Ângelo de Angelis

Utilizar lei tributária sobre impostos arrecadatórios como instrumento de política de preço nunca foi boa ideia. Os tributos de natureza regulatória são mais apropriados para este fim, a exemplo da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cide">Cide</a>), do Imposto de Importação e também do Imposto sobre Produtos Industrializados (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ipi">IPI</a>). Tentar alterar a dinâmica dos preços dos combustíveis mudando-se a sistemática do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (<a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/icms-entenda-os-aspectos-fundamentais-13052021">ICMS</a>) guarda alguma semelhança com o ato de tentar ensinar um porco a cantar, você perde o seu tempo e irrita o porco<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Além disso, o ICMS sobre combustíveis é ponto nevrálgico do sistema da arrecadação estadual e afeta também as receitas dos municípios via fundo de participação<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Alterações significativas do ICMS sobre combustíveis desacompanhadas de uma reforma mais ampla e sistêmica pode trazer consequências indesejadas para as finanças estaduais e municipais.
Estamos a falar da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp192.htm">LC 192/2022</a>. Esta lei altera completamente a sistemática da tributação sobre combustíveis para o ICMS e para as contribuições <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/piscofins">PIS/Cofins</a>.
Em linhas gerais, para o ICMS, o imposto passa a ser pago uma única vez, na produção (refinarias) ou na importação por uma alíquota chamada de ad rem ao invés das alíquotas que hoje prevalecem e que são ad valorem<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. As alíquotas ad rem do ICMS serão uniformes em todo o território nacional, podendo ser diferenciadas por produtos e definidas mediante deliberação dos estados e do Distrito Federal, nos termos da alínea g do inciso XII do §2º do artigo 155 da Constituição Federal (ou seja, no Confaz).
Para os combustíveis derivados de petróleo, o imposto (ICMS) caberá ao estado de destino, onde ocorrer o consumo. Para os demais (etanol anidro, biodiesel e gás natural), nas operações interestaduais entre contribuintes, o imposto será repartido entre os estados de origem e destino de acordo com a mesma proporcionalidade que ocorre atualmente nas operações com as demais mercadorias. Se estas operações ocorrerem entre contribuintes e não contribuintes, o imposto (ICMS) caberá ao estado de origem.
Há previsão constitucional para a tributação do ICMS sobre combustíveis pela sistemática ad rem<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Em relação às contribuições PIS/Cofins, atualmente sua cobrança já é feita por alíquotas ad rem, mas a LC 192/2022 as reduz a zero até 31 de dezembro de 2022 para o óleo diesel e suas correntes, o biodiesel, o gás liquefeito de petróleo (GLP) derivado de petróleo, o gás natural e o querosene de aviação, garantida às pessoas jurídicas da cadeia, incluído o adquirente final, a manutenção dos créditos vinculados (artigo 9º). Em seu parágrafo único do artigo 9º, a LC 192/2022 estende esta redução pelo mesmo prazo sobre as importações destes produtos.
Com esta nova sistemática para o ICMS mais a redução à zero para o PIS/Cofins até o final deste ano, o governo federal espera maior estabilidade e redução de preços dos combustíveis no Brasil.
Há meses que o governo federal vem acusando a tributação sobre combustíveis como fator relevante do aumento de seus preços. É verdade que os tributos incidentes sobre este insumo básico representam boa parte da composição dos preços chegando a 42% para a gasolina e 22% para o óleo diesel, segundo estimativas da Agência Brasil <a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Nestes percentuais, a parcela do ICMS é, respectivamente, de 28% e 14%. Uma drástica redução destes percentuais afetaria significativamente a arrecadação estadual e requerer-se-ia medidas adicionais de compensação, o que poderia ser alcançado com uma reforma mais ampla e escalonada com melhor distribuição intersetorial de alíquotas e ônus tributário por estrato de renda, o que seria o mais prudente.
Atualmente — e até que a LC 192/22 entre em vigor – a incidência do ICMS sobre combustíveis se dá pela sistemática do valor adicionado com substituição tributária. No caso dos combustíveis derivados de petróleo o ICMS de toda a cadeia é cobrado na origem e devido pelas refinarias como substitutas tributárias. O produto da arrecadação é distribuído aos estados pelo princípio de destino, já que as operações interestaduais não são tributadas (alínea “b”, inciso X, §2º, artigo 155 da CF)<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
As alíquotas são ad valorem – isto é – incidem sobre o valor da operação. Cada estado define a sua própria alíquota. As bases de cálculo do ICMS por substituição tributária por estado são os chamados PMPFs (Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final), que os estados informam quinzenalmente ao Confaz e que são utilizados pelas refinarias para efetuarem o cálculo do imposto devido. Os PMPFs são obtidos pelos estados mediante pesquisas e levantamentos de preços dos combustíveis comercializados na rede varejista.
