Inovação

A balança da inovação entre o direito concorrencial e a propriedade intelectual

Há uma convergência de interesses entre ambos os sistemas, já que visam à promoção de um ambiente de inovação constante

Patentes
Crédito: Unsplash

Ao longo de muitos anos, direito de propriedade intelectual e direito concorrencial foram colocados em lados opostos de um ring. De um lado, a propriedade intelectual visaria garantir a exclusividade do inventor como remuneração pelo trabalho de sua criação, enquanto, de outro, o direito concorrencial estamparia o interesse público em inserir competição no mercado o mais rápido possível. Em algumas ocasiões, o direito de propriedade intelectual já foi visto, inclusive, como fruto do lobby de grandes empresas para inibir a concorrência e, com isso, extrair renda adicional de usuários e consumidores que pagarão mais caro por produtos novos.

Longe da suposta cobiça das grandes corporações e empresas dominantes do século XXI, a primeira fonte de que se tem notícia da implementação de direitos de propriedade intelectual data de 1474, quando o primeiro estatuto sobre essa matéria foi promulgado em Veneza, com o objetivo de ‘estimular o avanço tecnológico’ pela concessão do direito de exploração exclusiva de um invento que não existisse ainda na região. Na verdade, um pouco antes, no ano de 1421, no principado de Florença, reconheceu-se uma espécie de ‘patente’ para o arquiteto e inventor Filippo Brunelleschi, pela invenção de uma embarcação, construída com o objetivo de transportar as placas de mármore, da região de Carrara¹ , utilizadas para a construção da Catedral de Florença².

Não havia, nessa época, grandes teorizações sobre law and economics, eficiências ou mesmo direitos de propriedade sobre bens imateriais de uma invenção. Apenas e tão somente a lógica de que a garantia de uma proteção legal estimularia novas criações. Atualmente, são diversas as teorias que exploram os direitos de propriedade intelectual como (i) privilégio decorrente de uma invenção; (ii) direito natural do inventor; (iii) propriedade privada, ainda que temporária, ou até mesmo como um (iv) contrato social. 

A verdade é que o direito de propriedade intelectual é o resultado de um processo histórico que se desenvolveu sem construções teóricas e/ou teorizações arquitetadas³. Só recentemente, e principalmente a partir da década de 1970⁴ em diante é que começaram a surgir estudos mais aprofundados sobre as bases e os efeitos dos direitos de propriedade intelectual. Até então, alimentou-se substancialmente uma visão de que ele seria uma mera isenção concorrencial.

Com a evolução dos fundamentos e estudos sobre os efeitos da propriedade intelectual, bem como com a própria evolução do direito concorrencial –que passou a olhar muito mais para eficiências dinâmicas do que para eficiências estáticas–, esse papel de antagonismo entre ambos sistemas jurídicos começou a se desfazer, ocorrendo uma reconciliação de propósitos.

Isso porque, na prática, há sim um aparente conflito de efeitos entre esses sistemas. Enquanto o direito concorrencial visa promover o grau mais amplo e acirrado de competição, o direito de propriedade intelectual –uma patente, por exemplo– visa exatamente excluir o uso de rivais e, com isso, a concorrência no mercado. Sob uma análise estática e imediata no tempo, alguém diria que o direito antitruste visa impedir a ‘exclusão de rivais’ do mercado enquanto o direito de propriedade intelectual quer exatamente isso –a exclusão para proveito do inventor.

O que essa visão de contrariedade entre o sistema de propriedade intelectual e o direito da concorrência não reconhecem, todavia, é que há uma convergência de interesses entre ambos os sistemas, na medida em que ambos visam à promoção de um ambiente de inovação constante. Aliás, individualmente, cada um deles visa à proteção do outro e à promoção da concorrência. Isso ocorre quando, pode exemplo, o direito antitruste autoriza cláusulas de exclusividade para evitar o free-riding, ou quando o direito de propriedade intelectual exige que o invento seja revelado, o que aumentará o grau de concorrência no futuro.

A reconciliação entre esses dois sistemas jurídicos ocorre, portanto, sob uma perspectiva dinâmica do mercado. Ao desejar promover o avanço tecnológico, garantindo um ‘prêmio’ ao inventor, o direito de propriedade intelectual tem por objetivo a geração de bem-estar econômico e social, pela criação de incentivos à inovação e evolução tecnológica. Da mesma forma, também o direito concorrencial visa a promover um ambiente competitivo o suficiente a ponto de requerer a máxima eficiência e geração de atritos que incentivem os agentes de mercado a inovarem e aprimorarem seus produtos e serviços. Muito embora os instrumentos sejam diferentes, em seus objetivos e fins, há convergência de interesses e complementariedade entre o sistema de direito concorrencial e o de propriedade intelectual. 

É natural, no entanto, que recaia um peso significativo sobre o sistema de proteção dos direitos de propriedade intelectual no que diz respeito à promoção de incentivos econômicos à inovação, principalmente no que diz respeito à proteção de patentes. Em seu livro “The Economic Structure of Intellectual Property Law”, William Landes e Richard Posner explicam que, ao longo dos anos 70 e 80, surgiu uma preocupação latente nos Estados Unidos de que o país entrara em declínio tecnológico e que outras nações, principalmente o Japão, superariam rapidamente a hegemonia americana nesse campo. A visão difundida era de que esse processo apenas poderia ser revertido por intermédio de uma renovação da ênfase em inovação tecnológica como um estímulo ao crescimento⁵.

