Dalmo de Abreu Dallari
Jurista, professor aposentado da Faculdade de Direito da USP.
Em mais de uma oportunidade, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que no desempenho de suas funções presidenciais iria respeitar a Constituição. Mas ao contrário disso, publicou um decreto que amplia absurdamente as possibilidades do uso de armas no Brasil, o decreto nº 9785, de 7 de maio de 2019, que afronta disposições expressamente fixadas em lei.
Com isso, o presidente praticou um ato que é manifestamente inconstitucional, além de ser também altamente prejudicial aos direitos fundamentais e aos legítimos interesses do povo brasileiro.
Esse decreto foi publicado com o objetivo declarado de regulamentar a Lei Federal nº 10826, de 22 de Dezembro de 2003, consagrada como Estatuto de Desarmamento.
A par disso, o decreto contém inúmeros artigos que contrariam frontalmente disposições expressas do Estatuto de Desarmamento.
Essa inconstitucionalidade já foi objeto de reações diversas, externadas através de pronunciamentos públicos de pessoas e entidades conhecedoras do assunto e verdadeiramente comprometidas com o direito e o bem público, incluindo-se aí instituições ligadas à defesa do Direito e da Justiça.
Indo agora ao aspecto jurídico, é oportuno ressaltar, em primeiro lugar, que a Constituição vigente contém disposições expressas e muito precisas sobre as atribuições do Presidente da República. Assim é que no artigo 84, onde são especificadas tais atribuições, foi estabelecido, no inciso IV, que compete ao Presidente “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”.
Ressalte-se a expressão “para sua fiel execução”, ou seja, para buscar dar aplicação estrita ao que dispõe a lei. Segundo os comentadores da Constituição, nesse dispositivo está presente o princípio da legalidade. Confrontando essa norma constitucional com o que dispõe o decreto federal nº 9785, o eminente jurista Vidal Serrano Nunes Júnior, Professor da PUC de São Paulo, afirma enfaticamente: “O decreto é inconstitucional, pois ele não pode inovar na ordem jurídica. Um decreto é um ato administrativo, cujo objetivo é dar executoriedade à lei, ou seja, nunca pode criar uma nova situação. Ele tem que se restringir a regulamentar. Por isso, o decreto de Bolsonaro sobre o uso de armas é inconstitucional”.
Outros pronunciamentos de juristas vão no mesmo sentido, sempre ressaltando que a Constituição dá competência ao presidente da República para publicar as leis e expedir decretos “para sua fiel execução”.
Além dessas denúncias da inconstitucionalidade do decreto presidencial 9785, sempre bem fundamentadas, acaba de ser publicada uma carta aberta de catorze governadores de estados brasileiros, das mais diversas posições políticas, que denunciaram expressamente, com fundamentos sólidos e claramente enunciados, os graves prejuízos políticos e sociais que irão resultar, inevitavelmente, da persistência dessa inconstitucionalidade presidencial.
E acrescentam que, a par de ser inconstitucional, o decreto facilita a circulação de armas de fogo, o que, a par de outros graves desvios, irá facilitar a atuação de organizações criminosas, pela facilidade na aquisição e circulação de armas. Com esses e outros argumentos, os governadores concluem a carta aberta pedindo a revogação do decreto.
Em face dessas reações e não tendo como refutar as alegações de inconstitucionalidade, o presidente Bolsonaro vem fazendo uma tentativa de manter a essência do decreto questionado.
E para tanto já publicou dois novos decretos introduzindo modificações no decreto nº 9785, os decretos 9797, de 21 de Maio e o decreto 9898, datado de 22 de Maio.
Entretanto, juristas e instituições que analisaram esses decretos concluíram que eles não corrigem as inconstitucionalidades denunciadas. Essa foi a conclusão da Consultoria Legislativa do Senado, que divulgou uma avaliação de que, conforme noticiado pelo jornal “O Estado de São Paulo” (Ed. de 24 de maio, pág. A14), “há pelo menos nove pontos em que, apesar das mudanças, o decreto continua extrapolando o caráter regulamentar. Entre eles está o presumir que pessoas podem ser consideradas enquadradas na “atividade profissional de risco” e no parâmetro de ”ameaça à integridade física”, sendo que o Estatuto de Desarmamento exige um exame individualizado, pela Polícia Federal, para permitir o uso.
Além disso, o parecer questiona o fato de o texto não exigir do morador de área rural o requisito de idade superior a 25 anos e dependência de arma para subsistência alimentar familiar. Além disso, para a consultoria o decreto é inconstitucional ao incluir mais duas categorias na lista de atividades profissionais de risco: o guarda portuário e os integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público.
Para concluir, é oportuno relembrar aqui a avaliação do decreto presidencial 9785 feita pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, o ilustre advogado Felipe Santa Cruz. Em declaração pública, através do Estadão/Broadcast e Rádio Eldorado, ele condenou o decreto não só por sua inconstitucionalidade, mas também por seu conteúdo. E prosseguindo nessas críticas, disse ele em entrevista publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo” (Ed. de 3 de Maio, pág. A6: “Não consigo ter como um ideal de Justiça uma espécie de Velho Oeste, onde a população armada substituiria políticas de segurança pública e onde todos vão andar armados, nas salas de aula e nas ruas”.
Na realidade, as exageradas facilidades para aquisição, transporte e uso de armas, introduzidas inconstitucionalmente pelo decreto presidencial, são reveladoras da obsessão do presidente Bolsonaro pelas armas. Mas, a par disso e considerando os aspectos jurídicos, é surpreendente e decepcionante que os assessores jurídicos da Presidência, que, obviamente, são os redatores dos decretos presidenciais acima referidos, não tenham advertido o Presidente das inconstitucionalidades. Isso talvez possa ser explicado ou pelo despreparo jurídico dos assessores ou, então por sua exagerada submissão à vontade de seu superior hierárquico. Mas, apesar da resistência presidencial é necessário denunciar as inconstitucionalidades e os riscos sociais dessa resistência, bem como seus efeitos ofensivos ao Estado Democrático de Direito.