Estúdio JOTA

A necessidade de um marco regulatório para ampliar o transporte rodoviário de passageiros.

Transporte Rodoviário de Passageiros

O governo federal lançou, em julho, a primeira fase do programa Voa Brasil, que prevê a oferta de 3 milhões de passagens aéreas a R$ 200. O objetivo é promover a inclusão social e fomentar o turismo no país. No entanto, ao focar exclusivamente na aviação, perde-se a chance de fortalecer também o transporte rodoviário interestadual — um modal essencial para a mobilidade em um país com dimensões continentais e que não é suficientemente explorado.
O TRIP, ou Transporte Rodoviário Regular Interestadual de Passageiros, regulado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), é essencial para cobrir trajetos que a aviação não atende: apenas 159 aeroportos brasileiros receberam voos domésticos regulares em 2023, segundo o Anuário da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), sendo que o Brasil conta com 5.570 municípios.
Enquanto o programa Voa Brasil visa facilitar o acesso aéreo, a expansão e o aprimoramento do transporte rodoviário poderiam proporcionar uma conectividade mais ampla e eficaz. O modal rodoviário pode ser um catalisador crucial para melhorar a mobilidade interna, especialmente para áreas menos atendidas pela aviação, e garantir um acesso mais equitativo a serviços essenciais em todo o país.
“Considerando ainda o preço das passagens aéreas, que nem sempre é acessível, é preciso garantir que a maior quantidade possível de municípios tenha o serviço de transporte rodoviário interestadual disponível”, diz Andrea Mustafa, diretora de Relações Governamentais e Institucionais da FlixBus. 
Ao passo que o investimento em uma política como o Voa Brasil demanda recursos do governo, ao exigir o subsídio das passagens adquiridas, além de investimentos na infraestrutura ainda esparsa de aeroportos, o suporte ao transporte rodoviário de passageiros apresenta baixo custo para os cofres públicos. 
Isso se dá pelo fato de a mudança ser de caráter regulatório, que transferiria a responsabilidade pela operação dos serviços para as empresas autorizatárias interessadas na operação, que competiriam entre si para oferecer melhores serviços e preços mais atrativos para o usuário, explorando rotas ainda sem acesso. O custo para o Estado fica apenas na regulação da qualidade e segurança dos serviços prestados. 
Um exemplo é a necessidade de transporte para que estudantes possam acessar o ensino universitário público, geralmente disponível em cidades específicas, que nem sempre estão próximas de suas residências, muitas vezes localizadas em diferentes estados. No último censo sobre o tema, em 2018, o INEP concluiu que 11% dos estudantes universitários estudavam fora de seu estado de origem. “O transporte rodoviário é uma forma de apoiar a permanência universitária”, complementa Mustafa. 
Da mesma forma, na saúde, essa modalidade de transporte permite o acesso ao atendimento especializado em saúde em outros municípios e estados para pacientes oncológicos, dado que mais da metade destes pacientes precisam se deslocar de seu município de residência para acessar tratamento. 
Um dado que ilustra esse potencial de garantir acesso a direitos é que apenas o serviço regular rodoviário concedeu gratuidades e descontos a 1,7 milhão de idosos e estudantes em 2023, segundo o Anuário da ANTT. 
<h3>Ampliação do transporte rodoviário</h3>
Apesar de a capilaridade do serviço regular de ônibus interestaduais ser maior do que a da aviação civil, o cenário nesse modal ainda está muito aquém de seu potencial. É necessário avançar na interiorização e na maior disponibilidade de acesso à população, por exemplo. 
Dentre os 5.570 municípios brasileiros, somente 37% das cidades foram atendidas pelo transporte rodoviário regular interestadual em 2023, limitando a mobilidade do cidadão para acesso a serviços essenciais como educação, saúde, lazer e a própria rotina de trabalho. 
Nesse contexto, o Anuário da ANTT revela que foram realizadas mais de 1,5 milhão de viagens no serviço regular rodoviário em 2023, com a oferta de cerca de 68 milhões de assentos. Em comparação com o modal aéreo, no mesmo período, 91 milhões de passageiros foram transportados em voos domésticos no país – a questão é que para muito menos destinos do que as rodovias são capazes de atender e por um preço bem superior, caso todo o potencial rodoviário fosse explorado. 
A ampliação das linhas de transporte interestadual pode impulsionar o desenvolvimento econômico de regiões atualmente isoladas ou com cobertura limitada. Facilitando o fluxo de pessoas, investimentos locais são incentivados e o turismo é promovido em regiões fora dos hubs de aviação.