Uma das estratégias utilizadas pelos Estados Unidos, então, foi um intenso esforço de transformação legislativa dos direitos de propriedade intelectual, que resultou em diversas ações específicas de aprimoramento do sistema de proteção patentária e especialização do próprio poder judiciário. Segundo diversos autores, essa ênfase em inovação tecnológica rendeu frutos nos anos e décadas seguintes, culminando em um crescimento significativo de diversos indicadores que passaram a apresentar melhora relevante no ambiente competitivo e na taxa de inovações do país.

Em 1985, por exemplo, o total de patentes anualmente concedidas pelo United States Patent Office (USPTO) era de cerca de 111.000. Em 2001, esse número saltou para 269.000 patentes anuais⁶. No mesmo período, o número de casos judiciais envolvendo disputas sobre patentes também dobrou. Outros dados da economia em geral também apontaram significativa melhora na atividade de ‘inovação’. Entre os anos de 1980 e 2000, por exemplo, a taxa de crescimento médio da geração de empregos nas áreas de ciência e engenharia nos Estados Unidos foi de 4,9%. Isso representou mais de quatro vezes a taxa anual geral de crescimento do emprego, demonstrando, com isso, os investimentos que naquele momento diversas empresas faziam para tentarem inovar. 

Da mesma forma, entre 1983 e 2000, a taxa anual de pessoas empregadas como autores aumentou em 8,7%. A taxa anual de pessoas empregadas como designers aumentou também em 9,2%. Além disso, em apenas 12 anos (de 1987 e 1999), as receitas anuais dos EUA de comércio exterior, isto é, o total de royalties exportados para outros países saltou de10 bilhões de dólares para 36,5 bilhões de dólares, contra pagamentos dos EUA a proprietários estrangeiros de propriedade intelectual em 1999 de apenas 13 bilhões de dólares. O saldo positivo da balança comercial americana com exportação de tecnologia só aumentou a partir desse momento, principalmente com relação a produtos eletroeletrônicos, como computadores, chips e outras tecnologias.

Óbvio que há um conjunto de fatores responsáveis pelo crescimento da tecnologia produzida pelos Estados Unidos ao longo dessas décadas. No entanto, inevitavelmente o sistema de propriedade intelectual fez parte desse pacote de medidas necessárias para garantir estabilidade e incentivo suficiente para que novos produtos fossem lançados no mercado. Muitas dessas inovações, inclusive, moldaram os produtos que conhecemos e utilizamos normalmente hoje.

O debate público no Brasil sobre inovação tecnológica, em regra, passa longe das discussões sobre a necessidade de investimento e ênfase no sistema de propriedade intelectual, com proteção e garantia de direitos aos inventores. Pelo contrário, debate-se muito no Brasil a ‘pós invenção’ –e o que se fazer para compartilhar o mais rápido possível os ganhos tecnológicos de uma descoberta– e pouco sobre o momento ‘pré-invenção’, isto é, o que se precisa fazer para criar um ambiente adequado e promissor para que novas tecnologias surjam. É como se o ganho de curto prazo –pela apropriação das externalidades geradas por uma patente pelo mercado– fosse resolver o problema mais preocupante, que é a correta geração de incentivos para se aumentar a taxa e o ritmo das inovações no país.

O sistema de proteção e defesa da concorrência é indispensável para se alcançar eficiências dinâmicas e um ambiente competitivo que promova a inovação. No entanto, é de suma importância que se promova o devido foco a direitos de propriedade intelectual, de forma a se garantir um prêmio bom o suficiente para que a corrida pela inovação ocorra de forma mais acirrada. Concorrência e Propriedade intelectual andam de braços dados e focam nos mesmos objetivos: promover um ambiente econômico estável e com incentivos significativos para a inovação

Ainda que se aplique um sistema concorrencial adequado e sofisticado, sem a correta promoção de incentivos à inovação via direitos de propriedade intelectual, dificilmente haverá avanços significativos em termos de inovação. É uma balança, complexa e sensível. Um desequilíbrio nessa balança, seja pela falta de aplicação do direito antitruste, seja pelo baixo grau de proteção de direitos de propriedade intelectual ou pela insegurança jurídica / econômica aos inventores, tenderá a produzir efeitos negativos de longo prazo, isto é, na perspectiva dinâmica do mercado.

Referências

  1.  Localizado na província de Massa e Carrara em Lunigiana, ponta mais ao norte da atual Toscana na Itália
  2. SHERMAN, Brad e BENTLY, Lionel. The making of modern intellectual property law: experience the British, 1760-1911. New York/Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
  3.  COOTER, Robert e ULLEN, Thomas. Direito e Economia. Tradução Luis Marcos Sander, Francisco Araújo da Costa. – 5ª ed. – Porto Alegre: Bookman, 2010.
  4.  LANDES, William M. and POSNER, Richard A. The Economic Structure of Intellectual Property Law. Cambridge, Massachusetts, and London, England. 2003.
  5.  LANDES, William M. and POSNER, Richard A. The Economic Structure of Intellectual Property Law. Cambridge, Massachusetts, and London, England. 2003.
  6. Obviamente que o número de litígios judiciais envolvendo patentes também dobrou, o que é natural diante do crescimento da atividade inventiva, do protocolo de novas patentes e das disputas disso decorrente
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