Resolução de conflitos

Os riscos do ‘PL antiarbitragem’ em trâmite no Congresso

Ex-presidente do STF prevê ‘fuga’ de casos arbitrais para o exterior se projeto for aprovado. Acadêmicos veem pontos positivos, mas criticam falta de debate

Crédito: Mario Roberto Duran Ortiz/Wikimedia Commons

Mecanismo criado há quase três décadas no Brasil para resolver com rapidez e de forma técnica conflitos entre empresas, a arbitragem pode sofrer mudanças vistas por entidades como passíveis de inviabilizar o instituto caso seja aprovado o Projeto de Lei 3293/2021. Como não havia nenhuma discussão técnica envolvendo mudanças na lei vigente desde 1996, o projeto surpreendeu especialistas, acadêmicos e associações da área. A proposta está em tramitação na Câmara dos Deputados e já mobilizou mais de 40 entidades ligadas ao Direito e à arbitragem contra a iniciativa parlamentar.

Entre os críticos está o ex-presidente do STF Sydney Sanches, atualmente presidente da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem da Fiesp/Ciesp. “A lei da arbitragem, que recentemente completou 25 anos, passou por uma alteração em 2015 e o instituto em si já se mostrou ser um meio apropriado, eficiente e célere para a solução de controvérsias. Seria um descompasso com o que é aplicado internacionalmente alguns tipos de mudança de regramento”, afirma.

O ministro aposentado do STF avalia que, caso o projeto se torne lei, o Brasil corre risco de deixar de ser referência na área de arbitragem e pode assistir a uma fuga em massa de casos arbitrais para países onde as leis sigam o padrão internacional.

“As partes que buscam, principalmente, a especialidade dos julgadores [árbitros] e a confidencialidade do procedimento arbitral, sem contar outras vantagens do instituto, irão recorrer a outros países onde estes princípios são garantidos para resolver suas disputas”, alerta.

A proposta, de autoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), vem sendo apelidada entre especialistas como “PL antiarbitragem” ao sugerir alterações na Lei de Arbitragem nº 9.307. A norma foi criada em 1996 em linha com recomendações da Uncitral – a câmara de Direito Comercial Internacional da ONU.

O projeto gerou polêmica ao sugerir duas mudanças apontadas como sensíveis: publicidade de todas as decisões, incluindo valores envolvidos; e a instituição de um limite de dez processos simultâneos para cada árbitro.

A arbitragem é um mecanismo de direito privado que permite a empresas e pessoas físicas resolver disputas envolvendo contratos firmados entre si. As partes escolhem no ato de assinatura do contrato qual câmara de arbitragem utilizar para resolver eventuais litígios sem acionar o Judiciário. O modelo de resolução de conflitos é mais rápido que um processo legal em tribunal. Existem cerca de 50 câmaras em funcionamento no país, conforme dados do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem (Conima). 

O conflito na arbitragem é solucionado por julgadores especializados, que podem inclusive ser técnicos da matéria, como especialistas em engenharia quando o caso envolve empresas do ramo da construção civil, por exemplo. Além disso, como o sigilo é garantido nas disputas, a arbitragem evita a publicidade de batalhas milionárias, seja entre empresas de capital fechado ou aberto. Ainda assim, companhias com ações na bolsa precisam divulgar em seus balanços decisões que possam afetar acionistas, conforme regulação da Comissão de Valores Imobiliários (CVM).

Ele indica evoluções não acompanhadas pela lei atual, mesmo após a revisão de 2015, como o advento de multipartes envolvidas e a disseminação da arbitragem na administração pública. “A forma como a arbitragem está estruturada no Brasil não está muito adequada para lidar com essas situações novas”, pondera.

Urgência sem debate

As entidades afirmam que estavam conversando com parlamentares para demovê-los de apoiar o projeto, apresentado em setembro do ano passado. A discussão ocorria no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) até um pedido de urgência ser apresentado para levar o processo de aprovação diretamente ao plenário da Câmara.

A urgência foi apresentada, no início de julho, pelo deputado André Fufuca (PP-MA), com apoio de seis parlamentares. O líder do PP solicitou que a etapa da CCJ seja abandonada para que a votação ocorra diretamente no plenário. Com isso, o PL pode ser aprovado sem debate público.

A sugestão para acelerar o trâmite gerou uma série de notas e pareceres técnicos críticos de entidades jurídicas. “Não conseguimos entender a razão dessa pressa. A nosso ver não faz sentido nenhum, justamente porque esse projeto, tão atípico em relação ao que se faz no mundo em matéria de arbitragem, deveria, no mínimo, ser submetido ao processo legislativo regular para ser alvo de toda discussão que merece”, afirma o presidente do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr), André de Albuquerque Cavalcanti Abbud.

O presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Sydney Sanches (homônimo do ex-ministro do STF), avalia a urgência como inadequada. Ele sustenta que o “projeto veio para ferir” a legislação atual. “A urgência é injustificável diante de um assunto de tanta complexidade, do que vai repercutir e alcançar em termos de vulnerabilidade para todo um sistema conciliatório”, considera.

A celeridade do trâmite na Câmara gerou estranheza também entre acadêmicos. “As propostas são impositivas e não precederam nenhuma instância de debate. A impressão que dá é que quem fez essa proposta desconhece o instituto da arbitragem. Estão tentando resolver alguns problemas que não existem com medidas que, para muitos colegas, podem acabar com o mercado de arbitragem, embora eu pessoalmente não acredite que vá acabar”, observa Cláudio Finkelstein, coordenador do curso de extensão em arbitragem da PUC-SP.

Relatora desejava convocar audiência

Abbud, presidente do CBAr, afirma que o projeto de lei pegou o setor de surpresa, posto que não havia qualquer discussão em andamento sobre alterações na lei de 1996, revisada há pouco tempo após debate público coordenado pelo ministro Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

“A Lei de Arbitragem é muito boa. Tanto que nessa reforma ela passou por ajustes pontuais. Não havia no âmbito dos profissionais e usuários da arbitragem nenhuma demanda ou necessidade de alteração ou nova revisão”, sustenta Abbud.

Era este o argumento levado pelas entidades aos 513 deputados para frear o PL na CCJ da Câmara, onde a proposta é relatada pela deputada Bia Kicis (PL-DF).

Questionada, a deputada diz que abriria discussão sobre o projeto antes de elaborar o relatório a ser votado na CCJ. “O PL está com requerimento de urgência e, talvez, vá direto ao plenário, saindo da minha relatoria. Audiência pública seria uma sugestão minha, mas com o requerimento apresentado deve sair da CCJ”, afirma Bia.

Um pedido de audiência pública foi aprovado no início de agosto, após polêmica envolvendo a tramitação acelerada do projeto na Câmara. O debate, contudo, ainda não tem data definida para ocorrer.

Na enquete aberta pela Câmara em seu site, 96% das 611 pessoas votantes até o momento disseram “discordar totalmente” do projeto.

A motivação para o surgimento intriga entidades e especialistas. “O projeto veio muito cirúrgico para inviabilizar a arbitragem. Quem fez sabia o que estava fazendo”, diz o porta-voz do IAB.

Ele critica o uso crescente de pedidos de urgência adotados pela Câmara para aprovar projetos em plenário sem debate público em comissões parlamentares. “Não tem sido incomum determinadas matérias ganharem essa característica de urgência de uma hora para outra sem muita justificativa. Isso tem acontecido com certa frequência em várias áreas do Direito. Não sei explicar em relação à mudança da Lei de Arbitragem existe interesse de algum setor, algum propósito não republicano ou algum fato que tenha motivado esse tipo de ocorrência”, afirma.

Sigilo é questionado

Na defesa apresentada por escrito para justificar o projeto, a deputada Margarete sugeriu que a publicidade é necessária para criar jurisprudência para a arbitragem. “A ideia, nesse sentido, é aumentar a segurança jurídica e coesão das decisões, diminuindo-se o risco de tribunais distintos decidirem demandas idênticas em sentidos diametralmente opostos”, sustentou.

Abbud, da CBAr, discorda e afirma haver inconstitucionalidade no texto. “A pedra de torque do bom funcionamento da arbitragem no mundo é a autonomia da vontade, a autorregulação dos usuários e prestadores desses serviços com base em algumas regras fixadas pelo legislador. Então, definir que as sentenças sejam tornadas públicas e com qual extensão – por exemplo, se devem ser publicados extratos, ementas e quais informações devem ser suprimidas – não é matéria para lei federal”, diz.

Sanches, do IAB, defende o sigilo de “soluções de conflitos entre partes privadas” como está na regra atual. “A Lei de Arbitragem tem o cuidado de dizer que quando envolve questões de ordem pública, ou seja, transação onde a administração pública é envolvida, o processo vai respeitar os princípios de transparência por questão de interesse coletivo”, argumenta.

Mario Engler, coordenador do mestrado profissional da FGV Direito, vê a publicidade como necessária. Ele cita como exemplo a Câmara de Paris, na França, que eliminou a confidencialidade de seu regulamento, transferindo para as partes decidirem os pontos mais sensíveis para impor sigilo. “A ideia de uma arbitragem secreta, que está muito na sua gênese e divulgada como uma grande vantagem, hoje em dia é colocada muito em dúvida. Vale em alguns casos, mas talvez para a maioria há mais a perder do que a ganhar”, opina o professor da FGV-SP. 

