
Marcos Nobre, professor de filosofia da Unicamp e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), é também um dos mais argutos observadores do panorama político brasileiro. Com seu conceito de pemedebismo, ele dá nome e corpo ao modelo que organizou a política do país de 1994 a 2013, ora com o PSDB ora com o PT à frente de uma supermaioria no Congresso Nacional, ambos dependentes de um PMDB especializado em venda de apoio parlamentar.
A partir de junho de 2013, esse modelo entra em crise. Ao defender que “não existe uma linha reta” que vai do mês de protestos até a eleição de Jair Bolsonaro em 2018, Nobre propõe uma outra interpretação para os últimos dez anos em seu livro “Limites da democracia”, recém-publicado pela editora Todavia.
O filósofo busca desfazer amálgamas equivocados, na visão dele, entre os termos “novas direitas” e “bolsonarismo” e articula outro conceito decisivo para analisar o momento político atual: o partido digital bolsonarista — que não é um partido formalizado, mas conseguiu hackear o PSL e agora o PL, e por isso é mais perigoso.
Para Nobre, se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vencer as eleições e retomar o esgotado modelo pemedebista em um terceiro mandato, Bolsonaro voltará ao poder em 2026. “O que não significa que o MDB não possa estar no governo Lula ou que o PSD não possa estar no governo Lula. A questão é todo mundo está no governo. Você não consegue governar.”
Ver essa foto no Instagram
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
A primeira frase do livro toca em um tema realmente emblemático dos dias atuais, a mudança no uso da palavra “polarização”. O que ela costumava significar e como ela é usada de forma equivocada hoje?
De 1994 até 2013, polarização era assim: você tinha dois partidos que competiam pelo topo do poder federal, que eram PT e PSDB, e no meio tinha um mar de PMDBs, como eu chamo, partidos de tipo PMDB especializados em vender apoio parlamentar. Isso era polarização. Cada polo tinha lá os seus satélites em volta, os partidos que sempre permaneciam junto ao líder, mesmo ele perdendo, e o resto aderia a quem ganhasse. Só que polarização pressupõe o seguinte: que o outro polo é adversário, alguém que está jogando dentro das regras democráticas, que aceita perder, que não trabalha para minar as instituições democráticas.
Com a eleição de Bolsonaro, desaparece a ideia de polarização e surge um outro tipo de enfrentamento político. Você tem um presidente que é inimigo da democracia. Ele não é mais um adversário simplesmente, não está preocupado com a manutenção das regras democráticas. Pelo contrário, está preocupado em destruir as regras democráticas. Falar em polarização neste caso é realmente comparar coisas incomparáveis. Tem partidos que jogam o jogo da democracia, e o Bolsonaro joga o jogo do autoritarismo, que é outro jogo, no qual a democracia é só um instrumento, uma escada para você conseguir o seu objetivo autoritário.
Você escreve que “é ilusório continuar a entender a situação atual como se as instituições estivessem funcionando como a teoria diz que funcionam”. Há quanto tempo elas não funcionam mais?
É um processo de corrosão lento, não acontece do dia para a noite. A gente sabe que depois de junho de 2013 houve uma aceleração do processo de deterioração do funcionamento das instituições, isso aconteceu de fato. É importante dizer que quando eu falo em colapso institucional, não estou querendo dizer que a instituição parou de funcionar, só que ela está funcionando de um jeito disfuncional.
O que eu tento mostrar é que, como não aconteceu do dia para a noite, como tem uma história, essa história tem que ter algum início. Coloco o início nesse arranjo do Plano Real em 1994 que estabeleceu esse tipo de jogo político, em que você tem os dois polos e quem ganha leva tudo que está no meio. Aí chega a apoios de 70%, 75% no Congresso, e a oposição fica numa franja parlamentar. Esse esquema é autodestrutivo porque carrega nele o germe da fragmentação partidária. Você tem muito estímulo, ou tinha antes da reforma eleitoral de 2017, para criação de partido, migração para outro partido, e isso vai tornando esse tipo de arranjo cada vez mais ingovernável. Não é só um sistema fragmentado, ele tende à fragmentação. Portanto, torna cada vez mais difícil a vida de quem tem que governar, quem tem que organizar esse arquipélago de interesses de partidos na forma de um governo.
No livro você aponta a existência de um amálgama razoavelmente difundido entre os termos “novas direitas” e “bolsonarismo” e “junho de 2013 e “Bolsonaro”. Onde reside o erro desse amálgama?
O principal erro é factual. Não existe uma linha reta que vai de junho de 2013 até a eleição de Bolsonaro. Basta reconstruir a sequência de acontecimentos para ver que teve idas e vindas, continuidades e rupturas, a história não estava escrita. Se ela não estava escrita, significa que a história é o resultado da ação da sociedade, das pessoas, mas principalmente dos próprios partidos e do sistema político. A ação ou omissão de agentes políticos é que foi levanto a esse resultado Bolsonaro. Factualmente está errado, mas não tem importância quando a sua posição é ideológica, no sentido de que você quer dizer que aquele troço que ninguém entende, que é junho de 2013, era de extrema direita. Se você quer dizer isso, resolve a sua vida, porque daí você não tem que pensar.
