Melina Rocha

Não há dúvidas que 2020 foi um ano de intensas discussões sobre a reforma tributária. Apesar disso, o ano terminou sem a apresentação de um relatório na comissão mista de reforma tributária e sem uma definição clara do caminho que a reforma seguirá. Se o cenário estava incerto em 2020, o ano de 2021 iniciou com ainda mais incerteza e sobressaltos com relação ao futuro da reforma tributária (incluindo especulações sobre uma possível dissolução da comissão mista e troca do relator).
A eleição na Câmara e no Senado mostrou um Poder Executivo mais disposto a dialogar com o Congresso Nacional e a jogar conforme as regras políticas e institucionais típicas do presidencialismo multipartidário brasileiro<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Este alinhamento entre Poder Legislativo e Executivo aumenta a probabilidade de reformas e de aprovação da agenda do governo, conforme aponta Marcus André Melo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> a partir da experiência e literatura brasileira e internacional<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Entretanto, é preciso considerar que a coalizão até então construída pelo presidente é minoritária e não é suficiente para a aprovação de uma agenda ampla de reformas, o que faz com que ainda seja necessário formar uma coalizão majoritária com outros partidos, conforme bem demonstrado por Carlos Pereira<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
<a href="https://conteudo.jota.info/carf-previsivel"><img class="aligncenter wp-image-292715 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/carf-previsivel.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Diante deste cenário político, a questão principal passa a ser então a seguinte: qual é, afinal, a agenda do governo federal com relação à reforma tributária? O ministro da economia diz que apoia, desde a campanha, a criação do sistema de IVA dual proposto pelo IPEA<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, conforme afirmou expressamente, inclusive citando o nome de um dos autores da proposta, na audiência pública da comissão mista do dia 05 de agosto de 2020<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. O governo federal apresentou então um projeto de reforma do PIS/COFINS – a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) - que é anunciada por sua equipe como um IVA federal, totalmente compatível com um IVA/IBS amplo nos moldes da PEC 45/2019 e que, por isso, o governo poderia continuar discutindo com os Estados a aprovação do IBS pois haveria a possibilidade de um acoplamento futuro da CBS.
Entretanto, há neste discurso uma contradição lógica: não dá para defender um sistema de IVA dual (composto de dois IVAs separados) e, ao mesmo tempo, aprovar uma reforma ampla com um acoplamento posterior da CBS ao IBS. Desta forma, não há clareza se o governo quer caminhar i) somente para a aprovação da CBS, ou ii) de dois IVAs separados ou iii) aprovar a CBS para futuro acoplamento a um IBS amplo (o que, implica, obviamente, um engajamento maior do governo para a efetiva adoção do IBS).
Paralelamente, não há tanta certeza de que o governo federal realmente está disposto a negociar os principais pontos de conflito com os Estados para a adoção do IBS. Somava-se a tudo isto, por fim, os desentendimentos políticos entre Guedes e Maia que parecem ter igualmente impactado nestas negociações e no avanço da reforma.
<blockquote class="jota-article__eye">Este contexto demonstra que, mesmo antes da vitória dos candidatos governistas à presidência da Câmara e do Senado, o futuro da reforma tributária nunca esteve só nas mãos do Congresso, mas também (e, ouso dizer, até muito mais) nas do governo federal.</blockquote>
O governo federal é forte o bastante para agir como o que a teoria política chama de veto player - um ator com poder suficiente para impedir que uma mudança ocorra<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Sem governo federal no jogo, não haverá reforma tributária, principalmente se não assumir um papel de protagonista da coordenação dos interesses federativos<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>.
A experiência internacional demonstra que a adoção de IVA em países federativos – como o caso do Canadá e da Índia – só foi possível com uma forte participação do governo federal na conciliação de seus interesses com os das províncias ou estados. O histórico das reformas tributárias no Brasil igualmente aponta para uma ausência do governo federal no papel de conciliador dos interesses federativos. A meu ver, este é um fator importante para explicar a razão pela qual uma reforma nunca foi aprovada.
Conforme pesquisa empírica que realizei sobre as tentativas de adoção de um IVA amplo nos governos anteriores<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>, um dos principais entraves para o avanço da reforma era a passagem da cobrança na origem para o destino, que gerava uma grande resistência dos Estados produtores. Esta resistência parece, pela primeira vez, não existir mais no atual debate, em parte por conta do próprio esgotamento do modelo do ICMS e das consequências perversas de décadas de guerra fiscal.
