Hary Risério Herstig

Natalie Melamed Gemio

A necessidade de um marco regulatório para ampliar o transporte rodoviário de passageiros.

Transporte Rodoviário de Passageiros

O transporte intermunicipal – responsável por conectar pessoas dentro de um mesmo estado – é vital para a integração regional e a mobilidade de milhões de pessoas no Brasil. Especialmente em estados com grande extensão territorial, como São Paulo, que concentra mais de 45 milhões de habitantes, a existência de um transporte intermunicipal eficiente é essencial para assegurar o acesso a serviços e utilidades públicas – que, muitas vezes, estão concentrados na capital ou em outros municípios de maior porte. 
No entanto, a realidade da prestação de serviço intermunicipal no estado de São Paulo está longe de refletir a riqueza e potência econômica do estado, muito menos de suprir a demanda interna de mobilidade. 
Nos últimos 20 anos, o ecossistema do transporte rodoviário intermunicipal tem enfrentado um cenário de estagnação, atrasos e fragilidade jurídica, marcado pela perda significativa de linhas e operadoras. Essa situação impacta negativamente não apenas a oferta e a qualidade dos serviços prestados à população, mas principalmente o bolso e a vida das pessoas. 
Esse cenário ilustra a fragilidade da regulação setorial e a falta de uma política de transporte eficiente e integrada, que deveria priorizar a acessibilidade e o atendimento das necessidades coletivas.
Nas duas últimas décadas, houve um encolhimento significativo do setor de transporte intermunicipal rodoviário em São Paulo. Entre 2003 e 2021, registrou-se uma redução de 39% no número de empresas que prestam o transporte intermunicipal rodoviário regular de passageiros. 
Segundo relatórios anuais da Agência de Transporte do Estado de São Paulo, (Artesp), foi registrada a perda de 25% das linhas regulares intermunicipais em operação entre 2012 e 2021 – passando de 1.126 para 840 linhas em menos de dez anos. 
Atualmente, menos de 2% das rotas intermunicipais de ônibus possuem mais de um operador habilitado pela Artesp, órgão regulador e fiscalizador do transporte intermunicipal de passageiros no estado. Ou seja, 98% das linhas estão concentradas em uma ou duas viações, caracterizando monopólios ou duopólios na vasta maioria das rotas no estado.
Esse cenário de diminuição da oferta de linhas e de falta de concorrência retrata um mercado estagnado, incapaz de atender às demandas da população com qualidade e a preços justos.
<blockquote class="jota-article__quote">98% das linhas intermunicipais em São Paulo estão concentradas em uma ou duas viações, caracterizando monopólios ou duopólios na vasta maioria das rotas no estado</blockquote>
Para se ter uma ideia, em uma pesquisa simples em sites de venda de passagens de ônibus, o valor médio dos bilhetes entre cidades dentro do estado de São Paulo é mais alto em comparação com trajetos de distâncias similares entre municípios de diferentes estados. 
Por exemplo, o trecho entre São Paulo e Belo Horizonte (583 quilômetros de distância) tem, em média, o preço de R$ 99,00 – o que significa um valor de R$ 0,16 por quilômetro rodado. Já a viagem entre São Paulo e Presidente Prudente, ambas cidades paulistas (588 km de distância), exige um desembolso de cerca de R$ 220,00, resultando em uma média de R$ 0,39 por km rodado.
<h3>Raio X do sistema de transporte intermunicipal do estado de São Paulo</h3>
A ausência de uma legislação setorial que traga regras claras e que permita a abertura e inovação do mercado com segurança jurídica é o principal fator que agrava os problemas do setor de transporte intermunicipal de passageiros no estado de São Paulo. 
A falta de um marco legal claro e abrangente tem resultado em um cenário de precariedade e ineficiência, afetando diretamente os usuários, operadores e a qualidade do serviço prestado.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, que atribui a cada estado a responsabilidade de legislar e regular o transporte intermunicipal, São Paulo não conseguiu implementar uma regulação robusta para o setor. 
Mesmo após diversas tentativas de atualizar o marco regulatório e realizar licitações para reordenar o mercado, as permissões originais do serviço de transporte intermunicipal, concedidas na década de 1960, nunca foram regularizadas. Isso privou o setor de uma legislação compreensiva e ordenada,  gerando insegurança jurídica e problemas que persistem até hoje.