O outro lado é você justificar, primeiro, o que o PT fez no governo federal naquele momento em que estava ocupando, o que os partidos fizeram nos governos estaduais e municipais onde estavam ocupando, e justifica a ação desses governantes e a ação do sistema político em relação a junho de 2013. Fizeram tudo certo, não fizeram nada errado, porque não tinha nada a fazer. Era como se fosse um fenômeno da natureza, levantou uma onda ali, que o pessoal chama de onda conservadora. Você não tem que fazer nada, tem que se esconder e esperar a onda passar.
Bom, já imaginou se essa energia [de junho] tivesse sido usada para reformar a política no Brasil? O que teria acontecido, como aconteceu em outros lugares. Ou se essa energia tivesse se organizado de maneira institucional. A gente estaria em outro lugar, e não no lugar onde a gente está. Aquelas pessoas que saíram na rua, a grande maioria delas, segundo qualquer pesquisa, não se dizia nem de direita nem de esquerda. Não declarava pertencimento ou simpatia por nenhum partido especificamente. Eram só pessoas que falavam “olha isso aqui está errado, está funcionando de um jeito errado”. É nesse momento que liderança política tem que ser liderança, falar “ouvi o que vocês tão dizendo e proponho que a gente vá para lá”.
O sistema político fez a tática de avestruz, enfiou a cabeça debaixo da terra e falou uma hora esse pessoal vai se cansar, uma onda de insatisfação que vai passar e vamos continuar funcionando como a gente sempre funcionou. Deu muito errado para o sistema político, para a sociedade e para o país. Tem esse outro lado muito importante que é aprender com os erros cometidos depois de junho. E não foram cometidos por uma ou outra pessoa, por um ou outro partido, por um ou outro movimento, foram cometidos coletivamente. Claro que o sistema político tem muito mais culpa no cartório, porque tem o papel de liderança que não exerceu ou que exerceu no sentido ruim, que foi se omitir e se blindar contra a sociedade em vez de se abrir a ela.
Um conceito fundamental na sua análise é o chamado partido digital bolsonarista. Tivemos a CPMI das Fake News, temos o inquérito das fake news no STF, mas o que se sabe efetivamente sobre essa estrutura é pouco. Qual o custo de estarmos no escuro em relação à essa estrutura?
O custo é a democracia. A gente sabe pouco, mas o que a gente sabe é assustador o suficiente. E uma das facetas da luta para manter a democracia é manter, financiar os estudos sobre o partido digital bolsonarista, que não é um partido formalizado, inscrito no TSE, e por isso ele é mais perigoso. Ele pode hackear partidos existentes, ele não precisa se restringir a um partido. O Bolsonaro fica mudando de partido toda hora, para a eleição em 2018 passou por três partidos diferentes até parar no PSL. Toma posse em janeiro de 2019, e em novembro ele se desfilia do partido, fica dois anos sem. Faz parte da tática antissistema dele, também isso, dizer “nem partido eu tenho”. E depois entra no PL, como ele podia ter entrado em qualquer outro. Por quê? Sei lá, o partido é 22, o ano é 22, ajuda. Claro que ajuda o fato de ser um partido herdeiro da ditadura, mas o que eu quero dizer como um argumento-limite é que ele pode ocupar qualquer partido porque tem tantos à disposição no Brasil. Por isso o partido digital bolsonarista é mais preocupante, porque ele não depende de um partido.
Você aponta um fator importante, de que uma eventual vitória do Lula significará que o partido líder da coalizão de governo enfrentará, pela primeira vez desde 2003, uma oposição mobilizadora, o partido digital bolsonarista. E nada impede que Lula retome o velho modelo do pemedebismo. Como você enxerga duas recentes movimentações na corrida eleitoral, o PSD de Kassab ficando neutro, mas com o Kassab piscando para o Lula em um eventual 2º turno, e uma ala do MDB tentando embarcar já agora no barco de Lula?
O modelo que chamo de pemedebista, de 1994 até 2013, tinha exatamente como característica não permitir à oposição fazer oposição. Claro que durante o período FHC o PT, como tem uma base de militância, conseguiu fazer muita coisa. Não tanto quanto a gente acha, mas conseguiu fazer alguma coisa. No momento em que o PT chegou ao poder e usou os mesmos mecanismos pemedebistas instaurados pelo Plano Real, a oposição realmente não conseguia mais mobilizar nada.
Nesse esquema pemedebista, quem fica na oposição tem que esperar que o poder caia no colo, tem que esperar que o adversário erre, que tenha uma crise horrorosa no mundo e quem está no poder não consiga lidar. Foi o que aconteceu no governo FHC com o apagão em 2001.
