Fiscais do Trabalho

Chacina de Unaí: 20 anos depois, dois condenados permanecem foragidos

Apontado como o mandante do crime só foi preso no ano passado. Fiscais ainda têm desafios para garantir a própria segurança

Fiscais do trabalho foram executados em Unaí (MG) / Crédito: Arquivo Sinait

“Ele fazia todo o seu trabalho com excelência. E por isso ele se tornou um alvo e morreu”, diz Helba Soares da Silva, companheira de Nelson José da Silva, um dos auditores fiscais do trabalho assassinados em 28 de janeiro de 2004, na chacina de Unaí (MG). Desde 2009, a data se tornou o Dia Nacional do Combate ao Trabalho Escravo. E também virou o Dia Nacional do Auditor Fiscal do Trabalho, carreira responsável pela fiscalização das leis trabalhistas e das normas de segurança e saúde no trabalho.

A caminho de uma inspeção de rotina, Nelson, os colegas Eratóstenes de Almeida Gonsalves e João Batista Soares Lage, e o motorista Ailton Pereira de Oliveira foram vítimas de uma emboscada orquestrada pelos irmãos Antério e Norberto Mânica e pelos empresários Hugo Alves Pimenta e José Alberto de Castro. No mesmo ano, em outubro, Antério foi eleito prefeito de Unaí. Quatro anos mais tarde, em 2008, ele foi reeleito.

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Dois condenados, Hugo Alves Pimenta, que intermediou a contratação dos assassinos, e Norberto Mânica, fazendeiro, estão foragidos. O processo contra Antério Mânica, um dos maiores produtores de feijão do país, não avançou enquanto ele exercia o mandato de prefeito. Em 2015, junto com Norberto, foi condenado a 100 anos de prisão, por homicídio triplamente qualificado [motivo torpe, mediante pagamento de recompensa e sem possibilidade de defesa das vítimas].

No entanto, Antério teve a condenação anulada no mesmo ano, após o irmão confessar o crime e afirmar ter sido o único mandante da chacina. Em 2022, a decisão foi revertida pela Justiça Federal, que o sentenciou a 64 anos de prisão. Antério começou a cumprir a pena em setembro de 2023 em Belo Horizonte, e foi transferido para detenção em Unaí dois meses depois. Segundo Marcelo Leonardo, advogado de Antério, ele “se apresentou espontaneamente à prisão por ser inocente”.

Chacina de Unaí (MG), em 2004 resultou na morte de três auditores e do motorista / Crédito: Arquivo Sinait

José Alberto de Castro, condenado por atuar no planejamento da chacina, também só foi detido em 2023. Erinaldo de Vasconcelos Silva, julgado culpado por formação de quadrilha e quatro homicídios triplamente qualificados, está cumprindo sentença de 76 anos em regime aberto desde 2013. Já Rogério Alan Rocha Rios, condenado pelos mesmos delitos, recebeu uma pena de 94 anos, e está em regime aberto desde 2018. William Gomes de Miranda, que atuou como motorista dos criminosos, foi sentenciado a 56 anos de prisão por homicídio triplamente qualificado, e cumpre pena em regime fechado desde 2011.

“A punição dos responsáveis pela chacina é primordial. Na medida que a impunidade permanece, há a sensação de que podem continuar descumprindo a legislação e de que vai ficar por isso mesmo”, diz Rosa Jorge, diretora do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), que, há vinte anos, acompanha os desdobramentos dessa investigação.

Entre 2004 e 2023, foram registrados 29 casos de violência contra auditores fiscais do trabalho, entre assassinatos, agressões, ameaças e intimidações. A maioria foi perpetrada por empresários sob fiscalização, segundo relatório do Sinait.

Segurança insatisfatória, diz sindicato

Em novembro de 2003, o auditor Nelson José da Silva, uma das vítimas da chacina de Unaí, descreveu em relatórios uma ameaça de morte feita por Antério Mânica. Em outra ocasião, Norberto Mânica teria apontado um espeto de ferro pontiagudo, usado na lavoura de feijão, para Nelson, e dito que o instrumento era “bom para furar a barriga de um preto”, como recorda Helba, sua companheira. Assim como aconteceu em Unaí, ameaças têm precedido outros casos de violência contra os fiscais do trabalho.

