Funcionalismo

Concurso Unificado: governo terá novo decreto e força-tarefa contra judicialização

Seminário revelou detalhes do provão e analisou caminhos para melhorar recrutamento de servidores públicos

Secretários do Ministério da Gestão e convidados internacionais participaram do seminário sobre concursos. Crédito: Washington Costa/MGI

As ações para permitir o sucesso do primeiro Concurso Nacional Unificado, em março de 2024, e as bases para mudar a face do recrutamento de servidores públicos no país foram amplamente discutidas, na última quarta-feira (29/11), no auditório do Ministério da Gestão e da Inovação (MGI), em Brasília.*

No curtíssimo prazo, a primeira missão é estruturar uma força-tarefa, liderada pela Advocacia-Geral da União, para enfrentar uma possível avalanche de questionamentos judiciais antes, durante e depois do provão, que vai recrutar 6,6 mil servidores em 21 órgãos federais.

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A AGU está especialmente preocupada com ações que contestem as regras de cotas raciais e para pessoas com deficiência que estarão presentes no edital, cuja publicação deve ocorrer até o final do ano.

O governo reconhece que a judicialização é um tema crítico do provão, que será aplicado, ao mesmo tempo, em 180 cidades com mais de 100 mil habitantes.

De acordo com o subconsultor-Geral da União de Gestão Pública, Ivan Santos Nunes, essa força-tarefa atuará na defesa do edital, das regras de aplicação da prova e, posteriormente, na etapa de convocação dos aprovados.

Outra medida anunciada no evento é a edição de um decreto que substituirá o atual regulamento de concursos públicos na administração federal, o decreto 9.739, de 2019.

O texto deve introduzir novos critérios para o preenchimento de vagas nos diferentes ministérios e autarquias, sendo que o tema mais inovador será a utilização do mecanismo de Dimensionamento da Força de Trabalho (DFT) para verificar as demandas de órgãos da administração direta e indireta.

O DFT é um modelo desenvolvido pela Universidade de Brasília (UnB) que analisa os dados de pessoal de cada órgão público; as entregas feitas por esta repartição; e a complexidade das entregas. Esse modelo permite avaliar se um determinado órgão precisa de mais gente ou pode suprir suas necessidades com movimentação de pessoal.

Na abertura do seminário, o secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardozo Jr., afirmou que o novo decreto ainda “diminui as etapas burocráticas de organização dos concursos e promove isonomia entre os órgãos da administração”.

“Se conseguirmos institucionalizar provas periódicas de caráter nacional, poderemos utilizar esse primeiro banco de candidatos para que as seleções ocorram de forma mais simplificada, rápida e efetiva”, explicou José Celso Cardozo.

O secretário afirma que o texto já incorpora aspectos do PL 2.258/2022, redigido para ser a Lei Nacional de Modernização dos Concursos Públicos. Essa proposta permitiria a aplicação de um novo modelo de avaliação de competências, habilidades e conhecimentos.

Como a newsletter Por Dentro da Máquina já mostrou, o PL dos Concursos, aprovado pela Câmara, está parado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e sofre resistência de entidades do funcionalismo, principalmente no que diz respeito aos chamados aspectos de avaliação comportamental dos candidatos.

Exemplos comprovam isolamento do Brasil

Não há boa prática no mundo que replique o atual modelo de recrutamento de servidores públicos utilizado no Brasil. Essa foi a tônica de quase seis horas de apresentações de especialistas do Brasil e do exterior, que participaram do seminário para discutir o futuro dos processos de seleção no país.

Todas as experiências indicam que, muito além da memorização de conteúdo, é urgente estruturar processos de recrutamento focados na capacidade de resolver problemas reais e no espírito público.

O subdiretor-geral de Administração de Empregos Públicos de Portugal, Bruno Miguel Santos, apresentou o modelo português, no qual o processo de seleção de pessoas é automatizado, feito com o uso de um algoritmo, e privilegia candidatos capazes de solucionar problemas.

Os candidatos são selecionados seguindo técnicas de recrutamento por perfil. Os órgãos apresentam suas demandas e, posteriormente, é feito um cruzamento entre os perfis e as necessidades de cada departamento. O candidato, que pode ser escolhido por mais de um órgão, decide a vaga que pretende ocupar.

Também foram apresentados modelos utilizados na França e na burocracia da União Europeia, que são distintos do sistema português, mas que, igualmente, procuram valorizar pessoas vocacionadas ao serviço público, com regras de mobilidade e capacitação continuada.

A professora Renata Vilhena, da Fundação Dom Cabral e presidente do Conselho de Administração do Republica.org, apresentou um estudo do Banco Mundial com referências internacionais, que revela como o Brasil fica isolado em seu modelo de seleção de funcionários públicos.

O estudo mostra que há um grupo de nações que utiliza processos de seleção com provas de conhecimento, análise de currículo, testes de avaliação de competências e entrevistas; outro, mais flexível, tem análise curricular e entrevistas, porém os recrutadores podem fazer escolhas discricionárias; e, finalmente, há o modelo brasileiro, o único que utiliza apenas a prova escrita.

“As carreiras no Brasil são muito fragmentadas. E o nosso processo de seleção está baseado nessa fragmentação de carreiras. Na comparação, percebemos que o Brasil está bastante defasado em termos do processo de seleção”, avalia Vilhena.

Alerta sobre cotas raciais

Para além dos mecanismos de recrutamento, o seminário sobre concursos serviu para alertar que a política de cotas no serviço público ainda é um grande desafio. As falhas da atual legislação, que prevê a reserva de 20% de vagas para pessoas negras, ficaram evidentes.

A secretária de Políticas de Ações Afirmativas do Ministério da Igualdade Racial, Márcia Lima, reforçou a grande preocupação em aprovar a nova lei de cotas até 9 de junho de 2024, quando a atual legislação perderá validade, para superar as “fraudes e burlas”, especialmente nas universidades.

O novo texto prevê a reserva de 30% das vagas para pessoas negras e ainda inclui cotas para quilombolas e indígenas.

Márcia Lima alertou, no entanto, que, além da articulação política para que o PL seja aprovado, é fundamental debater dentro das universidades a aplicação da lei de cotas. Ela lembrou que, em muitos casos, as burlas no sistema acabam sendo amparadas no princípio da autonomia universitária.

“A gente vai ter que combinar a dimensão legal, a dimensão da construção da lei, com a política. Jamais poderemos prescindir das nossas militâncias. Ou seja, a lei não substitui a política”, afirmou a dirigente do Ministério da Igualdade Racial.

*O JOTA acompanhou o seminário, em Brasília, a convite do Instituto Republica.org.