano não seria poria em risco as contas públicas. E é isso que nós levamos para o governo. Sugerimos 9% em 2024. Pode implementar isso mais no final do ano e diminuir o impacto em 2024.

Lá no final de maio, terá a primeira avaliação do cumprimento das metas previstas no regime fiscal sustentável. Juntando isso, com alguns outros projetos, o governo pode formar um caixa para dar algum reajuste ainda esse ano. Nós vamos brigar por isso. O auxílio-alimentação e o auxílio-creche não chegam aos inativos, nem pensionistas, que formam a grande parte dos servidores da União.

A gente precisa, na verdade, ter uma política salarial nacional, consistente, chancelada pelo governo e pelo Congresso. Uma lei de negociação coletiva, que estabeleça os prazos. Que estabeleça todo um roteiro, desde a apresentação das propostas, as devolutivas, isso conjugado com a tramitação do Orçamento. Daí, teremos um pouco mais de previsibilidade. Se não é essa loucura. Você tem que fazer greve para negociar, para se impor, e isso não é nada racional.

Então, nós pedimos já que o governo ele acelere na internalização plena da Convenção 151 da OIT, que trata a organização sindical, do direito de greve e da negociação coletiva. Tem que ter regras perenes para que gente possa se balizar e não virar essa loucura que é cada campanha salarial.

Os sindicatos esperam para quando o projeto da regulamentação da Convenção 151?

Primeiro semestre. Inclusive, nós estamos esperando que o governo, no dia 1º de maio, anuncie um pacote de medidas. O governo talvez acelere a negociação geral. Talvez ele não consiga definir ainda um percentual de recomposição ou uma resposta na linha do que as entidades esperam ainda em abril. Mas eu acho que tem a intenção de anunciar, em 1º de maio, um conjunto de medidas. Eu acho que o governo talvez aproveite esta data para anunciar esse acordo parcial com os servidores. Não dá mais pra cada governo petista a gente voltar a discutir regulamentação da 151. Chega, né?