Havia no discurso do governo federal a ideia de que os governos estaduais estariam abusando de alíquotas e bases de cálculo do ICMS para arrecadar mais e, com isto, provocando aumento de preços dos combustíveis. Desnecessário apontar para a falácia deste discurso, uma vez que as alíquotas, apesar de altas, vêm se mantendo relativamente constantes há diversos anos<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. O que tem ocorrido é que a base de cálculo da substituição tributária do ICMS é obtida pela média de preços dos combustíveis comercializados no varejo e estes têm subido muito em função da política de preços de paridade de importação adotado pela Petrobras<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> e não em função das alíquotas do ICMS. Aliás, governos estaduais congelaram o chamado, o PMPF, que serve de base de cálculo para o ICMS pelo regime de substituição tributária desde 29 de outubro de 2021.
Porém, o governo federal resolveu alterar o regime tributário do ICMS e do PIS/Cofins sobre combustíveis como meio de aliviar o preço final ao consumidor. Para isto, editou o <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/plp-11-2020">PLP 11/2020</a> tendo sido aprovado como LC 192/2022, sancionada pelo presidente da República no último dia 11 de março. Na Justificação do PLP 11/2020 lê-se:
<blockquote class="jota-article__citation">"O objetivo é trazer uma estabilidade e diminuição nos preços dos combustíveis, tabelando por valores fixos com parâmetro a base de cálculo do ano passado, e que será definido pelo Poder Legislativo Estadual" (grifos nossos).</blockquote>
A LC 192/2022 instituiu um regime monofásico para gasolina, etanol anidro combustível, diesel, biodiesel e gás liquefeito de petróleo, inclusive o derivado de gás natural<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>. Como comentado, por este regime as alíquotas deixam de ser ad valorem, isto é, incidentes sobre uma determinada base de cálculo que refletem preços de venda, e passam a ser ad rem.
Estas últimas são fixadas por um valor em unidades monetárias (reais) por unidade de medida, em litros ou metros cúbicos. O tributo, ao invés de incidir a cada etapa da cadeia de produção e distribuição passa a ser cobrado de uma única vez na produção, na importação ou mesmo na distribuição. Neste caso, seria cobrado em etapa única na refinaria ou na importação para os derivados de petróleo, e nas usinas ou distribuidoras no caso do etanol e demais não derivados de petróleo.
Esta monofasia para combustíveis sempre foi entendida como meio de simplificar a tributação sobre o setor e trazer mais racionalidade para a arrecadação que lhe é peculiar. Diferentemente das cadeias dos demais setores, a de combustíveis tem a produção bem mais concentrada e o consumo extremamente pulverizado por todo o território de um país de dimensões continentais, sendo considerada “um mundo à parte”, inadequado para se sujeitar à tributação clássica do IVA. É uma antiga reivindicação do setor cuja possibilidade foi incluída na Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001, mas, até então, aplicada apenas para os tributos federais PIS, Cofins, PIS-Importação, Cofins-Importação e Cide.
Doravante, o mesmo regime passa a ser aplicado para o ICMS. Não resta dúvidas de que este sistema com alíquotas ad rem para o setor simplificaria muito o sistema atual baseado na monofasia de substituição tributária que é ad valorem e extremamente complexa. Os impostos únicos sobre combustíveis e sobre minerais já eram cobrados no regime constitucional anterior. A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pec-110-2019">PEC 110/2019</a> prevê a mesmo regime para combustíveis. Em ambos os casos – na Constituição de 1966 e na PEC 110/2019 –, a monofasia do tipo ad rem para combustíveis foi pensada em um contexto mais amplo de reforma tributária em que as diversas partes do novo sistema guardam alguma lógica relacional entre si.
No caso da LC 192/2022, a medida vem como que um meteoro inesperado que entra em choque com um sistema todo problemático e, pior, podendo não resolver o problema de fundo que é o contínuo aumento dos preços dos combustíveis — e ainda por cima não resolver o outro problema apontado na justificação do PLP 11/2020: a atual complexidade do sistema baseado no instituto da substituição tributária.
Em primeiro lugar, discute-se que a LC 192/2022 fere o princípio federativo pois retira dos estados a prerrogativa de definirem suas próprias alíquotas. Segundo o artigo 3º, inciso V, al. “a” da referida lei complementar, as alíquotas serão uniformes em todo território nacional podendo ser diferenciadas por produto. É problemático alcançar alguma harmonia tributária com alíquotas uniformes once for all pois cada estado tem suas especificidades orçamentárias e sua estrutura tributária que lhe dê suporte. Uma alíquota média instituída no curto prazo poderia trazer aumento de carga tributária em alguns estados e insuficiência de arrecadação em outros. Estados já cogitaram em contestar a LC 192/2022 no STF.
Para contornar este problema, os estados até elaboraram uma minuta de convênio em que as alíquotas uniformes por produto são definidas para todo o território nacional, mas em seu Anexo 1, prevê-se um desconto que cada estado estaria autorizado a aplicar sobre a alíquota ad rem para recompor sua atual carga tributária. Ou seja, a alíquota é uniforme mas não é.