Você tem um esquema em que é muito difícil ganhar. No mundo inteiro, quando se tem o mecanismo da reeleição, é difícil ganhar, mas no Brasil é extraordinariamente difícil. Mesmo que não fosse reeleição, como em 2010. Justamente porque a oposição não tem condições de fazer oposição. Como todo mundo está no governo, a oposição é uma franja. E a verdadeira oposição é a interna, a própria coalizão.
Com o partido digital bolsonarista, vamos ter um polo mobilizador. Se o Lula vencer a eleição, vai ter oposição mesmo. E é uma oposição diferente da que o PT fez ao governo FHC. Falavam “o PT fazia oposição desleal”. Aguardem, aguardem para ver o que é oposição desleal de verdade, que é o partido digital bolsonarista. É mobilizador, não joga segundo as regras democráticas, não está preocupado com estabilidade institucional, muito pelo contrário.
E uma das possibilidades, vencendo o Lula, é que ele volte ao velho esquema pemedebista. Se ele voltar, Bolsonaro está reeleito em 2026. Porque é justamente isso que não dá mais para sustentar. Esse modelo de 1994 até 2013 se esgotou, já se esgotou faz tempo, mas agora se esgotou de maneira evidente. O que não significa que o MDB não possa estar no governo Lula ou que o PSD não possa estar no governo Lula. A questão é todo mundo está no governo. Você não consegue governar, você não consegue fazer um governo coeso, homogêneo, aguerrido quando você tem 75% de apoio no Congresso Nacional. Não dá.
Se o Lula quiser de fato superar a crise em que nós estamos, ele precisa construir um governo que seja maioria, mas que não tenha uma supermaioria, característica do pemedebismo. Não impede que esses partidos estejam no governo, dependendo do acordo que você fizer e da quantidade de parlamentares que tiver. Agora, se estiver todo mundo, igual antes, vai dar errado, porque mais uma vez o partido digital bolsonarista vai dizer “não falamos? São todos iguais”.
No final do livro, você cita a importância de o PT ajudar a fomentar uma direita não bolsonarista autossuficiente e eleitoralmente competitiva. Você enxerga o PT disposto a isso? E isso está colocado no horizonte da direita?
Isso é um pouco pedir demais, né? Você pede para o PT além de governar, além de governar com uma base enxuta, ainda por cima tem que ajudar o seu adversário porque ele precisa isolar a extrema direita. Mas precisa. E pode fazer. Pode fazer no sentido de dizer olha, para a democracia sobreviver no Brasil, a direita brasileira precisa sair da hegemonia da extrema direita. Porque hoje a extrema direita domina a direita. E você precisa ter uma situação em que a direita não bolsonarista isole o bolsonarismo e tome conta da direita. Dependendo do tipo de aliança que você faz, você influi também em como o adversário se reconfigura. Quando você tem o poder federal, você tem um poder muito grande também para, por exemplo, eliminar candidaturas, no sentido de que você faz uma pressão para que tal candidatura não se viabilize.
Você chega a afirmar que se um eventual governo Lula não começar por uma “reforma tributária de cunho efetivamente redistributivista”, já terá acabado antes de começar. Isso é factível, considerando a bomba fiscal que ele, caso eleito, herdará deste governo?
A questão de ser factível é outra história. Não estou falando nada de irrealista. Estou falando de uma coisa difícil de fazer, não impossível. No que se baseia esse raciocínio? Primeiro, no fato de que o país está destruído economicamente, socialmente, institucionalmente. E que reconstruir esse país em quatro anos é uma tarefa gigantesca. A melhor coisa para o Bolsonaro é colher o que ele próprio plantou. Ele plantou destruição, ele colhe daqui a quatro anos a reeleição dele dizendo que quem foi eleito, o Lula, digamos, fez tudo errado.
Por outro lado, o que eu quero dizer com isso é que a situação mudou a tal ponto que não tem como dizer para as pessoas “vamos voltar para antes de 2013”. Primeiro porque ninguém quer. Segundo que não dá, não tem como voltar ao modelo anterior. Você tem uma tarefa gigantesca porque tem que reconstruir o país com um salto adiante, é a pior situação possível. E a melhor situação possível para a extrema direita e o autoritarismo, que está ali só esperando o outro errar, e errar porque não vai conseguir consertar a destruição que a própria extrema direita causou.
O que é uma coisa profunda do modelo pemedebista que a gente teve entre 1994 e 2013? Você não pode impor perda a ninguém. Se for para ganhar, todo mundo tem que ganhar. Pode ser que a pessoa ganhe um pouco menos que a outra, mas você não pode impor perdas, neste caso com tributação, por exemplo. Esse imposto absurdo que os pobres do país pagam, isso não pode mais continuar. Aí falam “nunca fizeram no Brasil, por que vão fazer agora?”. Justamente porque a situação é de emergência, e fiscal também.
*
Limites da democracia
Autor: Marcos Nobre
Editora: Todavia
320 págs.