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Decisão do TJSP que diferencia não revelação de parcialidade é celebrada por especialistas

Magistrado reconheceu que um dos árbitros violou dever de revelação de possível conflito, mas entendeu que o fato não registrado não interferiu na sentença

árbitro
Crédito: Unsplash

Um dos temas mais delicados da arbitragem é o alcance do dever de revelação dos árbitros. Um caso com tramitação na Justiça de São Paulo enfrentou a matéria e teve uma decisão já considerada, por especialistas da área, como emblemática. A sentença detalha que não é mandatório rever a deliberação do tribunal arbitral diante de uma violação de revelação. Para tanto, pontua, é preciso analisar caso a caso, o contexto e o efeito dessa violação. 

O magistrado na 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Guilherme de Paula Nascente Nunes, respondeu cada um dos pontos levantados no pedido de anulatória, julgando a ação improcedente. Para isso, detalhou argumentos, enfrentando ponto a ponto as contestações feitas. O caso corre sob sigilo, mas o JOTA teve acesso à sentença.  

“Permito-me concluir que, de fato, houve, quebra do dever de revelação. Por outro lado, não há como afirmar que está configurada a imparcialidade do árbitro a justificar a anulação da sentença. Muito embora não exista consenso doutrinário sobre o tema, o reconhecimento da ausência do dever de revelação não conduz, necessariamente, ao reconhecimento da ausência de imparcialidade do árbitro a macular a sentença arbitral quando do julgamento da ação anulatória pelo Poder Judiciário”, disse o magistrado. 

A discussão se deu em uma disputa sentença arbitral da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem Ciesp/Fiesp por suposta violação do dever de revelação de um árbitro e de um coárbitro. Em março deste ano, o desembargador Grava Brazil, da 2ª câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP, chegou a suspender a sentença arbitral por entender que, numa análise de tutela de urgência, havia indícios suficientes da possibilidade de descumprimento do dever. 

A legislação diz: § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência. 

O presidente do tribunal arbitral que analisou o caso foi sócio de um escritório e, por meio da banca, recebeu procuração de ambas as partes da disputa arbitral em 2009 e 2011, e chegou a atuar em favor de uma das partes perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Esses seriam fatos relevantes e deveriam, segundo a sentença, ter sido revelados. Mas, além disso, a arbitragem teve início em 2015, depois que este caso havia tramitado em julgado. O pedido de complementação de revelação veio em 2022. 

De acordo com o previsto na Lei de Arbitragem, a parte interessada poderá pleitear, no Poder Judiciário, a anulação da sentença arbitral apenas em caso de existência de vícios formais no procedimento. Não cabe ao magistrado examinar as provas ou o mérito das decisões dos árbitros. Nesses vícios formais, a decisão é emanada de quem não podia ser árbitro. O presidente do tribunal respondeu: “Como é praxe em grande parte das sociedades de advogados, faz-se procuração com o nome de todos os advogados e estagiários do escritório, para efeito de facilitação no desenvolvimento do trabalho. O fato era conhecido dos impugnantes-requerentes”. 

A legislação estipula que o árbitro deve ser absolutamente independente e imparcial. Para aferir isso, definiu o dever de revelação, por meio do qual os árbitros selecionados para a arbitragem esclarecem eventuais contatos que tenham com as partes ou o caso ou circunstâncias que possam gerar desconforto ou apenas para registrar tais relações ou momentos. As partes podem, então, impugnar os árbitros que considerarem inadequados. 

No caso em questão, as partes não identificaram problemas e não impugnaram os árbitros no momento inicial. O procedimento seguiu, a primeira sentença foi dada em favor do lado que, depois de a segunda decisão ser prolatada, desta vez em desfavor dela, apontou o que seria um conflito. 

A decisão da 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem sobre a controvérsia é considerada paradigmática pelos especialistas ouvidos pelo JOTA, portanto, porque apresenta os conceitos e a distinção entre violação do dever de revelação e violação da imparcialidade. 

“Ora, como se sabe, os procedimentos arbitrais multiplicam-se, dia a dia, em território nacional; árbitros, advogados e pareceristas, por seus reconhecidos e notórios conhecimentos jurídicos, acabam participando, repetidamente, desses mesmo procedimentos, ora como árbitros, em outros procedimentos como advogados e, por vezes, como pareceristas. Assim, parece até pragmático que, com o passar dos anos, situações como a que aqui se apresenta repetir-se-ão com cada vez mais frequência”, concluiu Guilherme de Paula Nascente Nunes.

Para a professora e árbitra Selma Lemes, a decisão é muito importante para a jurisprudência brasileira. “Ela é paradigmática e passa a ser um norte, um direcionador para a gente trabalhar o conceito de dúvida justificada. Não é a falta de revelação, mas é o fato não revelado e se esse fato não revelado tem a capacidade de influir no julgamento do árbitro”, disse. Isso porque dá racionalidade à análise. 

“Trata-se de saber do motivo da não revelação e se o fato não revelado influenciou no julgamento. A gente começa a raciocinar com mais objetividade. Se a sentença for repetida vai ser muito positivo para se coibir abusos na utilização de impugnação de partes.”

Carlos Stefen, advogado e árbitro, entende de forma semelhante. “O dever de revelação serve para dar ciência dos árbitros para as partes de quem elas estão contratando. Não tem fórmula para isso. Cada caso é distinto. A quebra do dever de revelação certamente tem consequência, mas não o afastamento do árbitro por ele não ter revelado uma circunstância que pareça ser importante, mas que em nada afete o julgamento dele.”

Ele ressalta, também, que, diferentemente de um juiz, que é sorteado relator de processos, o árbitro é escolhido pelas partes. Assim, ele precisa ter conhecimento na matéria e ter a confiança das partes, mas não a ponto de ser próximo demais para suscitar viés na decisão. 

Na visão dele, portanto, a decisão tem sido elogiada justamente por fazer essa distinção. “Ela dá clareza e analisa a situação concreta. Creio que seja a primeira vez que um julgado brasileiro tenha disposto com essa clareza a distinção entre o dever de revelação do árbitro e o de manter-se imparcial”, enfatizou o advogado. 

De acordo com a pesquisadora Selma Lemes, ainda, a independência e a imparcialidade representam, na arbitragem, a inexistência de conflito de interesse e de independência econômica. Conflito de interesses e interesses comuns são conceitos que também valem diferenciar, na avaliação dela. No primeiro, não se poderia ser árbitro de um caso no qual  a banca de advocacia em que se trabalha defende um dos envolvidos. Neste caso, o pagamento que será feito ao escritório também beneficiará os sócios. 

“Os conflitos de interesses geram impedimento e os interesses comuns não geram. O fato de eu fazer parte de um departamento de uma universidade e participar de pesquisas na área da arbitragem não me cria conflito de interesses, por exemplo. É um interesse em torno do direito, mas não há interesse na resolução do conflito específico ou ganho econômico com ele”, explicou Selma Lemes. Além disso, ela pontua que é muito comum que os árbitros sejam professores, pesquisadores e advogados da área e, portanto, já tenham se encontrado em eventos acadêmicos ou outros casos.