Direito do Consumidor

Arbitragem coletiva é debatida como opção para disputas de consumo no Brasil

Defensores do modelo dizem que ele ampliaria o acesso à Justiça, mas, antes, seria preciso enfrentar lacunas legais

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As arbitragens que ficam conhecidas no país, por meio da imprensa, geralmente mobilizam valores elevados, em disputa entre empresas de grande porte, envolvendo conflitos societários. Por essa ótica, pode ser difícil imaginar o uso do instituto em conflitos consumeristas. No entanto, esta é uma possibilidade que vem sendo debatida no Brasil, sobretudo em ações coletivas. 

A arbitragem é uma forma de resolução de conflitos escolhida pelas partes – em alternativa ao Judiciário. Trata-se de uma forma de jurisdição privada, em que os envolvidos selecionam os árbitros. Antes do conflito, as partes podem incluir no contrato a indicação de que a arbitragem será o caminho para dirimir eventuais problemas, mas também é possível optar por ela quando o conflito surgir.  

Contudo, a legislação restringe as matérias que podem ser tratadas na arbitragem: apenas questões envolvendo direitos disponíveis e direitos patrimoniais, ou seja, aquelas passíveis de negociação ou as aferíveis financeiramente. Assim, questões de Direito do Consumidor – uma das áreas com maior número de demandas no Judiciário, conforme acompanhamento do Conselho Nacional de Justiça – ficariam de fora. Porém, são encontradas algumas brechas nessa limitação.  

Para a pesquisadora e advogada sócia do Nery Advogados Ana Luiza Nery, direitos difusos e coletivos como meio ambiente, tributos e direitos trabalhistas são direitos indisponíveis (isto é, não se pode abrir mão deles), mas também contêm elementos patrimoniais. Ela entende que eles poderiam ser tratados na chamada arbitragem coletiva, em que também estariam englobados os temas consumeristas. 

“Eles contêm um aspecto patrimonial, mesmo sendo direitos extrapatrimoniais. A arbitragem com consumidor ainda é rara. Mas existe um grande crescimento da arbitragem no Brasil e a expansão dela para outros setores da economia, que não exclusivamente de matéria societária”, diz. Tal movimento tem cerca de uma década.

Nery admite que não são dois mundos pensados para andar lado a lado. “Mas não são incompatíveis”, pontua. Na visão dela, a consolidação desse sistema permite pensar de forma mais clara o espaço que a arbitragem poderia ocupar para lidar com esses conflitos.

Ela admite que a arbitragem costuma ser vista como um reduto para brigas muito grandes e caras. Mas observa uma democratização nessa via. Nos últimos anos, tanto a advogada quanto outros pesquisadores do tema passaram a propor a união entre a Lei da Arbitragem e a legislação sobre o processo coletivo (que prevê abertura de ação civil pública, por exemplo) para pensar a tutela de direitos coletivos na arbitragem. 

“Não há óbice constitucional nem legal que impeça o uso do mecanismo legal para a defesa dos direitos coletivos. Aliás, o sistema incentiva a resolução dos conflitos por meios consensuais. O nosso sistema permite a união do processo coletivo e arbitral sem que haja necessidade de ter uma lei formalizando e regulamentando a arbitragem coletiva”, afirma.

A discussão, inicialmente acadêmica, sobre a possibilidade chegou ao Judiciário. Em 2020, o Tribunal de Justiça de São Paulo admitiu a possibilidade de arbitragem coletiva. Para Nery, o mecanismo é relevante para ampliar a defesa dos direitos metaindividuais. “Se você está falando de meio ambiente, de consumidor, tem interesse público por trás. Transcende o aspecto individual, e por isso você tem que tratar com mais abertura”, defende. 

Se a arbitragem tradicional apresenta vantagens como o menor tempo de conclusão da demanda e a especialização dos árbitros responsáveis pelo trato da matéria, no caso da arbitragem coletiva, os benefícios seriam ainda mais amplos, como fomentar as chances de resolver uma pilha de casos individuais por meio de apenas um processo. 

Usado em disputas de Direito do Consumidor, o processo coletivo também traria mecanismos para atenuar a discrepância de forças entre consumidor e fornecedor, presente em ações individuais. 

Os consumidores são uma categoria protegida pela tutela coletiva. Assim, o Ministério Público e as Defensorias Públicas de estados e municípios são entes com legitimidade ativa dada por lei para defendê-los em juízo. Algumas associações também conseguem fazer a defesa de alguns temas e discutir a legalidade de medidas ou condutas.

“É muito mais forte um pleito coletivo de todo mundo que foi lesado do que o meu ou o seu ou o do vizinho. Então as pessoas se unem para fazer esse pleito”, enfatiza a advogada. 

Lacunas legais 

Se, por um lado, alguns pesquisadores e advogados são entusiastas da defesa de interesses do consumidor na arbitragem, por outro, há resistência e desconfiança. 

Os principais argumentos contrários são que a lei brasileira tem como premissa o uso da arbitragem em contratos com partes em igualdade de condições – o que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não reconhece existir nas relações de compra –, além de tratar de direitos materiais disponíveis, e a sentença arbitral produzida tem eficácia limitada àquelas partes que decidiram resolver as disputas por meio de arbitragem. 