Desde o arrefecimento da pandemia da Covid-19, há grande potencial para o crescimento do turismo nacional. De acordo com a Associação Brasileira das Agências de Viagens Corporativas (Abracorp), o setor de viagens corporativas, por exemplo, faturou R$ 6,8 bilhões no primeiro semestre deste ano – 5% a mais do que no mesmo período de 2023. Uma prova inconteste de que esse setor pode crescer muito, ainda mais se uma infraestrutura de transporte rodoviário interestadual lhe der suporte.
<h3>Novo marco para fomentar o transporte</h3>
Em dezembro do ano passado, a ANTT aprovou a Resolução 6.033/2023, que instituiu o novo marco regulatório do TRIP, após uma discussão que durou quase dez anos. A norma entrou em vigor em 1º de fevereiro deste ano. O objetivo do marco é fomentar a ampliação da malha do transporte rodoviário, sobretudo interestadual, por meio da abertura de mercado.
A expectativa era de que o marco fosse capaz de<a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/transporte-rodoviario-passageiros/proposta-de-marco-do-transporte-rodoviario-sofre-nova-critica-desta-vez-no-cade-22112023"> fomentar a competitividade no setor</a> – importante para a melhoria dos serviços e o aumento de rotas e linhas, com a consequente queda nos preços, para atender a um maior número de cidadãos. No entanto, segundo o texto da resolução, “o deferimento de novas autorizações com mercados principais e subsidiários ocorrerá de forma gradual e progressiva, de modo a preservar a estabilidade dos mercados e possibilitar a ampliação da competitividade ao longo dos anos”. 
Segundo o marco, a entrada de novas viações para operar linhas rodoviárias só poderá ocorrer em janelas ordinárias anuais. Além disso, caso haja mais interessados do que vagas disponíveis em um determinado mercado, a vencedora será escolhida por meio de sorteio entre as empresas solicitantes.
Para os mercados principais, será permitida a entrada de novas operadoras em um percentual de 10% do número total de empresas que já operam no respectivo mercado, após o primeiro ano de vigência da resolução, podendo chegar a até 25% a partir do quarto ano. Com isso, o deferimento de novas autorizações nos mercados principais ocorrerá de forma muito limitada e somente a partir de março de 2025. 
<h3>Histórico pouco favorável ao mercado</h3>
Entre 2019 e 2020, a ANTT autorizou a entrada de novas empresas em diversos mercados, tanto para trajetos que não tinham nenhuma operadora de transporte quanto para aqueles que já tinham competidores. 
“O resultado foi uma queda de, em média, 40% nos preços nas rotas de alta competição como Rio-São Paulo, por exemplo. O uso do sorteio para definir quais empresas prestarão os serviços impede o estabelecimento de redes que auxiliam nas estratégias das empresas e na otimização das rotas, inclusive para proporcionar preços mais acessíveis. Sem dúvida, é uma limitação que limita a concorrência e, portanto, impede uma maior redução nos preços de passagesns”, ressalta Andrea Mustafa, da FlixBus.
“O regime de autorização, adotado pelo Congresso Nacional em 2014, prevê o estabelecimento de critérios e permite que todas as empresas que cumpram esses critérios sejam autorizadas a prestar o serviço. Não cabe à autoridade reguladora <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/transporte-rodoviario-passageiros/proposta-da-antt-para-linhas-interestaduais-e-criticada-por-danos-a-concorrencia-22082023">estabelecer de antemão quantas empresas são ‘possíveis’ em cada </a>mercado; sua missão está muito mais relacionada a fiscalizar e garantir a qualidade do serviço prestado, verificando previamente o atendimento aos critérios estabelecidos”, destaca a executiva.
De acordo com a nova resolução da ANTT, trechos não atendidos ou operados por apenas um operador deveriam ter sido liberados para novas empresas após seis meses de vigência da norma, ou seja, a partir do fim de julho. No entanto, o prazo para abertura desta janela extraordinária foi prorrogado por 30 dias. 
O motivo foi um atraso da ANTT na implantação dos sistemas eletrônicos que irão gerir e fiscalizar o transporte rodoviário regular de passageiros. Além disso, a agência vem demonstrando ter reticências à abertura do mercado. 
“A Agência entende também que a abertura do mercado merece ser conduzida com a devida cautela, na medida da capacidade de fiscalização, e sob um necessário monitoramento dos seus efeitos. A excessiva exposição e consequente instabilidade nos mercados (pares origem/destino) de maior demanda/receita por conta de uma abertura indiscriminada pode levar a um cenário predatório, direcionando a um processo de irracionalidade no lado da oferta e sua precificação, com probabilidades reais de depreciação dos níveis adequados dos serviços prestados”, informou a ANTT em nota.