As constantes intimidações também têm endereço conhecido, como é o caso da região de Barreiras (BA). Em 2013, o grupo de trabalho da cidade recebeu um telefonema anônimo informando sobre o planejamento de uma emboscada. No ano seguinte, boatos diziam que um grupo de pistoleiros estaria sendo contratado por fazendeiros. Em 2015, mais um telefonema anônimo trouxe ameaças para auditores, citando servidores nominalmente. Em 2021, um auditor foi ameaçado por um produtor rural durante uma visita a campo.

O último caso em Barreiras foi um marco para os auditores. Pela primeira vez, o Protocolo de Segurança e o Procedimento Especial de Segurança Institucional (PESI), publicados conjuntamente em 2021, entraram em prática. O PESI, elaborado com a participação de governo e servidores, estabelece medidas a serem tomadas em caso de ocorrências de perigo.

Ele prevê a tomada de providências junto aos órgãos de segurança pública e a transferência temporária dos servidores ameaçados da região conflagrada.

Apesar do avanço representado pelo PESI, “as condições de segurança ainda não são satisfatórias”, diz Rosa Jorge, do Sinait. Uma das razões é que o protocolo não foi totalmente implementado, já que o treinamento de servidores para colocá-lo em prática ainda não foi feito. Além disso, o protocolo prevê forte atuação de uma equipe de apoio enquanto os auditores estão em campo – Rosa estima que 70% da categoria trabalham in loco.

Impacto do quadro reduzido

A falta de contratação nos últimos anos, enquanto servidores mais antigos se aposentam, significou o encolhimento do quadro. Hoje, são 1.900 auditores fiscais do trabalho, enquanto um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de 2009, estimou que seriam necessários pelo menos 8 mil para atender a demanda proporcional da população ocupada. “O servidor administrativo que apoia o auditor quase não existe mais”, diz Rosa.

O Ministério do Trabalho foi questionado sobre as melhorias nos protocolos de segurança dos servidores e sobre a falta de treinamento para a implementação total do PESI. O ministério se manifestou por meio de nota.

“Denúncias de ameaças contra auditores-fiscais do Trabalho devem ser levados à chefia imediata, para os encaminhamentos necessários em cada caso. A Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE, quando toma ciência, envida todos os esforços para solucionar a questão, inclusive envolvendo, quando necessário, outras áreas do ministério, além de outras instituições como as polícias Federal e Civil, por exemplo”, afirmou o MTE.

Com extinção do Ministério do Trabalho, em 2018 (a pasta foi recriada em 2023), as dificuldades para garantir equipamentos de segurança às equipes de campo se agravaram. Nesse período, a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) esteve ligada ao Ministério da Economia. Rebaixado de status, o órgão tornou-se uma subsecretaria, e teve extinta a sua unidade de compra, passando a ter que requisitar a aquisição de equipamentos de segurança, como coletes balísticos. Essa mudança, sustenta o Sinait, tornou o processo mais demorado, com reflexos até hoje.

Além disso, o orçamento destinado à fiscalização do trabalho, que chegou a R$ 51,2 milhões, em 2015, despencou para R$ 30,4 milhões, em 2022.

Em 2023, os auditores flagraram 3.151 trabalhadores em condições análogas à escravidão, o maior número desde 2009. Minas Gerais foi o segundo estado com maior número de resgatados, atrás apenas de Goiás.

Os auditores do trabalho também apontam a proliferação de armas de fogo como ponto de atenção. Entre 2018 e 2022, licenças para novas armas aumentaram quase cinco vezes, com normas de flexibilização da posse e do porte. Em 2019, foi aprovada uma lei que permite aos fazendeiros andarem armados em toda a extensão de suas propriedades. Antes, isso só era legal dentro da sede.

Os servidores da atividade de fiscalização têm acompanhamento policial em algumas ocasiões, em que é verificado alto nível de violência contra os trabalhadores. Porém, afirma o sindicato dos auditores do trabalho, nem sempre há pessoal disponível ou qualificado para o trabalho de inteligência prévio, que verifica o nível de periculosidade da área em que haverá operação. Apenas o Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo é sempre escoltado por unidades policiais.

“Ainda temos que trabalhar muito para garantir que [o que aconteceu em] Unaí nunca mais se repita”, avalia Rosa Jorge, do Sinait.