Inovação e judiciário

Decisões conflitantes geram insegurança a empresas inovadoras e afetam consumidores

Posicionamentos judiciais contrários à inovação podem privar pessoas de novas soluções, muitas vezes mais econômicas

ônibus
Crédito: Unsplash

Plataformas intermediárias entre o cidadão e algum tipo de serviço, como entrega de alimentos, locação de apartamento e ônibus rodoviários, já fazem parte do cotidiano dos brasileiros. Mas essas empresas, para crescer no país, além de trazer inovação e concorrer com players já consolidados no mercado, muitas vezes precisam enfrentar embates jurídicos e a sanha legislativa.

O aplicativo de mensagens WhatsApp, por exemplo, mudou a forma como as pessoas se comunicam. Ele chegou ao país no mesmo ano em que foi lançado, em 2009, mas, a partir de 2015, passou a ser alvo de uma série de medidas judiciais.

Em maio de 2016, por um descumprimento de ordem para entrega de conteúdo de conversas que serviriam para uma investigação, um juiz de Lagarto, no Sergipe, determinou às operadoras de telefonia móvel e fixa a suspensão do aplicativo por 72 horas. Os brasileiros de todo o país ficaram sem acesso às mensagens por 24 horas, até um desembargador rever a decisão de primeiro grau. A ordem foi descumprida não por má vontade, afirmava a empresa. Devido à criptografia, o WhatsApp diz não ter condições de cumprir ordens judiciais para revelar o conteúdo de conversas de suspeitos de cometerem crimes.

Antes, em fevereiro de 2015, a primeira decisão de bloqueio do aplicativo no país foi de um juiz de Teresina (PI) e teve a mesma motivação. Mas o WhatsApp não chegou a ficar fora do ar: um desembargador derrubou a decisão, fundamentando que as empresas telefônicas e seus usuários não deveriam ser penalizados. Já em dezembro do mesmo ano, uma Vara Criminal de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, ordenou o bloqueio, sob a mesma razão. Daquela vez, o app ficou fora do ar por cerca de 14 horas, até uma liminar restabelecer o serviço.

Em julho de 2016, mais uma vez, o app ficou indisponível, num contexto semelhante aos demais. A 2ª Vara Criminal de Duque de Caxias (RJ) determinou o bloqueio porque o Facebook, dono do WhatsApp, não forneceu informações solicitadas para uma investigação policial. A suspensão começou por volta das 14h, em todo o Brasil, e o serviço começou a ser retomado no fim da tarde depois de liminar do então presidente do STF Ricardo Lewandowski. Ele considerou o bloqueio desproporcional porque o WhatsApp é usado de forma abrangente, inclusive para intimações judiciais.

A saga do WhatsApp na Justiça é um exemplo de como a insegurança jurídica afeta empresas inovadoras. “O país é grande, tem necessidade de serviços mais eficientes, e plataformas inovadoras trazem mais competição. A percepção é que o Brasil é um grande mercado, o que é interessante para as empresas. Mas quando elas começam a entender a nossa complexidade, percebem que o caminho é longo”, avalia a advogada Marina Cardoso, do Pereira Neto Macedo e especialista em Direito Público e Regulatório.

No caso dos aplicativos que conectam passageiros a motoristas, além das questões regulatórias e tributárias, ainda há discussões sobre o estabelecimento de vínculo empregatício dos condutores às plataformas. Aplicativos de delivery também enfrentam o mesmo questionamento.

Mas a primeira batalha judicial do Uber, Cabify e da 99 foi com taxistas. Eles defendiam que a atuação dos novos players do mercado invadia a atividade privativa da classe: transporte público individual remunerado de passageiros, por disposição da Lei 12.468/2011. Assim, a atuação dos motoristas dos aplicativos configuraria exercício ilegal da profissão e concorrência desleal. Devido ao lobby dos taxistas, muitos municípios acabaram impedindo as plataformas de operar. Eles desconsideraram o argumento de que a atividade, na verdade, é de transporte individual privado e não invade a atividade privativa dos taxistas, essa, sim, de transporte público.

O conflito só foi resolvido depois de decisão do plenário do STF vetando a proibição dos aplicativos de mobilidade por municípios, mas depois de idas e vindas. Em julgamento no plenário, os ministros entenderam que antigas leis de Fortaleza e São Paulo eram inconstitucionais e não poderiam barrar a atividade dos aplicativos.

Por unanimidade, com base no princípio constitucional da livre concorrência, a Corte decidiu que os municípios podem fiscalizar o serviço, mas não podem proibir a circulação ou estabelecer medidas para restringir a atuação. Foi uma vitória decisiva depois de um período de guerras de liminares e decisões de Executivos municipais.

Na capital cearense, uma lei local havia proibido as plataformas, o que foi questionado no STF pelo Partido Social Liberal (PSL) na ADPF 449. Já em São Paulo, projeto de autoria do vereador Adilson Amadeu (PTB), que se tornou lei em 2015, também proibiu a circulação de veículos de aplicativos na capital. Na época, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) afirmou que a lei era inconstitucional e a Câmara recorreu ao Supremo. O caso tramitou como RE 1.054.110.

Hoje o contexto continua a ser de instabilidade e falta de uniformização de abordagem diante da chegada de alternativas para modelos tradicionais, seja de comunicação, seja de transporte, urbano ou rodoviário, entre outras inovações.

Recentemente, a 2ª Vara Cível de Caraguatatuba decidiu de forma contrária a um pedido da Empresa de Ônibus Pássaro Marron para que cinco companhias de transporte e turismo deixassem de fazer o embarque e desembarque de passageiros na cidade.

O magistrado Gilberto Alaby Soubihe Filho ressaltou que as empresas usam a plataforma da Buser para fazer o transporte viário de pessoas e que, segundo decisão do TJSP, “a princípio, não existe óbice ao exercício da atividade de “intermediação de viagens via plataforma digital”.

Em outra ação, no entanto, também ajuizada pela Pássaro Marrom contra as mesmas empresas e com o mesmo objetivo, o resultado foi diferente. Um juiz de Ubatuba concedeu liminar para impedir a atividade das empresas no trajeto com chegada e partida de Ubatuba, sob pena de multa diária de R$ 50.000.

Em vez de assegurar a proteção do sistema de transporte rodoviário, decisões como essa trazem uma verdadeira limitação ao surgimento de novos negócios e ao fomento de um setor da economia que estava sem um crescimento expressivo há muitos anos. E afetam também os consumidores, que podem ser privados de inovações, muitas vezes mais econômicas, e que facilitam suas vidas.

Victor Rufino, sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito da Concorrência e ex-procurador do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), acredita que o cenário vivenciado por Uber e 99, de uma profusão de decisões judiciais em sentidos diferentes, deve se repetir no mercado de fretamento de ônibus por aplicativos. E defende que a solução para esta insegurança não está no Judiciário. “A solução legislativa seria a ideal. Para dar mais previsibilidade para o ambiente de negócios, caberia ao Congresso delimitar se abre mais espaço para prestadores de serviços de conectividade de usuários participar do mercado ou se mantém a regulação mais fechada”, avalia.