O atual regime de autorização para o TRIP entrou em vigor em 2015, com a aprovação da Lei 12.996/2014. Deveria estar em plena vigência desde 2019, quando terminou o prazo de transição, mas<a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/transporte-rodoviario-passageiros/o-que-esperar-da-antt-apos-tcu-liberar-novas-rotas-de-onibus-interestaduais-20032023"> a abertura do mercado foi prejudicada por uma série de idas e vindas</a>. No regime autorizativo, as empresas devem comprovar a capacidade de operar as rotas, mas não é necessária licitação prévia e qualquer tipo de exclusividade, o que incentiva a competição, vista como benéfica para o consumidor e para a própria dinâmica econômica do país.
Antes disso, vigia o regime de permissão, no qual a definição e implantação de novas rotas deveria, em tese, ser feita por meio de licitações. No entanto, as licitações nunca aconteciam. As empresas vinham operando graças a um precário esquema de permissões ou devido a decisões judiciais. 
Em 2023, o <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/transporte-rodoviario-passageiros/stf-garante-concorrencia-e-novo-marco-do-transporte-rodoviario-so-depende-da-antt-06042023">Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a constitucionalidade  do regime de autorização</a>, o que gerou mais pressão para a ANTT finalizar o processo de discussão regulatória do TRIP, que se estendia por quase uma década.
"O Brasil e os brasileiros só têm a ganhar com o aperfeiçoamento do transporte rodoviário interestadual, que já provou seu valor como alternativa acessível e abrangente", avalia Mustafa. 
Nesse contexto, com a ampliação das linhas rodoviárias e o incentivo à competitividade, o Brasil pode não apenas melhorar a mobilidade em regiões menos atendidas pela aviação, mas também garantir o acesso a direitos fundamentais como saúde, educação e lazer, além de incentivar o turismo nacional e gerar emprego e renda
<h3>O exemplo internacional </h3>
Países da União Europeia enfrentaram a questão da mobilidade de média e longa distância de forma similar ao que tem sido tentado no Brasil. Porém, tiveram sucesso ao implantar, efetivamente, modelos de autorização para delegar o serviço público de transporte rodoviário de forma mais simples e direta para a iniciativa privada, possibilitando a concorrência e garantindo a ampliação do acesso. 
O ônibus é um complemento (ou por vezes a única opção) em áreas pouco assistidas por outros tipos de transporte – aéreo ou ferroviário, muito comum na Europa –, por se tratar de uma alternativa de baixo custo e pouca necessidade de infraestrutura. Foi essa a a opção elegida no bloco europeu nos últimos 15 anos. 
A abertura do mercado de transporte rodoviário europeu teve um impacto direto na população mais vulnerável, ao oferecer uma alternativa de custo expressivamente mais baixo aos trens, além de atender cidades de menor porte. 
Na Alemanha e na Itália, 60% dos passageiros de ônibus recebem um salário-mínimo ou menos, e mais de 40% deles têm entre 16 e 35 anos, o que evidencia o impacto democratizante da liberalização do mercado de transporte rodoviário. 
Na Alemanha, um dos países de maior renda na Europa, 13% dos passageiros afirmam que não teriam viajado se não houvesse ocorrido a mudança na regulamentação e a redução nos preços das passagens.
Nesse mesmo sentido, na França, os preços baixos do transporte rodoviário permitiram que mais pessoas conquistassem o acesso a viagens. No país, mais de 20% dos passageiros têm menos de 25 anos, e cerca de 1,2 milhão de pessoas (17% dos viajantes) declaram só terem conseguido viajar devido aos novos serviços de ônibus introduzidos em 2015. 
Além disso, um fator decisivo para a maioria dos passageiros ao escolher um meio de transporte é o preço. Se isso vale para a Europa, provavelmente teria impacto relevante no Brasil. 
"Estes são exemplos de benefícios gerados pela ampliação do mercado de transporte rodoviário, uma política pública de baixíssimo custo para o Estado e de alto retorno social e econômico para o povo e para o país. Para que tais resultados positivos sejam alcançados entre nós, o Brasil só precisa acertar na regulação", diz Mustafa, da FlixBus. 
Nessa linha, a regulação precisaria garantir a concorrência em consonância com o que decidiu o Congresso brasileiro, o que permitiria à população contar com mais e melhores serviços de transporte rodoviário interestadual, a preços acessíveis.

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JOTA

O transporte rodoviário interestadual merece atenção. Novo marco regulatório gerou expectativa de melhores serviços, o que ainda não ocorreu


Brasil precisa ir além do programa ‘Voa Brasil’ para impulsionar viagens pelo país

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