Os principais pontos de disputa na discussão atual parecem ser questões vinculadas a fundos de compensação e equalização, administração compartilhada do novo tributo e às alíquotas que caberá a cada ente. Caso o governo federal decida, portanto, seguir pelo caminho de apoiar a adoção de um IVA amplo como o da PEC 45/19, deverá negociar estes pontos com os Estados e, principalmente, se comprometer com o financiamento dos fundos por eles reivindicados. Sem este compromisso financeiro será muito difícil que uma reforma tributária ampla avance e seja aprovada, já que os Estados parecem não abrir mão destes fundos.  No cenário de crise econômica e financeira pela qual passa o país, a margem de manobra nesta negociação é obviamente muito pequena.
O governo tem ainda a opção de encaminhar somente a reforma do PIS/COFINS proposta na CBS, em conjunto ou não com uma CPMF. Estas medidas certamente aliviarão a condição financeira do governo federal, mas vão representar aumento de carga tributária e não são suficientes para resolver os principais problemas do sistema tributário brasileiro.
Fica difícil, no entanto, aceitar o discurso de que a CBS é compatível ou representa uma primeira parte de uma reforma mais ampla, já que o governo não sinalizou quais os planos futuros a serem seguidos após a adoção da CBS. Sem uma proposição clara de continuação futura da reforma, a adoção da CBS pode representar apenas uma reforma do PIS/COFINS.
Por fim, há ainda a possibilidade de o governo passar a apoiar com mais clareza um IVA dual, proposta que, como já mencionado aqui, tem a preferência do Ministro Guedes. Importante repetir, no entanto, que um modelo de IVA dual não implica somente a criação da CBS, mas também a adoção simultânea ou, ao menos, um plano de ação factível para criação futura de um outro IVA na esfera de Estados e Municípios.
Cabe lembrar que a PEC 110/2019 já foi adaptada no sentido de propor um IVA Dual e parece que esta proposta ganhará mais atenção em 2021 com a nova composição da Câmara e do Senado. O problema é que a PEC 110/2019 está muito longe dos melhores modelos internacionais de IVA em termos técnicos, pois abrange uma série de demandas setoriais que distorcem e criam uma imensa complexidade ao sistema. Quanto a isto, a PEC 45/2019 é inegavelmente superior, mais alinhada às melhores técnicas, com mais neutralidade e menos distorções.
Por conta de tudo isso, o ideal seria que o governo federal esgotasse todas as possibilidades para a aprovação de um IVA único, nos moldes da PEC 45/2019. Caso não seja possível por conta dos conflitos políticos e federativos, a ideia do IVA Dual com a criação da CBS em conjunto ou, ao menos, com uma proposta factível de criação futura de um IVA Estadual-Municipal, pode ser o “second best” para o encaminhamento da reforma tributária no Brasil.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> <a href="about:blank">https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,por-que-apenas-sobreviver,70003608526</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> <a href="about:blank">https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcus-melo/2021/02/o-dilema-entre-governabilidade-e-responsabilizacao.shtml</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Entretanto, não significa um apoio incondicional do Congresso ao governo, já que ainda é preciso compromissos e recompensas para a cooperação do Legislativo, conforme apontado por Carlos Pereira: <a href="about:blank">https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-presidencialismo-multipartidario-venceu,70003602281</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="about:blank">https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,por-que-apenas-sobreviver,70003608526</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="about:blank">https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&amp;view=article&amp;id=34402</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="about:blank">https://www.youtube.com/watch?v=_aSNkk5ZsA8</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> TSEBELIS, George. Decision Making in Political Systems: Veto Players in Presidentialism, Parliamentarism, Multicameralism and Multipartyism. British Journal of Political
Science, v. 25, n. 3, p. 289-325, jun. 1995.
_____. Veto Players and Law Production in Parliamentary Democracies: An Empirical
Analysis. American Political Science Review, v. 93, n. 3, set. 1999.
_____. Veto Players and Institutional Analysis. In Governance: An International Journal of Policy and Administration, v. 13, n. 4, out. 2000, p. 441-474.
_____. Veto Players: how political institutions work. Princeton. Princeton University
Press, 2002.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Conforme defendido nesta entrevista: <a href="about:blank">https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/08/se-governo-nao-for-protagonista-reforma-tributaria-vai-fracassar-diz-especialista.shtml</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Lukic, Melina S. R. Reforma Tributária no Brasil: Ideia, Interesses e Instituições. Curitiba: Juruá, 2014.

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