
A oposição de evangélicos e católicos conservadores ao governo Lula e o uso de temas religiosos contra a esquerda cresceram nos últimos dias nas redes sociais e grupos de mensagem, em um sinal de que as dificuldades da campanha eleitoral com esse público não foram conjunturais e devem continuar ao longo do mandato do novo presidente. Trata-se de um dos elementos constituintes do tripé bolsonarista “Deus, Pátria e Família”, e um fator diariamente alimentado em cultos presenciais e online, em mensagens que viralizam nas redes e no WhatsApp. “Deus” e “família” se confundem na guerra cultural e trazem para o dia a dia o embate político, com elementos de moralidade que traçam um antagonismo claro com a visão de mundo da esquerda e, por extensão, servem de base para a rejeição à legitimidade do novo governo.
Essa tensão explodiu nas redes com o anúncio, no dia 16 de janeiro, da revogação de portarias do governo Bolsonaro que dificultavam o aborto legal e, no dia 17, com o desligamento do Brasil de um documento contra o aborto assinado por governos conservadores, o “Consenso de Genebra”, articulado em 2020 pelo governo Trump.
Os grupos foram inundados de mensagens contra as medidas, que foram classificadas por pastores como uma abertura para a legalização do aborto no Brasil. Silas Malafaia usou suas redes para denunciar as “atrocidades contra inocentes” e buscou deixar claro que não há espaço para apoio ao governo Lula entre os fiéis, citando que o petista, na campanha, dissera ser contra o aborto: “Eu queria ver a cara de evangélicos que votaram num cínico e cretino desses”.
Essa foi a toada de centenas de mensagens: “Você que ‘fez o L’ e apertou o 13 tem sangue nas mãos”. A própria CNBB, que desde a pandemia afastou-se mais claramente do governo Bolsonaro, reagiu contra as medidas em uma nota de reprovação a “toda e qualquer iniciativa que sinalize para a flexibilização do aborto”. Na nota, os bispos católicos dizem que as medidas precisam ser esclarecidas pelo governo federal, “considerando que a defesa do nascituro foi compromisso assumido em campanha”. A reação esperada e quase protocolar da cúpula católica foi recebida à direita com críticas de que os bispos, por terem se oposto a Bolsonaro, apoiaram Lula e seriam responsáveis pela legalização do aborto.
Esses sinais das redes estão em linha com a primeira pesquisa de opinião sobre o novo governo a captar a solidez da oposição dos evangélicos contra a esquerda e a favor de um golpe contra o resultado da eleição de 2022. A Pesquisa Atlas/Intel mostra que 67,9% dos evangélicos não acreditam que Lula obteve mais votos que o ex-presidente Jair Bolsonaro, enquanto essa crença não chega a 40% na população em geral. E 64,3% dos evangélicos disseram ser favoráveis à intervenção militar e só 29,5% se disseram contra, enquanto na população em geral 54,1% dos entrevistados são contrários a uma intervenção. Esses números foram coletados entre 8 e 9 de janeiro, em meio aos ataques aos Três Poderes e antes da divulgação das notícias que acenderam ainda mais a oposição religiosa ao novo governo.
É uma oposição que se manifesta de duas formas principais: como single-issue politics ou como diferenças de visão de mundo. A primeira é o caso do aborto: um litmus test que divide os políticos em duas categorias rígidas a partir da posição sobre um tema considerado central e inegociável. A segunda é mais ampla e de abordagem mais difícil: é a identificação da esquerda com os elementos negativos da modernidade, da dissolução dos costumes e da falta de moralidade pessoal e pública, enquanto a direita representaria a estabilidade do passado cristalizado, com cada coisa (e cada pessoa) em seu lugar. Nessa moldura mental, o cristão é representado como uma minoria sob ataque, e minorias, como os homossexuais, por exemplo, são posicionadas como rivais hegemônicos, protegidos pelo sistema (meios de comunicação, universidades, Estado, grandes empresas).
Essa mentalidade de minoria na defensiva, muito presente, por exemplo, nos Atos dos Apóstolos e nas Cartas de Paulo, é constitutiva do espírito missionário de parte do cristianismo e está no centro da reação de líderes evangélicos e católicos que são referências nas redes sociais.
Maior influencer evangélico nas redes, o pastor Cláudio Duarte tem mais de 2,6 milhões de inscritos no Youtube e dedica seus vídeos, bem humorados, a temas “não políticos” e cotidianos, como a vida do casal e a educação de filhos. É o desenho continuado de uma família de estrutura tradicional, de classe média, com a defesa de seus valores diante de um mundo que não os tem. E quando chega a hora de uma posição política, muitas vezes fora do seu canal, em entrevistas que viralizam por meses nas redes e no WhatsApp, ela é inequívoca. Bolsonaro “pode não ser um exemplo”, mas é “um cara que fala a Palavra, defende a família”.
Em uma declaração do tempo da campanha que ressurgiu nos grupos na última semana, o pastor fala cifradamente do tema que outros tratam mais abertamente: a afiliação da primeira-dama, Rosângela da Silva, a Janja, à religião afro-brasileira: “Não posso ir contra um cara pra pedir benção vai numa igreja, e o outro vai num ambiente completamente diferente”.
