Arbitragem

Número de novos casos de arbitragem em câmaras aumenta 600% em uma década

Pesquisa da professora Selma Lemes mostra valores recordes e bilionários, além de novos setores na arbitragem

Arbitragem
Selma Maria Ferreira Lemes, Membro da Corte Internacional de Arbitragem da ICC / Crédito: Marcos Issa/Argosfoto

A arbitragem, meio alternativo ao Judiciário para resolução de conflitos, registrou, em 2020 e 2021, cerca de R$ 120 bilhões nos novos casos em discussão. Um conflito entre a Petrobras e a Agência Nacional Petróleo (ANP) atingiu o valor recorde de maior arbitragem já feita no Brasil: R$ 2 bilhões. Além das cifras elevadas, a quantidade de casos entrantes no sistema também tem crescido. Em uma década, o número de novas arbitragens em câmaras arbitrais deu um salto de mais de 600%. Além disso, outros setores passaram a fazer uso da alternativa. Os dados são da Pesquisa Arbitragem em Números, da professora e advogada Selma Lemes.

As discussões arbitrais somam R$ 64,52 bilhões e R$ 55,20 bilhões, respectivamente, em 2020 e 2021. As arbitragens são geralmente de médio e grande porte. Essas últimas frequentemente são as do setor de energia e as de parcerias público-privadas (PPPs), ou seja, que envolvem a administração pública. 

Em 2010, as câmaras de arbitragem tiveram 46 procedimentos entrantes. Dez anos mais tarde, em 2020, eram 333 novos casos. O número de arbitragens totais, em andamento, também segue em alta: em 2019 eram 967, passando a 996 no ano seguinte e 1.047 em 2021. O movimento, portanto, na avaliação da professora Selma Lemes, é grande e constante. 

O levantamento realizado pela professora é feito desde 2005 e funciona como uma radiografia do instituto no Brasil. Lemes também foi uma das responsáveis pela elaboração da Lei 9.307, de 1996, a Lei de Arbitragem, pela criação da Câmara da Fiesp, e redigiu diferentes regulamentos. Tanto a pesquisadora quanto o trabalho anual se tornaram referências para os profissionais da área. O estudo não trata da arbitragem total do país, mas das câmaras de arbitragem, que somam oito. Em alguns casos, o procedimento pode ser feito fora das câmaras. 

A última edição da pesquisa trouxe ainda dois setores novos: arbitragens para resolver conflitos trabalhistas e as ligadas aos esportes. Foi a primeira vez que houve registro, e já com um número alto, de arbitragens nas relações laborais feitas na Câmara de Mediação e Arbitragem Empresarial – Brasil (Camarb). 

Mudanças com a reforma trabalhista

“Uma surpresa nossa foi encontrar arbitragens trabalhistas e arbitragem no setor de esporte, que são nichos. A área trabalhista veio pela alteração da lei pelo ex-presidente da República Michel Temer, que estabeleceu a possibilidade de uso da arbitragem em determinadas situações, como quando pessoas têm um nível de escolaridade maior, sabem o que estão acessando, verificaram e optaram. Isso faz com que pessoas em cargos de gerentes, diretores de empresas coloquem cláusulas compromissórias nos contratos que assinam”, explica Selma Lemes.

A Reforma Trabalhista de 2017 foi apontada por ela como “muito oportuna” no ponto em que regula a arbitragem na área. Antes,  a Lei de Arbitragem poderia ser usada como elemento subsidiário, mas enfrentava, e ainda enfrenta, grande resistência dos órgãos da Justiça do Trabalho. 

De acordo com Lemes, algumas câmaras chegaram a praticar arbitragem trabalhista, mas o Ministério Público do Trabalho propôs ações civis públicas para impedir a atuação. A nova CLT dá, textualmente, a autorização, ao prever a arbitragem como solução para conflitos entre empregado e empregador. É a primeira vez que a questão é colocada em um artigo de lei. 

O artigo 507-A prevê, no entanto, alguns requisitos para a validação dos conflitos solucionados nas Câmaras de Arbitragem, como remuneração base superior a R$ 11.062,62 e previsão em contrato de trabalho. Assim, a reforma transmitiu, no entendimento dela, segurança jurídica para o uso do instituto no setor. 

Esportes

No esporte, a utilização da arbitragem é ainda mais setorial. A Câmara Brasileira de Mediação e Arbitragem (CBMA), com sede no Rio de Janeiro, tem dois regulamentos próprios que seguem a Lei de Arbitragem. “Ela tem um efeito recursal. As questões da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), por exemplo, são tratadas pela própria CBF, em um comitê de arbitragem que tem também um sistema de recursos. E esses recursos vão para a CBMA, onde se aplica a Lei de Arbitragem”, explica a professora. 

O procedimento sofreu uma alteração importante. Esses recursos, de acordo com as normas dos desportos, seguiam para Lausanne, na Suíça, no Tribunal Arbitral de Esporte, o TAS. “A partir do momento em que se firmou esse convênio com a CBMA, eles passam a ser resolvidos aqui. É um diferencial importante”, pontua Lemes a respeito de um dos regulamentos. Segundo ela, a partir de agora, o Brasil consegue desenvolver jurisprudência própria para o setor.

O texto também facilita a solução de conflitos para outros esportes, não apenas para o futebol. “É uma área nova e muito promissora para a arbitragem e com reflexos internacionais interessantíssimos.” Outra vantagem é a redução de custos aos envolvidos. 