Em segundo lugar, a lei complementar determina que as alíquotas definidas não podem ultrapassar a atual carga tributária sobre os preços dos combustíveis. Outro ingrediente a mais a ser pensado para a formulação da alíquota média ideal a ser utilizada na equalização da carga tributária.
Outro problema da lei complementar é o artigo 9º que no intuito de abaixar o preço dos combustíveis reduz a zero as alíquotas do PIS/Cofins incidentes sobre o faturamento. Em seguida, o caput estabelece a garantia às pessoas jurídicas da cadeia, incluído o adquirente final, a manutenção dos créditos vinculados. Ora, quais créditos seriam garantidos se as alíquotas foram zeradas? No regime não cumulativo de base contra base, poder-se-ia calcular créditos fictos sobre o valor das compras, mesmo não havendo tributação sobre as mesmas, já que a lei complementar garantiu tais créditos. Mesmo que se interprete a aplicação deste preceito para as demais aquisições que não combustíveis pelas distribuidoras, outro ingrediente para judicialização está posto.
Estas não são questões que podem ser resolvidas na canetada de uma lei complementar sancionada às pressas, sem uma reflexão mais profunda. Querer abaixar preços de produtos que obedecem a uma lógica de mercado (PPI) mexendo na sua tributação fora de um contexto mais amplo de reforma tributária e sem um projeto longitudinal de transição nos moldes da PEC 110/2019 pode trazer outra sorte de problemas, além dos aqui apontados, muitos inimagináveis.
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O autor agradece as sugestões e comentários da advogada tributarista Renata Emery
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Never attempt to teach a pig to sing; it wastes your time and annoys the pig. Robert A. Heinlein.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Em média a arrecadação sobre combustíveis representou 14,8% de todas as receitas tributárias estaduais. Vejam esta participação em alguns estados neste ano: Acre, 20,1%; Ceará, 20,0%; Rio de Janeiro, 14,8%, Minas Gerais, 16,8% Vide: <a href="https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYjE1ZDQzNTAtNTUxMC00MTc2LWEyMTEtZjdkZjRlZjk4YzUyIiwidCI6IjNlYzkyOTY5LTVhNTEtNGYxOC04YWM5LWVmOThmYmFmYTk3OCJ9">https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYjE1ZDQzNTAtNTUxMC00MTc2LWEyMTEtZjdkZjRlZjk4YzUyIiwidCI6IjNlYzkyOTY5LTVhNTEtNGYxOC04YWM5LWVmOThmYmFmYTk3OCJ9</a>.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> As alíquota ad rem são um valor fixo em unidades monetárias multiplicado pelo quantitativo vendido em unidades de medida. As segundas são um percentual fixo que é multiplicado pelo valor da operação. Por exemplo, imagina-se uma operação de venda de 80.000 litros de óleo diesel ao preço de R$ 3,60 da refinaria para a distribuidora. Para uma alíquota ad rem de 0,3433, o ICMS sobre esta operação seria de R$ 27.464,00 (0,3433 X 80.000). Se a alíquota for ad valorem a 12%, o ICMS seria de R$ 34.560,00 (12% X 3,60 X 80.000).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm">Vide alínea h do inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federa</a>l: h) definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b; <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc33.htm#art2">(Incluída pela Emenda Constitucional nº 33, de 2001)</a>” 
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> <a href="https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-02/agencia-brasil-explica-como-e-composicao-do-preco-dos-combustiveis">https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2021-02/agencia-brasil-explica-como-e-composicao-do-preco-dos-combustiveis</a>.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a>Para a distribuição desta receita, utiliza-se o Sistema de Captação e Auditoria dos Anexos de Combustíveis (Scanc) que é um sistema operado em plataforma nacional, hospedado e coordenado pela Secretaria da Fazenda de Minas Gerais.  O <a href="http://www.fazenda.gov.br/confaz/confaz/Convenios/ICMS/2002/CV054_02.html">Convênio ICMS nº. 54/02</a> estabelece procedimentos para o controle de operações interestaduais com combustíveis derivados de petróleo e álcool etílico anidro combustível (AEAC). Consultar: <a href="http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/sistemas/scanc/funcoes.html">http://www.fazenda.mg.gov.br/empresas/sistemas/scanc/funcoes.html</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Consultar as evolução das alíquotas ao longo de diversos anos nas edições da revista online da Fecombustíveis disponível em <a href="https://www.fecombustiveis.org.br/edicoes-revista">https://www.fecombustiveis.org.br/edicoes-revista</a>
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> <a href="https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/precos-de-paridade-de-importacao">https://www.gov.br/anp/pt-br/assuntos/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/precos-de-paridade-de-importacao</a>
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Lubrificantes e demais combustíveis como querosene de aviação ficaram de fora.

combustíveis gasolina

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JOTA

Lei Complementar vem como meteoro inesperado que pode não resolver o aumento de preços de combustíveis

LC 192/2022 é um péssimo exemplo de instrumento de política de preços

LC 192/2022 é como um meteoro que entra em choque com um sistema problemático e pode não resolver aumento dos preços dos combustíveis