Em 1989, o estado de São Paulo iniciou sua primeira tentativa de regularização do setor após a promulgação da Constituição, com o Decreto 30.945/1989. A norma determinava que o transporte intermunicipal deveria ser prestado por meio de permissões, outorgadas por licitação – que nunca ocorreram, mantendo a vigência daquelas permissões concedidas em 1960. 
O Decreto 30.945/1989 foi seguido por novas tentativas do estado de fechar o mercado e impor o regime de serviço público, acessível apenas às empresas vencedoras de licitações, como o Decreto 40.842/1996 e o Decreto 61.635/2015. 
<blockquote class="jota-article__quote">A falta de um marco legal claro e abrangente tem resultado em um cenário de precariedade e ineficiência, afetando diretamente os usuários, operadores e a qualidade do serviço prestado</blockquote>
A tentativa mais recente do estado de São Paulo de regular o setor também não foi bem-sucedida. Com base no Decreto 61.635/2015, o governo do estado de São Paulo, por meio da Artesp, publicou edital para a licitação dos serviços de transporte intermunicipal, a ser realizada em agosto de 2016. 
Pouco tempo após a publicação do edital, a licitação foi objeto de diversas impugnações perante o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e o Tribunal de Justiça, sendo o prosseguimento do certame autorizado apenas em 2019. 
Em fevereiro de 2023, a Artesp publicou novo edital para delegação dos serviços, mas este também foi rapidamente arquivado pelo próprio governo do estado de São Paulo, para revisão dos estudos que o subsidiaram. 
Como resultado, o transporte intermunicipal de São Paulo ainda opera sob o regime jurídico que foi instaurado por normas revogadas – dado que o regime previsto pelo Decreto 61.635/2015, em vigor – nunca foi efetivamente implementado. 
As permissões outorgadas na década de 1960 foram repetidamente renovadas e o mercado nunca foi efetivamente aberto a novos operadores, que pudessem ampliar a quantidade de linhas oferecidas ou melhorar a qualidade do atendimento à população.
Quando olhamos, de um lado, para as drásticas quedas dos indicadores operacionais do transporte intermunicipal no estado, e, de outro, para o quadro regulatório do setor (ou a ausência dele), ficam claras as consequências danosas da ausência de uma legislação atualizada e eficaz para o mercado e para a população. 
O histórico de instabilidade jurídica e a falta de um modelo regulatório claro não só mantêm o setor estagnado, como também perpetuam a concentração de mercado, onde poucas empresas dominam as rotas intermunicipais. Esse quadro é reforçado por uma política tarifária controlada pela Artesp que dificulta a redução de preços e restringe a competitividade e a inovação no setor.
Portanto, a falta de uma regulação específica e eficaz é o cerne dos desafios enfrentados pelo transporte intermunicipal no estado de São Paulo. Sem uma estrutura legal clara, que ofereça segurança jurídica e incentive a competitividade, torna-se difícil pensar em um cenário de recuperação do setor, que continuará a enfrentar redução na oferta de linhas e concentração de mercado, já que, em última instância, não há qualquer incentivo para que os operadores aprimorem a qualidade e reduzam preços. 
<blockquote class="jota-article__quote">A mobilidade é um direito básico e essencial que precisa de atenção e mudanças urgentes</blockquote>
Para reverter o atual quadro de estagnação enfrentado pelo setor de transporte intermunicipal, faz-se urgente a necessidade de mobilização pública e privada, notando-se que  a implementação de projetos no setor muitas vezes requer acordos formais entre diferentes níveis de governo. 
É imperativo estabelecer rapidamente uma regulação que privilegie os interesses e necessidades dos usuários, primando pela qualidade dos serviços prestados e pela possibilidade de preços mais acessíveis.
Diante desse cenário, é fundamental que o setor receba a atenção que merece, seja por parte dos decisores políticos, juristas, órgãos de defesa dos consumidores, opinião pública e especialistas em mobilidade. Convidamos todos a iniciar um debate profundo sobre essa questão, buscando soluções que possam transformar o transporte intermunicipal em um exemplo de eficiência, acessibilidade e qualidade para todo o Brasil.
Fontes: Herstig, Hary Risério. Gemio, Natalie Melamed. Análise Regulatória do Transporte Intermunicipal de Passageiros por Ônibus no Estado de São Paulo: Propostas para Aprimoramento à luz de Experiências Estaduais e do Modelo Federal. Trabalho de Conclusão de Curso (Mestrado em Gestão de Políticas Públicas) – Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2023.

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JOTA

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