Judiciário

Insegurança jurídica dificulta retomada pós-pandemia

Falta de previsibilidade é obstáculo ao crescimento econômico e também impacta consumidores finais

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Sessão do STF / Crédito: Nelson Jr./SCO/STF

Em um cenário econômico em que a inflação corrói o poder de compra dos consumidores, principalmente dos mais pobres, a falta de previsibilidade causada pela insegurança jurídica é mais um fator a dificultar a urgente retomada do crescimento após a pandemia de Covid-19. 

O tabelamento do frete, que surgiu como Medida Provisória editada no governo Michel Temer (2016–18), após uma greve de caminhoneiros, e depois foi convertida na Lei 13.703/2018 pelo Congresso Nacional, é um exemplo desta situação. No Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.964, que discute a validade do tabelamento, está parada desde o início de 2020. A não concessão dos pedidos da ADI tem impactado toda a cadeia produtiva, inclusive nos preços aos consumidores finais que compram produtos da indústria e do agronegócio. 

Em parecer enviado ao STF em março do ano passado, o procurador-geral da República, Augusto Aras, se posicionou pela inconstitucionalidade da lei, defendendo que apenas o mercado pode corrigir oscilações entre oferta e demanda. O caso, ajuizado em junho de 2018, chegou a ser pautado duas vezes, mas não começou a ser julgado. Uma audiência entre as partes foi desmarcada em decorrência da pandemia, por determinação do presidente do STF e relator do caso, ministro Luiz Fux, e desde então a ação está parada.

Numa ação sobre o mesmo tema, a ADI 5.956, o ministro Luiz Fux, em decisão liminar e monocrática, suspendeu, no dia 6 de dezembro de 2018, a possibilidade de a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) de multar as transportadoras que não seguirem as tabelas de frete. Mas, seis dias depois, derrubou a própria decisão porque entendeu que a proibição poderia prejudicar negociações do governo Jair Bolsonaro (sem partido), que tomaria posse em poucos dias, com o setor.

A demora do STF em solucionar o impasse permite que situações apoiadas em leis de duvidosa validade se solidifiquem com o tempo, gerando efeitos incertos e que poderão no futuro ter sua validade questionada. O Judiciário também contribui para a insegurança jurídica quando opta por adotar mais decisões individuais em detrimento de decisões que poderiam ser discutidas e amadurecidas coletivamente. Só no ano passado os ministros do STF proferiram 81.161 decisões monocráticas, ante 18.208 decisões colegiadas — preferíveis para evitar decisões dissonantes sobre um mesmo tema.

Um exemplo neste sentido ocorreu na ADI 5.624, em que a maioria dos ministros entendeu não ser necessária a prévia autorização legislativa, para alienação de subsidiárias e controladas de empresas públicas e sociedades de economia mista — diferentemente de liminar monocrática anteriormente concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski. A decisão do colegiado foi considerada um marco para o plano bilionário de privatizações do governo, trazendo segurança para o ente público e para investidores.

Outra questão que afeta o ambiente de negócios são as decisões judiciais pouco claras ou de difícil mensuração de repercussão de impacto no mundo real. A discussão sobre a inclusão ou não do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, que se arrastava no Judiciário brasileiro há mais de duas décadas, chegou ao fim em maio deste ano, após decisão colegiada do Supremo. Mesmo assim, o impacto total ainda é incerto. No dia 20/8, os ministros começaram a julgar, no plenário virtual, a primeira das chamadas “teses-filhote” provenientes do julgamento concluído em maio — se o ISS deve ou não ser excluído da base de cálculo do PIS e da Cofins. O julgamento ficou empatado em 4 a 4 e o ministro Luiz Fux resolveu levar a questão para o plenário físico, ainda sem data definida, para que o caso seja novamente julgado começando do zero.

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o tempo médio para que o STF julgue uma ADI é de mais de sete anos, período considerado excessivo para casos de alto potencial de impacto. “A segurança jurídica é fundamental para melhorar o ambiente de negócios do país”, afirma o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Braga de Andrade. “Precisamos facilitar negociações e caminhar rapidamente para que o Brasil possa ter uma Justiça mais ágil e regras mais estáveis.”

Se o Judiciário é provocado a responder questionamentos sobre a constitucionalidade de leis em vigor, o motivo lógico é a aprovação de normas muitas vezes sem base constitucional que podem causar diversos prejuízos à sociedade. Durante a pandemia, com o Legislativo atuando em regime de deliberação remoto, os projetos foram aprovados rapidamente a fim de garantir celeridade no combate à doença.

Desde então, partidos de todo o espectro político foram ao Judiciário questionar medidas tomadas pelos Executivos (municipal, estadual ou federal) ou normas aprovadas nos Legislativos sob o argumento de combater a pandemia. Enquanto isso, boa parte da pauta econômica necessária à retomada do crescimento permanece em suspenso no Congresso Nacional. “Nosso país encara seríssimos desafios, conhecidos de todos. Um dos mais importantes é reanimar a economia nacional, vitimada pela recessão de 2015–2016 e pelos severos impactos causados pela pandemia da Covid-19”, opina Robson Andrade. “Não podemos mais conviver com a insegurança jurídica, um mal crônico que afasta de nosso país investidores e capitais que poderiam estar gerando os empregos demandados pela nossa gente.”

Embora as divergências entre os Poderes sejam naturais, as controvérsias entre Legislativo, Executivo e Judiciário podem representar um sintoma de disfuncionalidade quando exacerbadas, como no momento atual. “Se você tem um ambiente de instabilidade institucional, naturalmente as pessoas perdem a confiança para investir, sobretudo para assumir obrigações que vão se prolongar”, afirma o advogado Eduardo Mendonça, doutor em Direito pela Uerj e sócio do escritório BFBM Advogados.

Do ponto de vista do Executivo, principalmente nos municípios, os gestores têm receio de tomar decisões e depois serem questionados pelos órgãos de controle, como tribunais de contas — o que pode acarretar consequências de ordem eleitoral, o pior pesadelo de políticos com mandato. “Essa situação foi acentuada no período da pandemia, mas de certa maneira isso já vinha ocorrendo antes disso”, afirma Cassio Augusto Borges, diretor adjunto jurídico da CNI. “Seja pela Constituição, seja pela Lei Orgânica do TCU, o limite das atribuições é a análise dos gastos públicos. É o comportamento do gestor público relacionado ao Erário. O que eu vejo, e isso ficou mais enfatizado no momento de pandemia, é que o tribunal muitas vezes exerce um papel de grande controlador-geral do agir estatal”, conclui.

Com a existência de fontes de insegurança jurídica nos Três Poderes — e nos três níveis de governo —, iniciativas recentes buscaram melhorar o cenário da previsibilidade a partir de diretrizes gerais. Uma delas foi a aprovação da Lei 13.655/2018, que alterou trechos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e posteriormente foi regulamentada pelo Decreto 9.830, de 10 de junho de 2019. A legislação estabelece, por exemplo, que uma decisão judicial que invalide um ato do Executivo deve ser embasada dentro dos limites determinados. Outras, mais recentes, foram a Lei 13.874/2019, que instituiu a declaração de direitos de liberdade econômica, e a Lei 14.195/2021, que, entre outros assuntos, dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas.

“Muitas vezes o empresário prefere uma decisão que não atenda o interesse dele, mas que seja uma decisão célere e estável, de modo que possa programar a sua estratégia e tomar decisão econômica de acordo com o posicionamento”, resume Cassio Borges. “O que afugenta os investimentos é justamente a incerteza, seja a incerteza de qual órgão age, seja a incerteza de como age.”