Setores tradicionais da arbitragem 

Apesar das novidades, desde o primeiro levantamento até o mais recente, as duas áreas campeãs na arbitragem foram sempre as mesmas: energia e societária, ou seja, conflitos entre sócios. “A arbitragem na área societária é tão grande que o Judiciário passa a ser muito pouco acionado para esse tipo de conflito. As empresas todas aderem à arbitragem”, diz a professora. Desta forma, segundo Lemes, o Judiciário apresenta um conjunto relativamente pequeno de decisões na área. 

Outro ponto de destaque do levantamento é sobre contratos internacionais. A lei brasileira regula a arbitragem doméstica. O que significa que as arbitragens aqui processadas, sejam derivadas de contratos firmados no Brasil sejam de contratos firmados no exterior, são consideradas arbitragens nacionais, reguladas pela Lei 9.307/1996.

A legislação brasileira não apresenta nenhuma restrição à presença de árbitros estrangeiros. Isso é tido pela professora como uma vantagem do texto e, além disso, uma forma de identificar a presença de procedimentos com empresas estrangeiras, já que é possível imaginar que estas poderiam querer nomear árbitros da própria nacionalidade. 

No levantamento, Lemes encontrou 32 arbitragens envolvendo contratos internacionais em 6 câmaras em 2020. Três delas, CCBC, CCI e AMCHAM, concentraram 29 destes contratos. Já em 2021, houve 49 arbitragens envolvendo contratos internacionais em quatro câmaras. CCI, CCBC e AMCHAM concentraram 47. 

Em 2020 a pesquisa registrou a participação de 152 árbitros de outras nacionalidades, especialmente da América Latina, Europa e Estados Unidos. Juntas, CCI, CCBC, CAM e CIESP, tiveram 149 árbitros. No ano seguinte, 296 árbitros de outros países integraram arbitragens no Brasil. As mesmas seis câmaras receberam 291 deles. 

Arbitragem multiparte

A arbitragem multiparte, aquela em que há mais de uma parte demandante e mais de uma parte demandada, também registrou números que chamam a atenção da pesquisadora. Em 2020, houve procedimento com mais de 1,4 mil partes. No ano passado, de 27 a 56 partes. “É uma possibilidade interessante e a Câmara do Mercado é aquela com maior atuação desse tipo.” 

Na avaliação da especialista, esta é outra área em que o Brasil vem se destacando e, assim, passa por uma série de questões processuais e nas quais outros países têm olhado para as soluções criadas aqui. 

“Aqui está a beleza da arbitragem. Ela permite, de acordo com a autonomia da vontade entre as partes, que as instituições regulamentem o mercado. As câmaras têm esse papel institucional de criação de regras e autorregulação. É possível criar regras e não há a necessidade de se criar legislação para cada ponto – sempre respondendo às demandas da própria sociedade, porque os contratos estão cada vez mais complexos”, analisa a advogada. 

Crítica ao PL Antiarbitragem

Neste ponto, ela critica a proposta de alteração legislativa que tramita na Câmara dos Deputados, apelidado de PL Antiarbitragem. Trata-se do PL 3.293/2021, apresentado pela deputada federal Margarete Coelho (PP-PI). Para Lemes, a proposta é infeliz ao restringir a atividade de árbitros, em total descompasso com a prática mundial da arbitragem, que se assenta na Lei Modelo da Uncitral, a Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional , à qual a lei brasileira se baseia.

“Muito se especula quanto à impugnação de árbitros e ações de anulação de sentença arbitral pelo motivo de que o árbitro não poderia ser árbitro, em razão do dever de revelação. Todavia, a pesquisa demonstra que no âmbito das Câmaras a impugnação é insignificante e as partes indicam pessoas capacitadas e com os atributos que a lei determina para serem árbitros”, avalia. Assim, ela entende que o projeto não se sustenta ao ser olhado por meio dos dados. 

Em 2021, o número de impugnações de árbitros nas Câmaras pesquisadas representou menos de 1% das impugnações aceitas, em um universo de 1047 arbitragens em andamento. 

Em 2020, havia 996 arbitragens em andamento. Desse universo, houve 38 impugnações de árbitros, das quais apenas 12 foram acolhidas. Em 2021, o dado foi ainda menor. De 1.047 arbitragens tramitando, as impugnações foram 35, ou seja, ocorreram em menos de 3,4% dos casos. Deste grupo apenas 7 foram aceitas, o que representa 0,6% do total de arbitragens. “Saliente-se que nesta pesquisa temos as maiores instituições de arbitragem do Brasil e uma das maiores instituições mundiais: a CCI. Indubitavelmente, esse é um dos principais motivos pelos quais o Brasil é um dos maiores líderes em arbitragem, ocupando o segundo lugar mundial nas estatísticas da CCI de 2021.”

Representatividade na arbitragem

A fim de entender a diversidade do setor, na última pesquisa, a professora resolveu levantar a presença de mulheres nos procedimentos. “A gente vê agora um movimento muito grande de inserção, da diversidade. Isso vem aumentando muito nas câmaras, que passaram a rever a lista de árbitros.” 

Segundo Lemes, ao se considerar o número de arbitragens entrantes e a constituição de 333 tribunais arbitrais em 2020, com 197 mulheres indicadas, percebe-se que em 59,1% dos tribunais arbitrais houve participação feminina. Já em 2021, esse percentual passou para quase 64%. “Na pesquisa a ser efetuada referente ao ano de 2022, proporemos critérios comparativos com a indicação de homens e mulheres compondo tribunais arbitrais”, disse. 

A professora, que atua como árbitra há 27 anos, lembra que, no início da carreira, enfrentou desistências de indicações por ser mulher. Hoje, ela conta que participa de tribunais arbitrais só com mulheres rotineiramente.