Finkelstein defende a publicidade de sentenças preservando pontos sensíveis envolvendo segredos vitais para negócios. Ele vê a publicação de decisões como forma de criar uma jurisprudência para o segmento, o que não existe atualmente.  “A transparência devia ser a regra e o sigilo esporadicamente identificado”, afirma. “As sentenças têm de começar a ser publicadas. Hoje, a única instituição que publica excertos de decisões é a câmara da B3 [bolsa de valores de São Paulo]. Nenhuma outra faz isso. Ter uma jurisprudência arbitral vai permitir trabalhar o direito substantivo, porque a gente não sabe como trabalhar a própria indicação do árbitro”, diz o professor da PUC-SP.

Pesquisa realizada pela CBAr e o Instituto Ipsos, em 2021, com 225 profissionais da arbitragem apontou que 73% são favoráveis à divulgação de sentenças, desde que com ressalvas. Para 96% dos profissionais favoráveis ao fim do sigilo, deve haver preservação de segredos de negócios, bem como informações financeiras e comerciais sensíveis (93%) e os nomes das empresas (75%). “Em matéria de arbitragem, o tema deve ser deixado para os próprios participantes decidirem. A pesquisa é feita justamente para tentar captar dos profissionais que atuam no mercado espaços para aperfeiçoamento autorregulatório”, defende o representante do CABr.

Limite de casos é criticado

A autora do PL defende a limitação de dez casos por profissional como forma de evitar reserva de mercado. “Espera-se que haja a ampliação e diversificação da composição dos tribunais arbitrais. A difusão da prática arbitral e a profusão de cursos de capacitação de árbitros, especialmente na última década, aumentaram o rol de profissionais aptos e qualificados a atuar em arbitragens brasileiras”, escreveu.

A pesquisa CBAr-Ipsos registra que os profissionais estiveram envolvidos, em média, com 13 casos de arbitragem nos últimos cinco anos, seja como advogado ou árbitro. Alguns árbitros da amostra (92) afirmam ter participado de 19 casos.

Os números ilustram o argumento das entidades contra o limite de dez casos por profissional. “Equivale a dizer que os médicos só podem atender dez pacientes, que os advogados só possam atender dez clientes, que os contadores só possam atender dez empresas [ao mesmo tempo]. Isso viola as garantias constitucionais da livre iniciativa e da liberdade profissional”, diz Abbud.

Finkelstein também critica o limite proposto pelo PL. “Tirar da cartola o número dez sem nenhum critério me parece despropositado”, diz. “Pensar que limitar o número vai abrir o mercado para diversos entrantes eu não sei até que ponto é verdadeiro. Se um profissional tem 40 casos, é porque os usuários o querem por ter alguma expertise, especialização acadêmica ou trabalho publicado que justifique”, avalia.

Engler aponta a concentração de casos como deficiência na forma como a arbitragem funciona com “um número muito reduzido de profissionais”, com nomes se repetindo nas listas de várias câmaras pelo país. Com isso, os prazos para resolução estariam ficando maiores que o desejado na elaboração da lei em 1996. “O que vemos hoje é que a arbitragem não consegue cumprir o prometido em termos de prazo”, diz.

Segundo o professor da FGV-SP, a concentração profissional, a repetição de nomes nas câmaras e casos de árbitros atuando também como advogados elevou questionamentos por conflito de interesses.

Para Engler, cada questionamento adiciona pelo menos seis meses ao processo. “Enxergamos hoje uma proliferação de questionamentos sobre independência e imparcialidade do árbitro de uma forma um pouco errática, porque não temos um referencial normativo claro disciplinando as hipóteses de conflito de interesses. A lei de arbitragem trata isso de forma muito genérica”, observa.

O projeto sugere também que os árbitros revelem os casos em que atuam, o que já é praxe. “Várias câmaras já preveem que o árbitro deve informar em quantos casos está atuando naquele momento para as partes verificarem se ele está disponível para atuar naquele caso. Se não estiver, basta as partes impugnarem esse profissional”, observa Abbud. 

Embora afirmem terem sido surpreendidas pelo pedido de urgência do projeto, as entidades estão confiantes em barrar a proposta. “Estamos em contato com os 513 deputados. Alguns já nos retornaram manifestando compreensão e adesão expressa. Outros têm solicitado audiência, inclusive durante o recesso parlamentar”, diz Abbud. A apreciação do pedido ficou para depois do recesso parlamentar.