A associação de Janja a uma religião que é literalmente demonizada reforça nas redes a comparação dela à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que teve papel relevante no engajamento direto dos evangélicos na campanha. “Não estamos lutando contra homens e mulheres, mas contra principados e potestades. É uma guerra espiritual. (…) Aquele que tem sua fé fundamentada na Bíblia sabe que nós estamos lutando contra as hostes espirituais malignas.” É um conto perfeito de duas famílias opostas e um convite à identificação pessoal e política.
Entre os católicos mais conservadores, tem se fortalecido nas redes o padre Paulo Ricardo, que chegou a ser divulgado por Olavo de Carvalho e tem 1,5 milhão de inscritos no Youtube. Suas homilias diárias têm uma estrutura muito mais formal e de conteúdo teológico mais explícito que as de Malafaia ou Cláudio Duarte, mas o sentido político é o mesmo.
No último dia 21, ao falar sobre a vida de São Sebastião, ele criticou a reação aos ataques em Brasília e lançou as mesmas sombras sobre a afiliação espiritual do atual governo. “As pessoas que hoje estão cometendo graves injustiças, atentando contra o Estado de direito, implantando uma ditadura cruel no nosso país, essas pessoas por mais que estejam acorrentadas no profundo das trevas, por feitiçarias, magia negra, sacrifícios aos poderes das trevas, essa pessoas podem ser resgatadas por Nossa Senhora (…) se sacrifícios feitos a demônios, fazem o prodígio de amarrar o nosso país, o que não fará o sacrifício da cruz renovado no altar?”.
Esses são apenas alguns dos “popstars” digitais, em um ecossistema diverso que tem orações diárias enviadas a grupos, correntes de oração ou jejum pela volta de Bolsonaro ou pela queda do governo Lula, profecias, grupos de pastores autoproclamados, notícias sobre profecias e apocalipse e grupos e canais sedevacantistas, que rejeitam a eleição de todos os papas desde João 23 – e, claro, rejeitam a eleição de Lula.
Um aspecto instrumental da centralidade do discurso religioso e de religiosos no bolsonarismo é a proteção especial garantida na Constituição à liberdade religiosa, que serve de escudo em momentos em que o discurso na nova direita se choca com proteções a direitos de minorias. Sob o manto da doutrina, são abrigadas críticas e ataques a gays e a religiões minoritárias, no âmbito do “pecado” e não da criminalização.
A construção da imagem de que a esquerda perseguiria as igrejas (reforçada nos últimos anos pelo caso da Nicarágua) serve de alerta especial a qualquer iniciativa de crítica a religiosos, mesmo por discursos políticos ou de saúde pública. Na pandemia, quando a CPI investigava o “gabinete paralelo” de aconselhamento do presidente, seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro sugeriu que se convocasse o pastor Silas Malafaia, que pregava contra medidas de distanciamento social: “Agora, se querem ouvir alguém que dá conselho ao presidente da República, vou dar um nome: chama o pastor Silas Malafaia aqui, esse fala quase diariamente com o presidente e influencia o presidente… Quero ver se vai ter coragem”. O desafio não foi aceito, mas a tática continua a ser utilizada.
Essa aliança entre o discurso religioso e o discurso político no Brasil reproduz em parte a fusão dos interesses de grupos religiosos com o Partido Republicano nos EUA. Ambos parecem casos especiais da “religion séculière” de Raymond Aron. Há décadas em posição minoritária na academia, intelectualidade e na produção cultural, a direita adota pautas religiosas de caráter absoluto e transforma as eleições e decisões políticas em disputas plebiscitárias. Para isso, a guerra cultural deve ser permanente. E cada defesa de pautas de costumes pela esquerda (naturalmente mais fragmentada em sua ação e interesses) serve para agregar mais o campo oposto do que o seu próprio.
A religião e o bolsonarismo digital se unem na defesa de ideias e valores ligados a uma visão antimoderna e também na construção de comunidades, pertencimento e sentido em um mundo que a modernidade tornou mais complexo e mais plural do que seus seguidores gostariam. Essa rejeição dupla à modernidade toma a forma muitas vezes de uma reação contra o “sistema” e suas mensagens, tanto de valores como de notícias, dados e fatos, vistos todos com a mesma desconfiança. A reação de muitos líderes religiosos às restrições de reunião na pandemia combinou-se com o negacionismo bolsonarista sobre a Covid-19. E assim ocorre com as urnas, e kits gays e ameaças de fechamento de igrejas e da iminência da implantação do comunismo.
Nas fases iniciais do ressurgimento da direita, marcada há uma década pela proeminência digital de Olavo de Carvalho e a articulação de entidades e institutos “liberais”, houve grande divulgação do escritor inglês G.K Chesterton, cuja frase mais conhecida é uma paráfrase de seus escritos: “Quando um homem deixa de acreditar em Deus, não é que ele não acredite em nada, ele acredita em qualquer coisa”. Tendo decidido não acreditar em nada que venha do establishment, os religiosos conservadores decidiram ao mesmo tempo acreditar em qualquer coisa que recebam no celular e reforce sua oposição à esquerda no poder.