Transporte

ANTT excede fronteiras e atua no limiar da lei na luta contra o fretamento colaborativo

Agência segue na missão em prol das grandes empresas de transporte rodoviário, travando mercado e ameaçando a democratização

ônibus
Crédito: Unsplash

A luta pela manutenção dos paradigmas que garantem às empresas tradicionais privilégios no setor de transporte interestadual brasileiro ultrapassou os limites da legalidade. A Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), que regula esse setor, excedeu, mais uma vez, as fronteiras da sua atuação e tomou medidas fora da lei em prol de interesses escusos, como conceder a si o inimaginável direito de não atender às decisões judiciais. Há indícios, inclusive, de que o próprio Diretor-Geral da ANTT, Rafael Vitale, estaria agindo ativamente na causa.

São várias as ocasiões em que foi possível constatar atos ilegais movidos pela ANTT contra o setor, sobretudo, contra as empresas que operam no modelo de negócio conhecido como fretamento colaborativo -um serviço que segue a premissa da economia colaborativa, modelo de inovação que vem, há algum tempo, mudando os diferentes mercados para melhor.

Em outubro deste ano, a Juíza Federal Mônica Autran Machado Nobre, da 4ª turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), proferiu decisão que suspendeu a portaria nº 27 de 2022, que definia critérios para a fiscalização do transporte interestadual de passageiros. De acordo com a juíza, a portaria ia na contramão da Súmula nº 11, de 2 de dezembro de 2021, da própria ANTT, que define o que se enquadra ou não em “transporte clandestino” e, em tese, deveria impedir as apreensões que a ANTT vinha fazendo. Na decisão da juíza, ela escreveu: “a diferenciação promovida pela ANTT por atos normativos infralegais carece de amparo legal, pois confere tratamento diferenciado para situações tratadas de idêntica forma”. Mesmo com a decisão, que passou a proibir que essas apreensões continuassem acontecendo, de fato, a ANTT seguiu com as multas e apreensões descabidas. Desde o dia em que a liminar foi proferida, mais de 60 ônibus a serviço da plataforma Buser foram presos, afetando mais de 2 mil passageiros.

Justo a Súmula 11, que é um entendimento feito em colegiado e favorável às plataformas, vem sendo boicotada. Não satisfeita em descumprir uma decisão judicial que proíbe apreender os ônibus, a ANTT segue firme iniciou um movimento forte para revogar a súmula, com o objetivo de rever o que se enquadraria em “transporte clandestino”. Novamente, diante de mais essa tentativa de se burlar a legalidade, a Justiça agiu: o TRF-3 impediu a ANTT de revogar a Súmula 11 em reunião deliberativa ao conceder liminar atendendo ao pedido de mandado de segurança protocolado pela Buser, empresa que conecta passageiros e empresas de fretamento por meio de aplicativo digital.

Na visão do magistrado que tomou a decisão, juiz federal Victorio Giuzio Neto, a ação da ANTT não considerava a eventual participação de interessados do setor que seriam diretamente afetados pela mudança. O impedimento à apreensão é tratado em súmula e isso, segundo o juiz, não deveria ser revisto de forma súbita e monocrática. A “apreensão de um veículo de transporte coletivo expõe à risco e vulnerabilidade seus passageiros, risco significantemente maior que o do exercício de uma autorização obtida em desconformidade com seus limites”, escreveu o juiz.

Indicado por importantes nomes do Senado Federal para o cargo, o presidente da agência tem mostrado que sua missão dentro da ANTT é impedir a abertura de mercado, garantindo, dessa forma, o protagonismo das empresas ligadas aos políticos da cúpula superior do Congresso Nacional. Hoje ele é o nome que antagoniza a luta pelo fim do circuito fechado, uma das regras que mais travam a inovação no setor de transporte rodoviário, pois obriga que o mesmo grupo de passageiros seja transportado nos trajetos de origem e destino (ida e volta), na mesma hora e data da viagem.

Esse objetivo ficou claro quando Vitale simplesmente deixou de nomear o sucessor de um dos diretores da ANTT, mesmo que a lei das Agências Reguladores não lhe permitisse tal discricionariedade, com claro objetivo de, na falta desse membro, utilizar o voto de minerva para devolver o novo Marco Regulatório (produzido pelos funcionários da própria ANTT) para a ala técnica.

Marco esse que promoveria a abertura do mercado com segurança para o empreendedorismo livre. A ação motivou uma notícia-crime elaborada pela Associação dos Servidores da ANTT (ASEANTT), que foi encaminhada ao Ministério Público para análise. Posteriormente, o órgão solicitou à Polícia Federal a abertura de inquérito para investigar Vitale e parte da sua equipe pelos crimes de prevaricação e corrupção passiva.

As tratativas para impedir avanços nessa discussão são muitas, por isso os fretadores têm pressionado como podem, para que o presidente da agência dê alguma explicação. Na semana passada, a Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados promoveu audiência pública para debater a operação da Polícia Federal (PF) na ANTT, em um pedido de autoria do deputado Hugo Leal (PSD-RJ). Convidado para o debate, o diretor geral da ANTT, Rafael Vitale, não compareceu, causando revolta entre os deputados. Nos próximos dias haverá uma nova chance. Os parlamentares da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle (CFFC) solicitam que ele vá pessoalmente prestar esclarecimentos sobre as ações de regulamentação do transporte de passageiros por demanda proveniente de plataformas de tecnologia (fretamento colaborativo), além de explicar atos normativos e fiscalizatórios praticados pela ANTT que atingem esses atores. Mais um convite o espera na CVT, em uma audiência para discutir a validade da Súmula 11.

Ainda no sentido de tentar conter os abusos da agência reguladora e ajudar a abrir o caminho para preços mais baixos pelas pequenas e médias empresas de fretamento, estão tramitando na Comissão de Viação e Transporte (CVT) dois importantes Projetos de Decreto Legislativo (PDL). São eles: o PDL 494/20 e o PDL 69/22. Se aprovados, eles podem ou derrubar a regra anacrônica do Circuito Fechado ou impedir os efeitos da Portaria 27, aquela mesma que criminaliza os fretadores.

“O desentendimento no âmbito da política e em meio à erupção de modelos de negócios inovadores é natural. Mas é prioritário e primordial que essas discordâncias sejam devidamente debatidas com transparência, respeito e ética. Extrapolar as linhas da lei não pode estar em discussão. É um desrespeito ao empreendedorismo, à economia, à geração de empregos, às instituições, ao cidadão e ao país, como um todo. Tem prejuízos a curto e longo prazo. Agências regulatórias precisam se modernizar, se adaptar e crescer junto com os cenários que regulam. Jamais agir em prol de empresas específicas do setor, muito menos, sob influência de interesses externos”, afirma Juliana Natrielli, head de Políticas Públicas da Buser.