A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) já fez consultas e audiências públicas para tentar incrementar esse arcabouço regulatório brasileiro e estabelecer o conceito adequado de consentimento prévio, tanto de consumidores como de fornecedores das empresas, para tentar viabilizar a arbitragem coletiva.

A crítica é que, se em algum momento, isso for colocado em prática, se tratará de um novo sistema, distinto do tipo de arbitragem que se tem atualmente. Além disso, faltaria respostas a questões como quem tutelaria os interesses dos consumidores contra as empresas 

Uma solução aventada seria adotar o modelo usado para arbitragens de sócios minoritários (de modo geral, investidores de companhias abertas), em que são criadas associações com o fim específico de arregimentar acionistas minoritários – ou consumidores – para mover ação contra uma empresa. 

Porém, algumas perguntas ainda ficam sem resposta: como seria a nomeação do árbitro por esse grupo? E a revelação de conflitos e situações de falta de imparcialidade e independência de árbitros quando o grupo é vasto e desconhecido de potenciais partes nessas disputas? Como fica o consumidor que não optou em levar o assunto para arbitragem? Quais efeitos terá a sentença que vier a ser produzida nessa arbitragem coletiva? O consumidor vai poder se beneficiar dela? 

Cenário internacional

Geralmente, a percepção, a partir da experiência de países como os Estados Unidos, é que as empresas seriam os principais beneficiados com o uso da arbitragem em temas de consumo. Isso acontece principalmente quando não há uma equalização de forças, com o consumidor entendido como parte mais vulnerável.

O instituto teve início nos Estados Unidos na década de 1980, mas houve um grande crescimento em 2003, como observa estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), conduzido por pesquisadores brasileiros, e que examina países que têm arbitragem coletiva. Até 2013, as arbitragens coletivas eram comuns nos Estados Unidos, mas o movimento sofreu um recuo nos últimos anos com restrições ao modelo pelas empresas. 

Inicialmente, elas haviam passado a incluir em contratos de consumo cláusulas definindo a ida à arbitragem como forma de fugir das chamadas class actions no Judiciário, que podem gerar impactos negativos no caso de condenação, mas sem a definição se a arbitragem seria individual ou coletiva. 

Diante da validação da arbitragem coletiva pela Suprema Corte, essas ações cresceram e, como resposta, os entes privados passaram a construir a cláusula compromissória restritiva – assim, deixam claro nos contratos que se o consumidor quiser abrir uma disputa deverá fazer isso individualmente. O modelo recebe críticas de tratamento desleal em relação aos compradores. 

Esse não é um risco elevado para o Brasil, que tem um sistema de ações coletivas diferente do americano. Enquanto nos Estados Unidos uma ação se torna coletiva a depender do volume de casos, aqui ela nasce coletiva se defendida por um ente que representa uma coletividade. 

“No Brasil, não é nem possível fazer uma cláusula assim, porque isso fere o acesso à Justiça, que é direito constitucional. Não dá para impedir a pessoa de coletivizar uma demanda”, explica a Ana Luiza Nery. Além disso, já é pacificada a vulnerabilidade do consumidor em relação à empresa. 

Luciano Timm, sócio do CMT Advogado e professor da FGV, que foi secretário da Senacon entre 2018 e 2020, foi um dos responsáveis por incrementar o debate no país. Na Secretaria, encomendou um estudo ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, a agência de desenvolvimento da ONU) para avaliar o uso da arbitragem em questões de consumo e quais os melhores modelos. 

“É um tema muito interessante, mas também ainda muito sujeito a percepções ideológicas. Por isso, contratamos o estudo sobre o assunto, para ser um levantamento de direito comparado do uso da arbitragem no âmbito do direito do consumidor, que é uma recomendação da própria ONU”, afirma. Ele cita a Espanha, o Chile e a Argentina como países que aplicam o modelo. 

De acordo com ele, “o tema não pode ser tabu”, e, em Direito do Consumidor, o que se deve ter como base é o CDC, que determina que o consumidor não pode ser obrigado a resolver um problema extrajudicialmente, mas pode optar por essa via. “No Brasil, não temos ainda experiência nesse sentido, mas não significa que a gente não possa apostar nisso se houver algum tipo de apoio do Ministério da Justiça”, afirma. 

Para ele, métodos online poderiam contribuir para o processo de incorporação da arbitragem e outros mecanismos de resolução de conflitos nas disputas de consumo. Nessa linha, um caminho seria explorar possibilidades na plataforma Consumidor.gov, espaço de negociação que aproxima consumidores e fornecedores. 

Segundo Timm, nos casos em que não há solução acordada entre as partes, em vez de determinar que elas recorram ao Judiciário, a ideia era que houvesse a alternativa por mediação ou arbitragem, inclusive individuais.

“Nós estudamos mecanismos na própria plataforma e que pudessem ser formas de solução de disputas entre empresas e consumidores sem onerar os consumidores”, lembra.